sábado, 30 de novembro de 2019

TU, de Mafalda Pascoal















Quero dizer-te
que acredites em ti
Para depois
Acreditares nos outros
Dentro de ti
Existe tudo o que procuras
Porque tu és
Uma partícula Divina
Como tudo o que vês, ouves ou sentes
Tu és
Tudo e nada
Acredita em ti
E assim serás invencível
Nada nem ninguém
Te poderá transpor
Sê sempre positivo
Anda sempre em direcção à evolução
e leva alguém contigo
Acredita e ensina
Que cada um de nós
É um mundo maravilhoso
incansável e sublime
Eleva-te
Mistura-te com as estrelas
E nelas, abastece-te de luz
Brilhante, cintilante
e serás luz aqui
No meio das trevas
Que se desvanecerão
à tua chegada
E tudo se transformará
E sentirás toda a subtileza
À tanto procurada
E finalmente achada
E assim
Jamais duvidarás
que existe dentro de ti
Tudo o que procuras
Porque te encontraste
E acreditas em Ti
Bem hajas!   

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O TEU SORRISO, de Anita Dos Santos















O teu sorriso pode mudar o mundo, mas não deixes o mundo mudar o teu sorriso”.

Encontrei esta frase numa parede, num estabelecimento público.

Dei comigo a pensar na verdade profunda que elas contêm, nas suas duas vertentes.

Se encararmos quem nos está próximo com um sorriso no rosto, temos muito mais probabilidades de ter esse sorriso correspondido, de não receber uma má palavra, uma cara feia, ou até de levar alegria e luz ao dia de quem temos na nossa frente.

Essa é uma atitude que procuro ter para com os outros, mesmo sabendo muitas vezes de antemão que quem tenho à minha frente, não entende esta minha forma de estar. Mas o sorriso, como a salvação, dá-se a toda a gente.

Por outro lado, - a segunda metade da sentença – pode ser encarada de duas formas.

A primeira delas, é não permitirmos que a má vontade, a maldade e o egoísmo dos outros nos leve a modificar essa nossa forma de ser. Deixemos que essas suas maneiras de estar na vida não alterem o nosso sorriso.

Não posso, de qualquer modo deixar de pensar, que esta segunda parte da sentença pode ter uma outra aplicação relativamente ao que o Homem está a fazer com o Mundo, que nos leva a que cada dia tenhamos menos motivos para sorrir.

As notícias do Mundo são cada vez mais desanimadoras. O Homem não se consciencializa de que existe um só Mundo. Todos os dias se houve dizer que os níveis da água estão mais elevados, que há mais espécies em vias de extinção, mais espécies em perigo ou até mesmo desaparecidas para sempre.

O sorriso morre um pouco cada vez que ouço uma destas notícias.

Não quero pensar num Mundo sem o tigre-de-bengala, sem o lobo vermelho ou o elefante, isto só para mencionar alguns que fazem parte de uma longa lista de espécies ameaçadas como criticamente em perigo ou em perigo de extinção.

Se quisermos falar do elefante, falando apenas de um dos já mencionados, não podemos esquecer no quão ele é necessário para a floresta. Sem ele, a floresta não sobrevive, pois é o elefante o grande jardineiro da floresta.

E o sorriso, morre um pouco mais.

Queremos colocar sorrisos no rosto das nossas crianças?

Claro que sim! Ensinando-as a serem Mulheres e Homens conscientes, mas para que isso suceda, temos que cuidar do nosso Mundo, para que ele não apague o nosso sorriso.


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

CAPILANO, de Fernando Teixeira















“De repente, ali estava ela, a famosa ponte suspensa e a expressão facial de Tracy passou num ápice do regozijo para o pânico. Não é nada de especial, dissera o marido. Pois.

– Não estás a pensar que eu vou atravessar isso, ou estás? – perguntou, virando-se para Paul, ela com os olhos muito abertos, ele com um sorriso malicioso. – É que, nem penses!

– Qual é o problema, Tracy? Agarras-te bem. Vê só quantas pessoas estão a atravessar a ponte.

– Anda lá, mãe! – gritou Kevin. – Vai ser muito giro!

Com 137 metros de comprimento, a Capilano Suspension Bridge atravessava o Rio Capilano a 70 metros de altura daquele. Tendo sido originalmente construída em 1889, a ponte foi totalmente reconstruída em cinco dias, no ano de 1956.

– Anda lá, Tracy. Vamos! – insistiu Paul. – Agarras-te a mim. Não tenhas medo.

– Vem, mãe! Vem! – gritava Kevin, que já tinha começado a descer os degraus que antecedem a ponte.

Um vigilante, dentro de uma guarita, apercebendo-se do que se passava, voltou-se para eles, sorrindo. A quantas cenas daquelas, ele não assistiria todos os dias?

Por fim, Tracy respirou fundo e talvez aquele ar puro, enchendo os seus pulmões, lhe tenha dado coragem, pois começou a descer os degraus atrás de Paul que a segurava por uma mão. Quando chegaram à ponte propriamente dita, Tracy segurou-se firmemente com a outra mão ao cabo de aço que, um de cada lado da ponte, garantia a suspensão da mesma e estava ligado ao passadiço por uma rede de protecção lateral. Ela nem acreditava no que estava a fazer!

