quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

NOTURNO ARCO-IRÍS: OS CAVALOS E O JOÃO CIGANO, de Helder Menor















O João Cigano, antes de se mudar aqui para a vila do Barreiro, viveu como cigano legítimo e maltês. Andando de terra em terra, percorreu todo esse vasto mundo entre o Tejo e o Sul. De Sines a Sevilha, de Santarém a Huelva, de Setúbal a Cáceres. Conheceu os caminhos velhos quando ainda eram só caminhos velhos que ligavam as terras velhas. Aprendeu segredos e bruxedos com a avó que levou com ele para a cova. A avó que o criou e a quem ele sempre conheceu por velha. Dizia que tinha nascido no tempo da Rainha Pia. Também ele nasceu no tempo dos reis, nasceu exatamente no último dia de vida do último rei.
A velha criou-o num berço de pele de égua pendurado como uma cama de rede debaixo da carroça. Aprendeu a montar nu ainda antes de aprender a andar vestido, era por isso que nenhum cavalo o desmontava. Bebeu água dos ribeiros chupando pelo tubo feito da traqueia de um garanhão, que morreu de velho depois de ter coberto mil éguas, por isso da garganta dele saíam vozes a que os outros cavalos obedeciam. Tomou banho com a urina de uma égua virgem com o cio, por isso todos os cavalos o seguiam.
Estas coisas secretas e outras ainda mais secretas, ouvia-as eu a ele, ao João Cigano.
Ouvi-as num tempo remoto em que no mundo os adultos eram gigantes e eu quando olhando em frente vi as pessoas pela altura dos joelhos. Num tempo em que passava a eternidade das tardes de verão sentado no conforto seguro do colo do meu avô. O meu avô era amigo do João Cigano. Naquelas tardes de verão, sentavamo-nos os três no pial da casa, à sombra das paredes, a ver os carros e as pessoas passar. Eles a falarem de coisas antigas e eu a ouvir. Falavam de cavalos, de touros, de contrabando e de fugas à polícia. E eu, menino a beber-lhes as palavras.
Quando o João Cigano, veio para o Barreiro, veio fugido à guarda. Foi por causa de uma situação mal explicada de um cavalo baio em Montemor, que disseram que ele vendeu... e que depois envenenou porque o comprador não lhe pagou o combinado. Sei que é mentira, porque o João Cigano gostava e era irmão de cavalos e nunca faria mal a nenhum deles.
Por isso é mentira que o João Cigano tenha envenenado um cavalo.
A verdade é que chegou ao Barreiro, já passava dos trinta e vinha a fugir do passado e a querer fazer  futuro. Deixou nas estradas perdidas mulheres que ficaram esquecidas e muitos filhos que ao longo do tempo foram chegando e que por cá alguns ficaram.
A sorte travessa deste cigano ditou que dois dias depois de ter chegado, ao final da tarde, se cruzasse com uma patrulha a cavalo da guarda republicana. A guarda passava e o João na rua, desprotegido sem porta para entrar nem sítio para se esconder. Tarrenego!
Para felicidade do João e infelicidade momentânea da guarda, um dos cavalos da guarda, um garanhão negro, lindo imenso e luzídio, que transportava um dos praças ratinhos importados para impor a ordem salazarenta na vila e na fábrica, dá em saltar e espernear. Terá visto bicho ou cheirado cobra ou sentido assombração. Não sabemos porquê e há várias versões. O que é certo é que, o garanhão onde o guarda beirão ia se assustou e deu em pinotear.
O cavalo em si, lindo mas pouco dado a montarias, também não seria de fiar, daí o cabo o ter atribuído a praça novato que vinha lá da escola da guarda ainda a falar axim.
– Para aprender que a vida também dá coices – terá dito o cabo aos praças mais velhos...
Quando o cavalo se assustou, saltou e escoiceou.
O praça da guarda ainda tentou segurar-se em cima da cela e em vez de dar arreata ao cavalo para que corresse, quis travá-lo puxando para trás a cabeça ao mesmo tempo que com as pernas e botas esporadas apertava a barriga do animal. O inevitável aconteceu e não durou cinco segundos lá em cima. O guarda no chão e o cavalo no ar. A assistência a rir, o cabo da guarda zangado a exigir ordem e os outros guardas da patrulha a tentarem acalmar as montadas que o medo, todos sabemos, é um mal contagioso. E todos os cavalos da patrulha se agitaram.
