sábado, 31 de março de 2018

REFLEXÕES OCASIONAIS | Tudo está de pernas para o ar...ou "O (novo) tempo das catástrofes!" | ISABEL DE ALMEIDA

   Olhando com atenção para a actual conjuntura mundial aos níveis económico, político e diplomático, receio que estejamos a assistir a uma triste repetição cíclica da história mundial contemporânea, e arrisco mesmo a partilhar um dos meus receios pessoais, espero honestamente estar errada, mas começo a suspeitar que estejamos à beira de uma Terceira Guerra Mundial.

   Para mim, um dos grandes sinais de alarme começou por ser a eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos da América, que nunca acreditei ser possível. É, essencialmente, um homem de negócios, transporta consigo um passado digno de uma qualquer personagem de um filme de série B de Hollywood com divórcios milionários, uma quase falência dourada, uma certa aura de playboy milionário (e nem sequer se vislumbra charme na personagem) com casamentos e divórcios conturbados, sem esquecer os escândalos sexuais que sempre trazem um certo frisson. Pessoalmente, irritam-me profundamente na criatura a falta de cavalheirismo numa evidente atitude desrespeitosa para com as mulheres, os tiques nacionalistas expostos em discursos demagógicos a roçar o estilo ditatorial, as birras de "criança" grande (mas, infelizmente, uma "criança" que tem em mãos um brinquedo perigoso, tem o poder de, a todo o momento, fazer estalar a frágil camada de cimento que segura o equilíbrio mundial) e uma imensa falta de cultura que me parece ser bem patente.

   Não menos assustador é pensar no que encontramos ali para os lados de Pyongyang, onde reina o "Querido Líder" Kim Jong Un, neste caso, temos um perigoso e, também egocêntrico chefe de Estado,  que parece ser bastante aparentado com os Vilões quase caricaturais dos primeiros filmes de James Bond. Deste lado, temos uma pessoa totalmente desequilibrada, imprevisível e que tem o péssimo hábito de brincar com mísseis e toda a espécie de armamento nuclear, o que, de todo, me parece boa ideia!

   Completando o cenário de risco, a Inglaterra em pleno processo de Brexit, e tendo na linha de comando a Conservadora Theresa May achou que era o momento oportuno para abrir uma guerra diplomática com a Rússia de Vladimir Putin (a meu ver, sem dúvida, o mais inteligente, calculista e estratega de todos os líderes mundiais, que mantém sempre uma felina aura de mistério, sendo quase impossível antecipar a sua próxima jogada no Xadrez mundial, astúcia esta a que, certamente, não será alheio o seu background na KGB).

Não discutindo os princípios que possam estar subjacentes à questão diplomática com expulsões de representantes das potências mundiais já em pleno efeito dominó, não me parecem ser prudentes estes extremismos considerando o actual (des)equilíbrio generalizado do panorama mundial.

Os sinais de alarme estão à vista, tal como aliás já foi reconhecido por António Guterres - Secretário Geral das Nações Unidas que afirmou, em suma, estarmos a assistir à formação de um contexto de Guerra Fria que urge conter.

Conforme decorre da análise histórica de Carl Grimberg no vigésimo e último volume da obra "História Universal", no primeiro capítulo com o assertivo título "A Caminho duma nova Guerra Mundial", diria eu que estamos a vivenciar um novo "Tempo das Catástrofes", sendo esta a designação aplicável à época dos anos trinta, cujo início se deu com o ataque do Japão à Manchúria e o triste termo correspondeu à II Guerra Mundial (1939-1944). Também no "Tempo das catástrofes" se assistiram a golpes de Estado, crises e guerras civis. A este já pesado cenário acrescentemos o recrudescer dos nacionalismos exacerbados e evidenciados por líderes sem qualquer noção do mais basilar bom senso, et voilá, os dados estão lançados e é bom que estejamos conscientes do altíssimo risco em que todos vivemos! A história repete-se ciclicamente, não tenho dúvidas. É forçoso concluir que:

"Tudo está de pernas para o ar no mundo de hoje (...)"

In, Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas (Pai)




sexta-feira, 30 de março de 2018

LITERATURA | A Paixão Segundo Contança H. de Maria Teresa Horta | EDITORA DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 31 de Março

Quando Henrique H. lhe dá a conhecer a sua traição, a paixão de Constança transfigura-se. Em tempos que se desdobram e sobrepõem, chegam-lhe do passado as queixas de uma trisavó sobre o marido todo-poderoso, ao passo que da infância revive com nitidez os momentos mais dolorosos: o abandono pela mãe, sua primeira paixão, quase seguido da trágica morte da avó, fonte única de afecto e segurança. O desejo de vingança vai-se assim alimentando num clima obsessivo de loucura, sangue e morte. Neste romance de culto, agora reeditado pela Dom Quixote, tudo se dissolve na paixão omnipresente: o assassínio de Adele na praia deserta, vítima inocente do ataque do cão treinado, o suicídio de Henrique e o internamento e prisão de Constança H.


quinta-feira, 29 de março de 2018

LITERATURA | Dias Comuns IX - Derrota Pairante de José Gomes Ferreira | EDITORA DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 31 de Março
O diário Dias Comuns, de José Gomes Ferreira, começou a ser publicado em 1990, cinco anos após a sua morte. Este nono volume, Derrota Pairante, abarca o período entre 1 de Fevereiro e 20 de Setembro de 1970, época em que o escritor foi convidado para presidente da futura Associação de Escritores, em que Salazar morre e se vive em pleno regime Marcelista.

Um livro que revela muitíssimo da vida do autor e da sua obra. Mas também pensamentos mais íntimos, histórias e momentos do panorama literário e político da época.


segunda-feira, 26 de março de 2018

CRÓNICA | A Fonte dos Livros | VANESSA LOURENÇO

Deixou-se cair na cadeira com o entusiasmo de quem ouve o tiro de partida e arranca, munido do desejo de deixar cair limites e rótulos alheios. Respirou fundo, fitou o monitor com os olhos brilhantes e acariciou com ternura o teclado com as pontas dos dedos. No silêncio, demorou-se ainda a vaguear pelo potencial infinito do mundo que estava prestes a criar, o que sentiria quando tivesse nas mãos a obra nascida do seu trabalho? O que sentiria quando a visse finalmente nascer? Estaria o mundo lá fora, disposto a aceitá-la?

Sorriu, talvez sem sequer se aperceber. Franziu as sobrancelhas, respirou fundo e acendeu um cigarro. Fechou os olhos e disse, de si para si mesmo:

- Mostra-me.

Durante um bom par de minutos, nada aconteceu. O cigarro apagou, a folha de word em branco teimava em fitá-lo com desdém, e começou a sentir-se frustrado. Levantou-se da cadeira, esticou pernas e costas e foi beber um copo de água. Voltou. Sentou-se. Acariciou de novo o monitor com as pontas dos dedos:

- Mostra-me.

Silêncio.
Mexeu-se desconfortavelmente na cadeira, fitou as mãos sem realmente as ver e pousou-as de novo no teclado. Quando se preparava para se levantar de novo em busca de coisa nenhuma, ouviu a Fonte dizer:

- O que queres de mim? Porque me chamaste?

Não ficou surpreendido, nem sequer estremeceu. Conhecia bem a Fonte de outras aventuras, e sabia como podia ser caprichosa:

- Tu sabes o que eu quero. Tão bem como sabes, que não vou suplicar.

A Fonte vangloriou-se:

- Foste um bom aluno.

Esfregou demoradamente a cara com as mãos, fazendo os óculos saltar. Suspirou:

- Ajuda-me a deixá-los entrar. Posso mostrar-lhes o caminho, mas precisam da tua luz. Não te estou a dar novidade nenhuma.

A Fonte riu com prazer, e as suas gargalhadas ecoaram pela divisão fechada. Ele encolheu os ombros e suspirou, impotente. Porque tinha ela que ser sempre assim, arrogante? Finalmente, ela parou de rir:

- Onde está o teu sentido de humor? Sempre tão cheio de recursos, porque não usas uma vela? O que tem a minha luz de especial?

Semicerrou os olhos e murmurou, entredentes:

- Tu sabes perfeitamente porquê, foste tu que me desvendaste esse segredo. As velas podem iluminar o caminho neste mundo, mas só a tua luz ilumina aqueles que, de outros mundos, precisam de luz para cá chegar.

A Fonte ficou em silêncio durante alguns instantes. Tê-la-ia convencido?
Não tardou a descobrir. Uns momentos mais tarde, a Fonte replicou:

- Tu sabes como funciona: uma vez iluminado o caminho, eles vão chegar. E não poderás voltar atrás.

Ele sorriu melancolicamente:

- Sabes tão bem como eu, que a missão deles é inspirar o mundo. E só podem fazê-lo através de nós.