Começaram a atravessar a ponte cautelosamente. Pouco mais de uma dezena de metros andados e até Paul começava a ficar um pouco impressionado com a altura a que estavam do solo, sobre as copas das árvores, mas não podia dar essa sensação de insegurança à esposa, porque ainda estavam bem longe do meio da travessia e ele queria chegar ao outro lado. Como circulavam várias pessoas na ponte, esta abanava consideravelmente, o que deixava Tracy à beira de um ataque de nervos. Essa oscilação impedia que os transeuntes conseguissem avançar em linha recta, dando a cómica impressão de que todos se encontravam ébrios e ainda nem sequer eram horas de almoço.

Quando chegaram sensivelmente ao meio da ponte, o cenário era avassalador e a altura também! A setenta metros acima do rio, ouvia-se o rumor das águas em baixo, o murmúrio do vento nas árvores e a chilreada dos pássaros. Quando as restantes pessoas se afastavam, só se ouviam esses sons da natureza. Olhando em frente, a paisagem do canyon do Rio Capilano, com as suas águas revoltas correndo entre margens escarpadas revestidas de imponentes árvores coníferas, era magnífica. Paul imaginou a liberdade que os pássaros deveriam sentir, voando num cenário assim tão belo, sem qualquer medo das alturas… No entanto, eles eram humanos e a sensação de insegurança era máxima, sentiam-se a flutuar no vazio, ligados ao mundo físico apenas por aquele estreito passadiço oscilante. Tracy nem se atrevia a olhar para baixo. Foi aí que Kevin, já esquecido da resistência que a sua mãe oferecera para atravessar a ponte, teve uma ideia brilhante que qualquer adolescente teria, mas que a deixou em estado de choque: começou aos pulos.

– PÁRA, Kevin!!! – gritou a mãe, com os olhos quase a saltarem das órbitas.

Paul ficou com a percepção de que alguns pássaros tinham saído das árvores nas imediações, esvoaçando assustados com o grito de Tracy. Sentiu-se um pouco embaraçado quando viu que várias pessoas olhavam para Kevin e para eles com ar reprovador, pelo que lhes fez um breve aceno com a mão, pedindo-lhes desculpa pela acção do filho.”

in Não Poderia Ter Sido De Outra Forma

NOCTURNO ARCO-ÍRIS: A BLANCHE, A NEVE E OS TRÊS ANÕES, de Helder Menor














No frasco estavam os cogumelos acabados de colher que depois tinha sido cobertos com mel até cima. Foi por inícios de novembro que apanharam os cogumelos na serra do Caldeirão. Depois disso, deixaram o frasco dos cogumelos uns meses no escuro de uma dispensa naquela casa de pedra sem luz elétrica. Talvez tenha sido nesse período que a magia aconteceu ao mel e que os anõezinhos entraram pelo frasco. Anões não, gnomos. O que seja…

Ofereceram o frasco ao Zé numa tarde de verão. Vinha dentro de um saco preto de flanela atado com um cordão amarelo. Disseram-lhe que não podia apanhar luz. O frasco foi uma espécie de pagamento de uma boleia que ele deu entre o Rogil e Lagos. O dono do frasco, que foi quem apanhou os cogumelos, explicou que não tinha dinheiro para contribuir para a gasolina, mas que tinha um mel mágico com cogumelos e que oferecia. “Estes são cogumelos especiais e o mel que aqui está dentro tem poderes mágicos de promover o amor e a harmonia nos encontros.” Não falou em gnomos.  O Zé sorriu e agradeceu educadamente, pôs o frasco dentro da mochila e seguiu viagem. Nunca mais se lembrou do frasco de mel mágico nem dos cogumelos que lá moravam dentro. 

Passou o verão, e sem que ninguém fizesse nada para isso acontecer, todos entrámos pelo inverno passando por um outono esquizofrénico entre dias de calor e chuvadas de granizo. 

Nesse inverno remoto, apareceu ao Zé a oportunidade de passar uns dias nos alpes franceses. Era para tomar conta da casa de uns suecos riquíssimos para quem uns amigos tinham trabalhado. A casa ficaria vazia duas semanas incluindo o natal e a passagem do ano, período em que os donos iriam à terra deles lá na Suécia visitar a família e tratar de burocracias. A função do Zé era ficar na casa e cuidar dos animais. Os suecos tinham dos dois enormes são Bernardos que tinham tanto de grandes como de pacíficos, o Zé devia cuidar dos cães, dar de comer à gata, alimentar as tartarugas e os peixes no aquário. No acordo, negociado por carta, porque ainda não havia telefones e os e-mails eram uma coisa rara, ficou estabelecido que lhe pagavam as viagens até ao alto da montanha e lhe deixavam a dispensa recheada , incluindo queijo e vinho e tinha ainda a possibilidade de abrir conta na mercearia da aldeia mais próxima, que distava uns três quilómetros. Os suecos quando viessem pagavam tudo. 

Claro que ele aceitou.