O garanhão solto a saltar depois num furioso galope na direção à Baixa da Banheira. A correr pela estrada em contra-mão. Lindo cavalo negro, que por milagre esquiva uma camioneta de peixe que vinha a virar a esquina em eventual excesso de velocidade. Voltou o cavalo a galope na direção do resto da manada dos cavalos e éguas com GNRs em cima. O pânico foi geral. Com cavalos, éguas e guardas a saltarem a procurar abrigo numa estrada toda aberta só com casas a fechar.
No meio desta confusão toda, o João Cigano, sem saber bem porquê falou... Ou melhor, gritou. Nem sequer gritou. Vocalizou um som gutural que, apesar de bem sonoro, poucos ouviram mas que travou o garanhão instantes antes de chegar à manada. O cavalo em galope solto, travou a quatro patas e parou a escassos metros do ajuntamento desordenado. O bicho olhou para o cigano, baixou a cabeça e veio a andar devagar mas ainda nervoso a bater com as patas no chão. O cigano ainda estava encostado à parede a olhar para o cavalo com os olhos semicerrados e a boca a falar baixinho como que em segredo.
Aí a um metro da parede e do homem, o cavalo parou, levantou a cabeça e relinchou como se falasse ou desafiasse ou o cumprimentasse. O João, que tinha os braços cruzados com as mãos debaixo dos sovacos, sorriu e falou baixinho para o animal. O cavalo ao ouvir o cigano baixou a cabeça e aproximou-se mais. Neste momento, para espanto total de todos os presentes, incluindo pessoas, cavalos e guardas, o João Cigano estendeu as mãos. O cavalo que há minutos era o mais selvagens das feras, veio com a boca de veludo e a língua áspera lamber os dedos do cigano.
Isto foi assim mesmo que aconteceu aqui nas ruas do bairro onde vivo e foram muitas as testemunhas que viram.
O João, constrangido com a situação, pegou na arreata caída do cavalo e a passo foi dá-lo ao praça que ainda se sacudia envergonhado da queda.
Sem uma palavra, passou-lhe o cavalo e desapareceu na esquina.
Mas já estava feito.
O acontecido correu mais depressa pelas ruas da vila do que o galope do cavalo. Nessa mesma noite, o temido sargento da guarda, que não gostava de ninguém a não ser dele próprio, da Nossa Senhora, do Salazar e dos cavalos, deu ordem que queria falar com esse cigano.
-        Sempre quero ver se é como vocês, suas bestas incompetentes me estão a contar. Quero esse cigano amanhã de manhã aqui no posto.
Assim mesmo na delicadeza que sempre o caracterizou, o sargento falou para o cabo e para os dois praças mais velhos.
Passaram-se dois ou três dias e o cigano andou sumido, sabe-se lá por onde...
Mas como o Barreiro é quase uma ilha, e nos anos quarenta do século XX era ainda mais pequeno, o que tinha de acontecer aconteceu: uma manhã de sol, à porta da vinícula, estava o João desprevenido a beber um branco e a conversar sobre as melhores luas para namorar, quando passou um dos guardas, desfardado e de folga. Olhos de informador atentos a tudo, reconheceu o cigano do cavalo. Homem de poucas falas e de menos leituras, pouca coragem física mas de grande virtude moral e alguma esperteza... mal cruzou a esquina, correu direto ao posto da GNR a avisar os que estavam de serviço.
Nem cinco minutos depois, chegava o jipe com o cabo e três praças para levarem o cigano ao posto.
-        Ai a minha vida!!! Que eu nã fiz nada para me levarem preso!
-        Quem é que disse que vais preso. Vem connosco que o sargento Seia quer falar contigo!
-        Ai... mas eu não conheço o senhori! Não tenho nada para falar com eli... deve ser engano... Nós os ciganos somos todos parecidos... Ê tenho um primo que é quase iguali...
-        Não é engano nenhum. É contigo que o sargento quer falar por causa do cavalo.
Ao ouvir falar no cavalo, o João viu a sua vida a andar para trás...
Pensou que fosse por causa do cavalo que vendeu e que depois apareceu morto e que diziam que ele tinha envenendo. Analfabeto, mas inteligente, o cigano fez o que mais sensato há a fazer quando vamos ao posto da guarda sem sermos nós a decidir a que horas vamos: ficar caladinho e esperar que a má hora passe. 
Não esperou muito. O sargento Seia, homem grande e de voz grossa, mal viu o cigano fanzino a entrar com os seus homens, começou logo aos gritos que se ouviam ao longe.
-        Então tu é que és o cigano que fala com os cavalos?!?! Sempre quero ver isso. O Valente, o garanhão preto que desmontou o praça, realmente tem mau feitio mas deixa-se levar... mas quero ver-te a falares com o meu Relâmpago.
O Relâmpago era o cavalo do sargento Seia.
