sábado, 4 de fevereiro de 2017

ENTREVISTA | Cristina Aleixo aborda a violência doméstica no livro "Por Amor, Tudo"


Texto e fotos: Madalena Condado

Estive à conversa com a escritora Cristina das Neves Aleixo para a conhecer um pouco melhor e o que a motiva a escrever. “Joaninha e o Jardim encantado” foi o seu primeiro livro, uma estória para crianças publicada em 2015. Já no ano passado lançou o seu segundo livro, “Por Amor, Tudo (?)” onde aborda o tema da violência doméstica.

A impressão com que fiquei da Cristina, foi que, das novas escritoras do panorama nacional português ela é talvez das poucas que consegue escrever sobre tudo não tendo um género que a defina. De uma forma que só ela poderá compreender coloca-se na pele das suas personagens, aprofunda os temas que aborda com intensidade seja através de entrevistas, consulta de documentos e muita imaginação. Acredito que esta sua faceta camaleónica tem tudo para nos continuar a surpreender. Para quem ainda não a conheça deixo aqui algumas das questões que tive a oportunidade de lhe colocar, tendo-lhe pedido posteriormente uma resposta à decisão da semana passada do Colectivo de Juízes da Relação de Évora.
Podem seguir o seu trabalho através da sua página.

Num futuro próximo gostaria de escrever somente dentro de um género literário? Se sim, qual?

Não, não gostaria. Sempre gostei de escrever em vários géneros, desde a prosa à poesia e divirto-me imenso a fazê-lo. Tanto escrevo uma crónica reflexiva como uma série de poemas; uma estória de amor ou uma de violência; um conto cómico ou um juvenil…gosto da liberdade e poder alternar entre géneros literários é quase como que, quando termino uma estória, me descole das personagens em que me embrenhei durante o seu tempo de criação, porque eu vivo-as intensamente e a todos os seus sentidos e, por isso, sinto depois uma necessidade de descansar, de mudar de cenário. Além disso, essa mudança permite, também, a certeza de ter, realmente, acabado aquele trabalho e estar pronta para o próximo e sem a sensação de estar a criar algo que é mais do mesmo.

Qual foi a receção que teve a este seu último livro que trata de um tema tão brutal, mas infelizmente tão atual?

Tem sido muito boa. As opiniões sobre o que escrevi, como o que escrevi, têm sido extremamente positivas. Inicialmente houve alguma surpresa, pela seriedade do tema, creio, e porque o meu trabalho anterior tinha sido um conto infantil, mas após a leitura da estória os elogios têm-se sucedido e já recebi inclusivamente, mensagens de ex-vítimas de violência doméstica a agradecer-me por ter escrito este livro – este é o meu maior prémio: poder dar voz a quem não o pode fazer e ver o seu genuíno reconhecimento. Depois há os elogios das outras pessoas que dizem ter-se arrepiado – sim, é o termo recorrentemente usado -, ao ler determinadas passagens e que não descansaram enquanto não terminaram o livro, de tal modo estavam enredadas na estória. Isto é fantástico. Não é isto que todos os autores procuram? Arrancar sensações aos leitores? Levá-los lá, sem darem por isso, ao cenário que criaram?

Planos literários para o próximo ano?

Eu estou sempre a escrever qualquer coisa – não dou a conhecer tudo o que escrevo, obviamente; aliás, é mais aí contrário -, tenho necessidade de o fazer e gosto de criar sem grandes planos, sem datas pré-definidas, pelo que ainda não sei. De uma coisa tenho a certeza: se houver, será, novamente, num registo diferente e espero que volte a surpreender e a agradar os leitores.

A Cristina que escreveu sobre a violência doméstica e que teve a oportunidade de conversar com algumas das vítimas. Como interpreta a decisão do colectivo de juízes da relação de Évora?