Por volta de vinte de dezembro, pegou na mochila e fez-se à estrada. Voou enlatado sobre Portugal, sobre Espanha e sobre parte de França. Já todos se entretinham na histeria da natividade. Em Paris apanhou um comboio que o levou durante três horas através dos subúrbios e província nevada. Numa vilazinha simpática, apanhou uma camioneta que durante duas horas percorreu campos brancos como os postais ilustrados subindo e descendo montanhas. Inesperadamente o autocarro parou numa aldeia e o motorista veio pessoalmente dizer-lhe que era para ele descer ali. Depois telefonou para casa do homem do táxi. Esperou no café aquecido que aparecesse a quatro ele que servia de táxi e que o conduziu montanha acima até ao seu destino. O motorista quando o deixou, deu-lhe o molho de chaves que incluíam a chave do portão, da casa e outras que teria muito tempo de descobrir para o que seriam e que ele nunca viria a usar.  

A casa era como viu nas fotografias, só que ainda mais linda porque estava emoldurada pela neve.  Os cães correram a cumprimentá-lo. Eram gigantes gentis e lamberam-no durante o tempo todo em que percorreu o jardim, procurou a chave certa e se esforçou a tentar abrir a porta da cozinha. Só pararam quando fechou a porta atrás dele. Entrou na casa, pousou a mochila e depois de ir fazer o chichi de reconhecimento e marcação de território, foi fazer o reconhecimento interior. Era enorme. O aquário era do tamanho de uma pequena piscina. As tartarugas vorazes no seu lago de água quente. A gata ignorou-o aristocrática. Tapetes do tamanho de relvados de futebol e salas do tamanho de parques de estacionamento. Quadros nas paredes e esculturas colocadas estrategicamente para fazerem efeitos de luz. Ele foi instalar-se no quartinho que os donos daquele império tinham reservado para ele. Um quarto pequeno e praticamente independente que dava diretamente para a cozinha. Tinha uma salamandra que tratou de acender com uma casa de banho minúscula incluída. Lá fora fez-se noite. Saiu para fumar e voltou o ataque de carinho dos dois cães. Apesar do afeto trocado, o frio que se pôs empurrou-o para dentro para o calor da salamandra. Eram seis da tarde. Tentou ler. Aborreceu-se. Já estava noite escura desde as cinco horas. Como tinha fome decidiu ir jantar pão com queijo e vinho. Jantar que diga-se pode ser, por si só, o mais requintado dos manjares. Mas mesmo os melhores dos vinhos, bebido sem partilhar, tem sempre um travo ácido a solidão. Aborreceu-se outra vez e deu-lhe o sono, às oito foi para a cama e acendeu uma televisão que transmitia concursos em francês. Eram nove da noite e já o Zé dormia profundamente. 

Acordou exatamente às quatro horas e dezoito minutos. Acordou só porque sim. Os números amarelos no rádio-despertador iluminavam o quarto. Acordou sem perceber porquê, mas acordou definitivamente. Não tinha mais sono.... Vestiu o casacão por cima da camisola do pijama, calçou as botas e saiu para fumar e ver a noite na madrugada. Nem luvas, nem gorro nem mais agasalhos. Claro que não fumou até ao fim. O frio era tanto que doía nos ossos das mãos e na cara. Voltou para dentro, voltou a deitar-se e dormiu mais umas horas depois de conseguir aquecer. 

De manhã tinha arrepios de frio e doía-lhe o corpo todo. Ficar ali doente, sozinho naquela pasmaceira é que não! Decidiu fazer um chá de limão com um dos dois limões que tinha visto na cozinha. Fez o chá e procurou mel para adoçar. Não havia mel na cozinha nem na dispensa. A dispensa abastecida para alimentar um exército sem um frasquinho de mel.... Então lembrou-se do frasco que tinha ficado esquecido na mochila. Só reparou que tinha trazido o mel dos cogumelos quando tirou a bolsa dos artigos de casa de banho. O frasco do mel viajou clandestino dentro do saco de flanela sem que o Zé desse por isso. Serviu-se de uma colher de sopa. Os cogumelos eram minúsculos e estavam empapados no mel. Que se lixe, pensou, vai com cogumelos e tudo, que o que não mata engorda. Com o dedo provou o mel, achou-o doce com um travo meio acido meio picante e gostou. Pôs mais outra colher. Para temperar, acabou de encher a cafeteira fumegante com uma dose dupla de conhaque. Depois recostou-se num daqueles sofás suecos onde cabiam seis pessoas, abriu o livro e bebeu duas chávenas cheias. A primeira a escaldar a segunda morna.   

A bebida não o matou, mas o chá fez-lhe um efeito inesperado. Primeiro deu-lhe calor, um calor bom pelo corpo, como se tivesse estado umas horas de um dia de verão na praia e o sol o tivesse aquecido sem chegar a queimar. Depois ficou bem-disposto, cheio de energia e vontade de fazer coisas. Tratou de alimentar os animais. A seguir organizou a roupa que tinha ainda metida na mochila. Sentia vontade de sair para a neve e fazer coisas ao ar livre. Agasalhou-se como se fosse para uma expedição polar e foi para o jardim. Decidiu partir lenha para a salamandra que pretendia manter acesa durante as próximas duas semanas. Não que fizesse falta mais lenha partida, porque havia na garagem um monte de lenha rachada especificamente para a salamandra..., mas apetecia-lhe dar aso àquela energia e fazer um trabalho que implicasse atividade física. Ao lado da pilha de lenha, um machado congelado preso num cepo. Pegou no machado e começou o trabalho de rachar os troncos grandes em pedaços mais pequenos. Estava nisto há cinco minutos quando eles apareceram. 