Cavalo lindo e bravo. Todo branco com meias castanhas nas mãos. Todo ele fúria e elegância em estado bruto. Só se deixava montar pelo próprio sargento Seia, que fazia questão de ser ele a alimentar o animal e a escová-lo. Até para limpar a box do cavalo tinha de ser o sargento a levá-lo pela arreata. O sargento Seia não limpava a box que um sargento não limpa merda... mas fazia o favor de tirar de lá o Relâmpago...
Cavalo bravo como um touro de lide e bonito como a mais bonita das mulheres.
O João Cigano, ao contrário do que o sargento esperava, não se assustou com a ideia.
Antes pelo contrário. Quando percebeu que afinal não era por causa do cavalo de Montemor... até respirou de alívio.
Baixou a cabeça e seguiu com o chapéu nas mãos atrás do sargento pelos corredores do posto até à cavalariça.
-        É aquele ali!
Informaram
O João deu a volta evitando passar por trás do animal designado. O cavalo relinchou e bateu com os cascos fortes no chão de pedras. Os guardas e o sargento riram entre si.
O cigano aproximou-se devagar e falou baixinho umas palavras entre o calon, o espanhol e o alentejano. Depois afagou o focinho do Relâmpago. E o Relâmpago baixou a cabeça e lambeu-lhe as mãos. Voltou a falar-lhe baixinho ao ouvido. E o cavalo respondeu com um assentimento e uma cabeçada no cabresto e nas arreatas penduradas na parede.
O cigano enfiou o cabresto e ajustou as correias no cavalo.
-        O senhor guarda quer que o monte ou é só para lhe por cabresto?
-        Não é senhor guarda é senhor sargento. Monte o Relâmpago que eu quero ver!
Ainda sem acreditar no milagre a que assistia, o sargento tentou testar.
-        Monte sem sela, se o cavalo é manso consigo, deixa-o subir...
-        Aí senhor sargento, mas sem sela, faz muita força nas costas do bechinho!
-        Monte sem sela como eu lhe estou a dizer porra!
-        O senhori sargento é que manda...
E assim fez. Com agilidade saltou para cima do cavalo segurando as arreatas e gingango apenas com as ancas, fez o cavalo fazer marcha-atrás na box. Depois, de cima do cavalo, perguntou ao sargento
-        Agora quer que eu vá onde?
-        Saia com ele e dê uma volta aqui no pátio.
Montado no bonito e valioso cavalo, o João Cigano, por momentos ainda pensou em sair a galope pelo portão aberto e só parar em Badajoz para negociar o animal.
Mas aqueles seriam maus tempos para ir a Badajoz... e o João já tinha problemas de sobra para comear outros....
Por isso fez o que lhe mandaram.
Depois desceu e avisou o sargento.
-        O cavalo é lindo, mas tem uma fraqueza no pé esquerdo... ou é jeito antigo que deu ou foi ferradura mal posta... mas como ele está todo bem calçado... deve ser um jeito antigo. Ligue-lhe a pata com malvas frescas por dentro da ligadura que isso passa-lhe!
-        Tens razão cigano. Foi um jeito que deu aqui há duas semans a saltar a ribeira de Coina. Se achas que sabes curar o cavalo, voltas cá amanhã e vem tratar dele.
Foi assim que o João Cigano ficou no Barreiro e se tornou veterinário exclusivo do sargento Seia.
Os anos foram passando e o João não se pode dizer que fosse amigo do sargento da guarda... mas o que é certo é que o homem respeitava o João Cigano e era a única pessoa a quem pedia conselhos.
Também sei que, quando o João Cigano pedia, o sargento Seia lhe fazia favores. Documentação. Passaportes, bilhetes de identidade e papéis desses. O João contava ao sargento uma narrativa com um primo cigano fugido a cavalo e perseguido por marido cornudo… o sargento ria-se e passados uns dias aparecia com os documentos para entregar ao cigano... só era preciso colar a fotografia...
Nem sempre os documentos eram para ciganos. Mas sempre foram para perseguidos e quase sempre perseguidos por cabrões... porque os pides eram todos uns cabrões. Assim aprendi, assim vos conto.
Mas essa seria outra história. O João Cigano, contava ao sargento da guarda metade verdade-metade mentira. Dizia a brincar: sou cinquenta por cento sério.
Quando eu o conheci, o João Cigano tinha mais de oitenta anos.
Ensinou-me que cavalo, navalha e mulher não se emprestam a ninguém.
Já muito velhinho, quase a partir para a terra dos eternos galopes, queixava-se da comida do hospital do Barreiro e dizia “cavalo de campo não bebe água do balde”....
Dias antes de partir, disse: Prá semana já não estou cá. Melhor assim, a morte abre a porta da fama e fecha a janela da inveja!
Era um sábio o João Cigano.



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