Não tenho por hábito ajuizar sobre situações de que não disponho todos os elementos, principalmente em questões tão melindrosas como esta. No entanto, não sendo formada em direito e tendo, apenas, os conhecimentos do bom senso comum e mais alguns que adquiri na minha pesquisa para escrever o livro, digo, convictamente, que qualquer acto que resulte no sofrimento físico ou psicológico de outro é violência. Quando isto acontece entre um casal passa a chamar-se de violência doméstica, como forma de facilmente se identificar o tipo de violência em questão, apenas, não é sinónimo, de alguma forma, da ausência dela, logo, é violência, sim, e o agressor deverá ser punido de acordo com os seus actos. No meu livro há uma passagem em que a personagem principal é forçada a ter sexo, de forma violenta sem contemplações para com a sua recusa e sofrimento físico, com o marido: é uma violação. O facto de ser o marido não o isenta de culpa neste sentido, muito pelo contrário, creio. Incluí este aspecto na estória de propósito, pois a grande maioria das pessoas, provavelmente, à luz daquilo que ouvimos dizer muitas vezes, pensará que existe uma obrigação da mulher em satisfazer o seu parceiro sexualmente e que, neste caso, não é violação. Eu quis pôr leitores a pensar sobre isto, até porque isto existe e não é muito falado – fala-se mais das tareias e afins. Voltando à decisão do colectivo de juízes da relação de Évora, creio que todos sabemos que a lei e a sua aplicação têm grandes lacunas, pois vemos isso acontecer quase todos os dias, infelizmente. Por isso é tão importante falar sobre o tema e denunciar imediatamente as situações que existam – e qualquer um o pode fazer pois é um crime público -, de modo a mudar as mentalidades e o sistema. Mais do que criticar devemos ser pró-activos e trabalhar para a mudança.

CRÍTICA LITERÁRIA | " O Carrinho de Linha Azul", de Anne Tyler


Crítica Literária

Texto: Isabel de Almeida 


O Carrinho de Linha Azul, de Anne Tyler, é um romance contemporâneo de cariz assumidamente literário, com uma prosa rica em detalhes descritivos em estilo intimista e levando os leitores a espreitar a narrativa familiar de uma família Norte Americana da Classe Média - os Whitshank.

Abby e Red Whitshank assumem o protagonismo da trama, enquanto Patriarcas do núcleo familiar composto por quatro filhos: Denny, Amanda, Jeannie e Stem, iniciando-se a narração nos anos 90.

Assumindo as rédeas da gestão das dinâmicas familiares e desejando ter uma família perfeita, Abby cria uma imagem mental idealizada da sua prole, tentando, por exemplo, desculpabilizar a ligação distante e ocasional do filho Denny à família. 

Denny  é, sem dúvida, a personagem mais marcante da história já que mantém com os pais e irmãos uma relação ostensivamente disfuncional, revelando-nos falhas na construção da sua identidade em termos psicológicos (nomeadamente, assumindo perante os pais a sua homossexualidade, mas tentando depois ignorar este aspecto, empenhando-se em relações afectivas de curta duração com diversas mulheres) e também deixando aos leitores pistas importantes quanto aos frágeis vínculos afectivos perante os familiares, com os quais nunca chega a identificar-se.

Vamos também acedendo a diversos episódios de anteriores gerações familiares, com recurso a analepses narrativas, técnica  esta que nos demonstra a enorme capacidade criativa de Anne Tyler e a sua mestria. Achámos bastante interessante a perspectiva do narrador não participante que, por vezes, se dirige directamente ao leitor, peculiaridade que mais prende e envolve o leitor no fio que vai sendo desenrolado deste "Carrinho de linha azul" [O título permitiu uma deliciosa tradução literal, nem sempre possível em Português].

O Carrinho de linha azul revela ser uma metáfora perfeita do curso de vida de toda uma família, ou de cada um dos seus membros individualmente considerados, sendo que o fio poderá apresentar mais ou menos nós, consoante os desafios e problemas que possam aparecer na vivência do dia a dia.

Emotivo, engenhoso, envolvente e muitíssimo bem escrito. Uma lufada de ar fresco neste início de ano.

Ficha Técnica:



Autor: Anne Tyler


Edição: Janeiro de 2017




Páginas: 376

Classificação atribuída no GoodReads/Blogue Os Livros Nossos : 4/5 


Género: Romance Contemporâneo


Nota de redacção: O exemplar da obra foi gentilmente cedido pelo editor para artigo de crítica literária.