Eram três. Pequenos, da altura de um isqueiro de plástico. Vinham vestidos de cores vivas a caminharem na sua direção. Primeiro pensou que eram animais. Depois percebeu que eram pessoas pequeninas. Chegaram e encostaram-se a um tronco que ele tinha acabado de partir. O tronco que não era maior que uma bota de um homem, ao lado deles parecia ter a dimensão de uma casa. O mais velho, falou-lhe em português:

– Bem-vindo à montanha Zé.

Ele fingiu que não ouviu. Agiu como se não fosse com ele. 

Mas acontece que não havia ali mais ninguém e muito menos outro tipo que se chamasse Zé. De qualquer maneira ficou calado.

– Se te apetece rachar lenha, e uma vez que tens lenha rachada para a salamandra na garagem, porque é que não desces a estrada, e vais a casa da Blanche e lhe vais dar uma ajuda? Ela vive sozinha e todos os dias precisa de partir lenha para acender o fogo...

Nisto, um dos outros dois, mais pequenino e inquieto, interrompeu

Ela tem uma banheira de madeira, que gosta de encher com água quente... ela tomava lá banho com o marido, mas como ele se foi embora para Paris e não voltou... ela agora não enche a banheira...

O que tinha sido interrompido explicou técnico:

A Blanche não enche a banheira, que se chama jacuzzi, porque a caldeira que aquece a água está avariada, tem a válvula do vapor desapertada... o marido dela fez de propósito antes de se ir embora, desapertou a válvula... aquilo arranja-se com uma chave inglesa que está dentro da caixa de ferramentas por baixo do alpendre, dá-se um jeitinho e já está!

E o Zé calado, só a ouvir. Até se pode dizer que estava com uma certa cara de parvo, ali a ver os gnomos a falarem sobre consertar caldeiras e ele no meio da neve com um machado na mão....

O gnomo mais velho, bateu com um cajado do tamanho de um palito no tronco onde os outros se encostavam e falou numa voz rouca e surpreendente sonora num corpo tão pequenino. Calaram-se os outros dois porque o que falava era o chefe.

O que se passa Zé, é que tu estás aqui sozinho, na flor da idade, tens vinte e três anos, chegaste ontem e já te estás a aborrecer disto. Trezentos metros abaixo, está a Blanche, também sozinha, a sofrer de mal de amor e de frios nocturnos nos seus trinta e seis bonitos aniversários celebrados... E foi por isso que nós viemos trazer-te este recado, que não é um recado, é mais uma sugestão: desce a estrada, vira à direita no caminho por entre as árvores, e vai visitar a Blanche.

O Zé não deu resposta.

Decidiu que não lhes ia responder. 

Definitivamente não ia alimentar conversas com estrunfes ou gnomos ou o que quer que fossem. Aquilo devia ser efeito da altitude. Espetou o machado no cepo, meteu o dedo no meio entre os dentes para tirar a luva, sacou de um sg gigante do bolso do casaco e sentou-se em cima de um tronco a fumar. 

Os gnomos, vendo que não havia ali mais conversas, viraram as costas e em fila indiana seguiram para trás do monte de lenha onde desapareceram. 

Desistiu de rachar lenha, mas a boa disposição não passou. 

Voltou para dentro, tomou um duche na casa de banho do seu quarto de criada e voltou a vestir-se para a expedição polar. 

Fechou o portão do jardim e desceu a estrada até ao carreiro que encontrou do lado direito entre pinheiros nevados. Entrou pelo carreiro e nem cem metros andou. Era uma casa pequenina de madeira. Do lado de fora, uma senhora loira e linda com luminosos olhos verdes tentava partir lenha com um machado demasiado grande para as suas pequenas mãos enluvadas de vermelho.  

O Zé, no seu francês de praia, perguntou se era a Blanche.

Era ela mesma.  

Ajudou-a com a lenha. Rachou troncos durante cerca de duas horas. Ela calada a vê-lo trabalhar. Depois convidou-o para tomar um chá que ele aceitou.

Ela tinha um jacuzzi enorme de madeira. 

Foi “herança do ex-marido”, que é alsaciano e de tão fascinado pela cultura japonesa foi viver para Paris com o mestre de kempo...O jacuzzi não trabalha. 

O jacuzzi estava sem funcionar porque dependia de uma caldeira que a Blanche disse estar avariada.  O Zé, voluntarioso soprou que talvez conseguisse resolver. No alpendre encontrou uma caixa de ferramentas e com a chave inglesa, apertou a válvula de saída do vapor. Depois acendeu o lume para experimentar, a ver se a caldeira funcionava. 

Funcionava. 

A Blanche ficou tão contente que decidiu ir logo tomar um banho no jacuzzi.

A água estava deliciosamente aquecida, o Zé pôs a mão para experimentar e também tomou banho. 

Acabou por ficar naquela noite que chegou cedo sem avisar e os apanhou aos dois no jacúzi. 

Na manhã seguinte, entre edredons e beijos, ela perguntou:

Como é que vieste aqui parar? Por acaso?

Não. Não há acasos. Foram os gnomos da montanha que me disseram. Apareceram três gnomos e disseram-me que precisavas de ajuda para rachar lenha, que tinhas a caldeira avariada e que te estavas a sentir só...

Ela riu-se e pensou que ele estava a mentir. 

O Zé também se riu e depois levantou-se. Comeu e saiu para ir lá acima à casa dos suecos dar de comida aos animais. Não se demorou. A Blanche ficou de fazer almoço e ele prometeu que trazia mel para a sobremesa. 

Lambuzaram-se por duas semanas no mel mágico. Viveram felizes para sempre até meio da segunda semana de janeiro que foi quando o frasco ficou vazio.  




quarta-feira, 27 de novembro de 2019

HA MOCE MARAFADE!, de MBarreto Condado















Esperava calmamente na estação dos caminhos de ferro em Entrecampos pelo Alfa Pendular que me levaria até à cidade de Faro. Avançava para o sul com o intuito de conquistar corações em terras de temperaturas inóspitas e gentes corajosas.

Foi uma viagem como sempre muito agradável, ar condicionado, serviço a bordo tudo o que necessitava antes de enfrentar o calor seco a sul.

“Próxima paragem Faro”

Acordava com uma calorosa voz a dar-me as boas-vindas a uma cidade que conheço tão bem. Contudo, quando o comboio parou e a porta se abriu fui recebida por um bafo que instantaneamente me fez lembrar Dante e o seu “vestíbulo do inferno”, também eu me encontrava como aquelas pobres almas, indecisa, porém ficar dentro da carruagem com o ar condicionado naquele momento deixara de ser uma opção.

“Atão moce, na t’espachas?”

A voz impaciente do senhor atrás de mim que queria ir à sua vida vez, fez com que me virasse para o encarar. Será que não conseguia perceber o meu dilema naquele momento?

“Está muito calor, estou a tentar ganhar coragem” – sorri-lhe

“Meceia tén calor? Iste né nada miga”

“Óme, pra quê tamanh’ademora”

Lá fora esperava-o uma mulher a olhar-nos curiosa, afastei-me para que o senhor passasse, sempre ganhava uns preciosos segundos.

O senhor ainda se virou para se despedir de mim.

“Adés moça, pr’ond’é que vás?”

“Vou para a ilha”

“A caminéte é já além” – apontou na direcção da minha já tão conhecida paragem da Eva, onde deixei e fui buscar muitos amigos que durante anos passaram férias comigo na casa da ilha.

A maneira como aquele homem falara relembrou-me do diversificado léxico algarvio.

“Obrigada!”- sorri e ganhei a coragem que não tinha para sair daquele pedaço de paraíso onde me encontrara nas últimas horas.

Sentia o sol queimar-me.

Caminhei até à doca procurando as sombras, o mesmo local onde tantas vezes atracámos os nossos barcos todos eles com nomes inesquecíveis: o “Hupylas”, o “Hukarassas”, o “Kesselyxe” e o último e mais potente “Kesselyxethudo”. Tinha muitas boas lembranças de toda a minha infância e adolescência e continuava a criar novas memórias sempre que o tempo me permitia usufruir da casa da ilha.

Tirara a primeira selfie para aborrecer os amigos que sabiam estar a trabalhar àquelas horas, ainda dentro do comboio enquanto usufruía de um chá de camomila e lia a última crónica de António Lobo Antunes na revista Visão, também ela um regresso às suas origens onde dividia o quarto com o seu irmão João.

A minha segunda foto já mostrava um pouco do meu ar e de como me começava a sentir debaixo daquele calor abrasador, não corria uma única aragem. Mostrava-me através das redes sociais em todo o meu esplendor, despenteada, sequiosa, encalorada e esfomeada ou como se diz cá e baixo: “o mé cabele tava cá d’um jête, sentia-me descabide com us olhes desbugalhades, estava cum muta fome tava na hora da bucha. já só queria quemer, e naquele momente até podiam ser alcagoitas, minduins, pitaxios, sarvejas geladinhas ou até mesme auga. Sentia-me marafade”. Infelizmente não podemos ser todas a Sara Sampaio (para grande infelicidade minha).

Não me vou alongar mais, antes que me gritem desse lado “Ah moça maldeçoade, tira-te já daqui pra qu’é na te veja na minha frente!” posso somente dizer-vos que o ponto alto da minha manhã seguinte foi tomar o pequeno-almoço (ou como se diz aqui em baixo o “quebra-jejum”) na pastelaria Gardy, desde sempre local de eleição do meu pai e ainda consegui arranjar uns minutinhos para me despedir da sereia da doca (que me confirmou nesse dia ser prima da sereia de Copenhaga e da sereia de Varsóvia).

Qualquer coisa me chama a atenção e me faz sonhar, o facto de gostar de viajar nos transportes públicos dá-me muito material de escrita, inúmeras ideias, por exemplo, o facto de na minha carruagem não existir o lugar número 13, de um jovem casal apaixonado à beira mar com a particularidade dele ter uns óculos espelhados vermelhos e ela uns iguais mas verdes (mal comparado futebolisticamente uma relação promissora entre os grandes de Lisboa), dois idosos a passear com as suas bengalas com a singularidade de terem a borracha do fundo das bengalas mais gasta do que a própria sola dos sapatos, os autocarros de giro do Algarve terem escrito “otokar”, a maneira despreocupada como as pessoas se vestem ignorando a idade, corpos estendidos na areia tentando ganhar um pouco mais de cor apesar de alguns já se encontrarem cinzentos, os baloiços a mexerem-se sozinhos sem se sentir nenhuma aragem, os viveiros com alguns vultos mergulhando no seu lodo, os diversos pássaros que voam para local incerto no imenso e protegido estuário da bela ria Formosa, as desertas pelejadas de gaivotas (tenho quase a certeza que Hitchcock se inspirou nelas) até mesmo os “camones” semi-nús sempre de cerveja nas mãos . Na realidade sou influenciada por tudo o que me rodeia, todos com quem me cruzo venham da cidade, da praia ou até mesmo do monte serão certamente um dia motivo alvo da minha atenção. Pelo que fica aqui ainda tanto por dizer.

Regresso sempre com a nostalgia dos momentos que ficaram por viver.

E como se diz aqui em baixo ”Amódes q’iste é assim, é acardito, tenhe aportelência, arreata, na stou a baldear, tou-m’a barimbar, na tenhe caguifa, n’inveja, na gosto de mogas, de patochadas, na falejo, odeio bichaninhas, na consigo patiar. Prontes, adés tipe, táza ver? Cagande e andande”.



terça-feira, 26 de novembro de 2019

CLARISSE, A LUMINOSA E NOLAN, O NOBRE, de Anita Dos Santos















Clarisse era de ascendência francesa por parte da mãe.

Esta ficou viúva de um Baronete ainda bastante nova, tendo somente uma filha, Clarisse, e não querendo voltar a casar.

O esposo, que tinha sido um homem previdente, deixou a esposa com um rendimento confortável, bem de vida, e a filha, com dote assegurado.

Desde pequena que se adivinhava que Clarisse viria a ser uma beldade, facto que muito alegrava a sua mãe.

Tendo sido criada só com a mãe e sendo uma jovem voluntariosa, Clarisse não se contentaria com menos do que um casamento como o dos seus pais, um casamento de amor entre iguais.

Foi apresentada à sociedade, quando chegou a altura devida e, toda a gente que a conhecia ficava encantada com a alegria, a boa disposição e o encanto de Clarisse.

No último evento da temporada, foi apresentada a dois irmãos, um dois quais, o mais velho, Nolan, era já chefe da sua casa num condado um tanto afastado. O mais novo, estava no fim da adolescência podendo assim acompanhar o irmão em eventos sociais. 

Acabaram por se encontrar em mais ocasiões, umas sem crer, outras nem tanto, e por esse facto do final da temporada, por a mãe de Clarisse ficou mais tempo na cidade...

Nolan gostava de escrever versos, tinha até mandado compor em livro uma colectânea de versos da sua autoria. Era uma paixão que tinha por escrever, e que resolveu partilhar com Clarisse.

O caso é que o livro serviu para os aproximar ainda mais.

Tornaram-se inseparáveis em poucos dias, como se ambos tivessem reconhecido uma alma gémea.

Quando passadas umas semanas Nolan propôs casamento a Clarisse, não foi espanto para ninguém.

O casamento deles foi feliz e duradoiro e, foram sempre estimados por todos os que os conheceram. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

A ESCOLA, de Cristina Das Neves Aleixo
















Em comemoração do Dia da Criança, é importante que façamos alguma reflexão sobre a forma como vivemos esse período tão precioso da nossa existência.

Quando somos jovens desejamos crescer e tornarmo-nos adultos. É um dos desejos mais fortes e mais comum à maioria. Acreditamos que esse estatuto nos abrirá definitivamente a porta para decidirmos e fazermos tudo o que quisermos, da forma que quisermos, sem “dar cavaco” a ninguém. Cremos que seremos donos e senhores dos nossos destinos, da razão e transpiramos idealismo por todos os poros.
Depois crescemos, alcançamos o almejado lugar na sociedade e vivemos o resto das nossas vidas a desejar ser crianças. Passamos de idealistas a saudosistas e lamentamos o pouco tempo vivido em brincadeiras e interacções despreocupadas e isentas de julgamentos.

Algo está muito errado, creio. E não acho que seja porque o período da meninice é curto, mas sim pela forma como o vivemos e, mais importante, somos preparados para a etapa seguinte.

Senão vejamos: nessa fase ocupamos noventa por cento do tempo a ser programados para o futuro, para uma promessa de vida maravilhosa e plena, e dez por cento a brincar e a dar asas à criatividade com que todos naturalmente nascemos. Somos constantemente bombardeados com a definição instituída das boas maneiras – leia-se o politicamente correcto -, para seguir todos os “bons” exemplos e normas, ao invés de aceitarmos e nos complementarmos com as diferenças, pensarmos pelas nossas cabeças e fazermos algo para mudar o que está errado. Desde tenra idade é-nos imposto um modelo educacional semelhante ao cinzentão modelo empresarial vivido diariamente pelos adultos, com uma carga horária muito superior à que devia ser praticada, onde o tempo que se dedica ao estudo ocupa a grande parte dos nossos dias, impedindo-nos de sentir o outro, a chuva e o sol na cara, de descobrir o mundo que nos rodeia com todos os sentidos, de pulsar em uníssono com o planeta e somos muito mais repreendidos do que elogiados.

Não admira que em miúdos desejemos ser adultos, com a esperança de finalmente sermos livres para podermos respirar e sonhar.

O problema é que aí chegados percebemos que o futuro prometido era um embuste, que as cores se desvaneceram com a educação automatizada e, extenuados que estamos pela lavagem cerebral constante, baixamos os braços e passamos a viver a preto e branco, resignados, iguais a todos os outros, apontando o dedo quando todos apontam e aplaudindo, sem convicção, quando todos aplaudem.

De vez em quando, num ou noutro segundo, as cores, a nossa essência adormecida, espreitam e recordamos com saudade o tempo em que nos sentíamos capazes de tudo, para imediatamente pensarmos que já é demasiado tarde.

O mais curioso é que ao termos filhos nada fazemos para quebrar este ciclo de destruição da essência humana e da felicidade.

Ao invés, tornamo-nos parte da máquina na aniquilação dos sonhos e da verdadeira realização.
Somos a maldita máquina.

Somos crianças presas e perdidas em corpos crescidos.

“Miúdos e graúdos: se nos deixarmos revisitar, de vez em quando, pelo mundo encantado tornamo-nos pessoas melhores e mais felizes.”
in Joaninha e o Jardim encantado     

domingo, 24 de novembro de 2019

GATOS E SELFIES, de Vanessa Lourenço















Pegou bruscamente no gato amarelo sem olhar para ele a direito sequer, com uma mão apenas. Na outra, brilhava o ecrã vidrado do telemóvel. Atirou-se para cima da cama, com o gato ainda encaixado no braço, e com as costas da mão que segurava o telemóvel posicionou desajeitadamente as almofadas e alisou a colcha da cama. O gato, incomodado, tentou libertar-se do braço que o prendia, mas ela não permitiu que fugisse. Colocou a câmara do telemóvel em modo selfie, e enquadrou-se a sí e ao animal na imagem reflectida no pequeno ecrã. Sorriu e fez olhinhos de mel, mas depressa franziu o sobrolho, uma das almofadas estava desenquadrada. “Não pode ser”, pensou, “a foto tem que ficar perfeita”. Ajeitou a almofada, mas quando olhou de novo para o pequeno ecrã percebeu que quando se tinha esticado para ajeitar a almofada, tinha enrolado a colcha debaixo de si mesma. Levantou-se com enfado da cama, a bufar e de gato nos braços. Esticou a colcha e deitou-se de novo. Desta feita, o gato já não estava preocupado em mostrar-lhe com gentileza que estava farto de ser tratado como um peluche, e começou a debater-se vigorosamente. Na tentativa de não o deixar fugir, ela deixou cair o telemóvel, que bateu no chão com estrondo. Deu um grito e levou as mãos à cabeça, o que deu ao gato a oportunidade perfeita para desaparecer pela porta do quarto. Saltou da cama num segundo e apanhou o telemóvel do chão, com o coração nas mãos e a respiração acelerada. Se estivesse partido tão cedo não teria direito a outro, e ficaria isolada do mundo. Se não estivesse presente nas redes sociais, o que pensariam os seus amigos? O mundo esquecer-se-ia dela!

Apanhou o aparelho do chão, e confirmou que não estava partido. Suspirou profundamente e apertou-o contra o peito, os olhos fechados de quem não tinha ganho para o susto. Aliviada, depressa se recompôs: caminhou na direcção da cama, ajeitou de novo a colcha e as almofadas, e olhou em volta à procura do gato. Afinal de contas as pessoas adoram gatos, e todas as fotos tiradas com eles tinham muito mais interesse e geravam muito mais interacção na rede do que fotos simples da cara. E com ele podia mais facilmente justificar a vontade de publicar fotos de si própria, sem necessidade de perder a modéstia.

Saiu do quarto à procura dele, mas por muitas voltas que desse não o encontrou: chamou, procurou nos locais mais improváveis e até abriu uma lata de atum, coisa que o fazia sempre aparecer se estivesse por perto. Nada. Só havia uma coisa a fazer:

- MÃE! Viste o gato?

A mãe estava a trabalhar no próximo artigo para o jornal, sentada em frente ao computador. Ergueu ligeiramente os olhos para ela, ajeitando os óculos na ponta do nariz, e respondeu antes de voltar a fitar o monitor:

- Parece-me que saiu para o jardim.

Ela encolheu os ombros, exasperada, e rolou os olhos. Como não tinha pensado nisso? Aquela peste peluda adorava esgueirar-se para fora de casa sempre que lhe era possivel. Dirigiu-se para a porta, pegou nos óculos escuros e saiu, de telemóvel ainda na mão.

Lá fora, mesmo de óculos escuros, não pôde evitar sentir os olhos feridos pela luz do sol durante uns segundos, e só depois reparou no esguio gato amarelo sentado na relva no centro do jardim, a olhar para ela. Esfregou os olhos debaixo dos óculos de sol, e avançou para ele:

- Espero que tenhas perdido a vontade de fugir, isto é importante!

O gato pareceu sorrir, e fechou os olhos enquanto lambia a pata, para depois começar a esfregá-la no focinho vigorosamente. Aproximou-se com ligeireza do pequeno animal e sentou-se ao lado dele, procurando enquadrar no pequeno ecrã do telemóvel a si própria e ao gato ainda sentado ao seu lado. Depois de várias tentativas frustradas, porém, resmungou:

- Bolas! Não consigo tirar uma fotografia de jeito com este sol!

Frustrada, começou desajeitadamente a tentar levantar-se com o telemóvel na mão, e quando percebeu que sentada não conseguia girou o corpo para ficar de joelhos. E nesse momento reparou novamente no gato: já não estava sentado, quieto. Estava a brincar com um pequeno ramo que possuia ainda algumas folhas que se agitavam no ar. Sem pensar, sentou-se de pernas cruzadas e pegou no ramo. Pousou o telemóvel na relva ao seu lado e começou a brincar com ele. Uns segundos depois, rebolavam ambos pela relva e ela ria como nunca, já sem óculos de sol. Longe de o pensar, sentiu que há muito que não se divertia tanto. E se tivesse pensado mais um pouco, teria percebido que não estava ninguém a ver. Ninguém a filmar. Ninguém a fotografar. Ninguém a deixar “gostos” ou “adoros” no que estava a fazer. Ninguém saberia. E, contudo, estava feliz. Era feliz. E podia ser feliz, sem que o mundo precisasse de o saber. Ou de o validar.


sábado, 23 de novembro de 2019

AO CHEGAR..., de Fernando Teixeira
















A viagem é realizada durante a tarde, não por acaso. É pela tarde que as cores são mais acentuadas e isso aumenta o prazer da chegada, principalmente quando se sai da A23 e se começam a percorrer as estradas municipais. Então, é um perfeito deleite conduzir pelo asfalto que serpenteia por entre campos de cultivo, ou de pastoreio, e afloramentos de granito.

É quando o Sol desce e se aproxima do ponto do ocaso, por detrás de serras distantes, que a paisagem se revela acolhedora, numa paleta de cores vibrantes e numa mescla de cheiros que nos anuncia que estamos quase no nosso destino.

Percorrem-se os últimos quilómetros, curvas da estrada que a nossa memória já conhece e prevê, sem pressa, que o momento é para se desfrutar, numa antevisão daquilo que nos espera. Cruzamo-nos com poucas viaturas, que a cidade há muito ficou para trás, e a necessidade de ultrapassar quem vai à nossa frente é quase inexistente, porque é raro ir alguma outra viatura à nossa frente. A zona raiana beirã abre-nos os braços, singela e pura, tranquila.

Entra-se na última recta e todos os pormenores são ainda mais familiares, até que, depois de uma curva larga, a placa com a designação Idanha-a-Nova nos dá as boas-vindas e sentimo-nos a entrar no paraíso.

Primeira paragem, o hipermercado da vila onde se encontra carne e vegetais dos produtores locais, porque é necessário comprar alguns produtos da região para o jantar, como se esse ritual fosse imprescindível para que nos sintamos mesmo lá e não julguemos que apenas sonhamos: um pedaço de queijo, uma bica de azeite – um tipo de pão muito achatado, de massa fofa ou crocante –, talvez uns borrachões que são bolos típicos da região e ainda ingredientes para o almoço do dia seguinte.

Saindo do carro, somos logo brindados pela atmosfera de que já tínhamos saudades, mesmo que tenhamos regressado pouco tempo depois da última vez. Enchemos os pulmões com aquele ar de cheiro campestre, ouvimos o chilrear alvoraçado da passarada nas árvores próximas e percebemos que as pessoas vivem com outra calma e saudável convivência. Nota-se que se conhecem, que conversam em grupos.

Depois das compras feitas, ruma-se finalmente a casa. Ao rodar da chave na porta, entramos naquele casulo que é o nosso mundo e o de uma ou outra aranha que aproveitou a nossa ausência para fazer a sua teia. Abrem-se portas e janelas e deixa-se que o ar de fim de tarde invada os aposentos. Chegámos!

Chegámos a uma vila onde o tempo corre mais devagar, onde não há pressa de viver, onde não há stress e parece não haver preocupações. As pessoas mais idosas sentam-se à soleira da porta, a conversar sobre a sua povoação e sobre a sua vida, sobre histórias de fulano, beltrano e sicrano. É o lento pulsar daquelas gentes, pessoas humildes. E, com a mesma humildade, cumprimentamos e somos cumprimentados quando com elas nos cruzamos, ainda que estranhos.

Por isso, nos sentimos acolhidos numa terra que adoptámos, primeiro porque de lá eram naturais alguns dos nossos progenitores, depois porque nos cativou o coração. E a terra prende-nos cada vez mais, com os seus costumes, festas e tradições, gastronomia, linguajar, paisagem, fauna e flora, pontos de interesse e aquela atmosfera que só se sente ali.

Cresce, então, a vontade de nos aventurarmos por trilhos que serpenteiam pelo campo, subindo e descendo ravinas, num contacto próximo da Natureza, sentir a paz na imensidão dos espaços, na imponência dos penedos, avidez de quem vive a maior parte do tempo numa grande cidade. E viver essa tranquilidade com uma enorme sensação de felicidade, até ao momento em que se tenha de partir de novo, desejando ficar.

Até breve, terras de Idanha!