A Fonte suspirou longamente. Finalmente, disse:

- Nem todos estão preparados para os compreender.

Ele respondeu:

- Mas aqueles que estiverem, verão as suas vidas mudadas para sempre. Não foste tu que me ensinaste que eles não querem mudar o mundo, mas apenas abrir a porta a quem quiser entrar?

A Fonte assentiu, ele era sem dúvida um dos seus melhores alunos.
No momento seguinte, ele pousou de novo os dedos no teclado. Respirou fundo, e esperou pacientemente. Ao mesmo tempo, numa dimensão situada algures entre a nossa realidade e o nosso maior potencial, a Fonte Criativa tornou-se luz. E através dela caminharam heróis e vilões, anjos e mestres, obstáculos e verdades capazes de mudar o mundo. Misturadas com dragões e cavalos brancos, castelos distantes e grutas escuras e misteriosas. Um por um, rodearam o escritor. Alguns sentaram-se em redor da secretária, outros pousaram gentilmente as mãos etéreas nos seus ombros. E ele sorriu. Pousou os dedos no teclado, e começou a escrever.




domingo, 25 de março de 2018

LITERATURA | Dona Flor e Seus Dois Maridos de Jorge Amado | EDITORA DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 27 de Março

Dona Flor e Seus Dois Maridos, um dos mais deliciosos e famosos romances de Jorge Amado, é uma insólita história de amor, repleta de humor e de personagens cativantes, passada na Bahia.

Dividida entre os seus dois maridos, dona Flor vai travar uma «espantosa batalha entre o espírito e a matéria».

CRÓNICA | Trocas e baldrocas horárias | CRISTINA DAS NEVES ALEIXO



Hoje é dia, mais uma vez, de mudança da hora. Adianta-se uma hora aos relógios para entrarmos no chamado horário de Verão.

Esta ideia foi posta em prática em 1784 por Benjamin Franklin. O objectivo era a poupança de velas. Com a I Guerra Mundial, em 1916, voltou a verificar-se a necessidade de poupança, desta vez de carvão, e novamente se impôs uma alteração horária.

A Alemanha foi o primeiro país a adaptar o seu horário, logo seguida pela Grã-Bretanha, enquanto outros os iam seguindo mais ou menos espaçadamente. A uniformização só teve lugar na década de 70, mais precisamente em 1974, quando os Estados Unidos e vários países europeus foram confrontados com um embargo no petróleo.

Desde essa altura que andamos para a frente e para trás consoante a época do ano. Dois séculos depois da ideia, justificadamente, ter visto a luz do sol pela primeira vez, manipulamos o tempo com base numa solução que em nada se adequa aos dias que vivemos.

Actualmente, as “cabeças pensantes” alegam que mudamos a hora para as crianças não irem para a escola de noite, por exemplo. Que me desculpem, as excelentíssimas sumidades pensadoras, mas qualquer contemplação simples do céu, sem necessidade de estudos complicados ou maquinaria de qualquer espécie, revela que no Inverno o sol nasce entre as 7.30 e as 8 horas, dependendo da zona, no território nacional e põe-se por volta das 17 horas. 
Ora, se os miúdos entram às 8 horas e só vão para casa às 17, 18 ou 19 horas – dependendo da altura em que os pais os vão buscar -, significa que, efectivamente, saem de casa de noite e voltam da mesma forma. Assim como os seus pais, relativamente aos seus empregos, que, normalmente, fechados em cubículos o dia inteiro, a fazer por ganhar aquilo com que se compra as necessidades básicas e os sonhos, vêem alguns raios de sol por quinze ou vinte minutos diários, se tiverem a sorte de sair para almoçar fora do local de trabalho. Se adoptássemos o horário de Verão definitivamente isto já não aconteceria desta forma.

O sol, esse astro essencial a toda a nossa vivência, que tantos benefícios nos dá ao nível da saúde física e mental, está a ser completamente desaproveitado e num país como o nosso, que tem uma taxa de luz solar superior a muitos países, é uma perfeita parvoíce não o aproveitar e continuar a reboque das ideias mais que ultrapassadas de outros.

São já muitos os estudos sobre as vantagens da adopção definitiva do horário de Verão. Ao que parece, está comprovado que os níveis de stress, os acidentes rodoviários, as depressões e os suicídios decrescem. A boa disposição, a produtividade e a imunidade a determinadas doenças aumentam, assim como o tempo de qualidade passado com a família e os amigos. As pessoas têm a sensação de ter mais tempo para as suas tarefas e tudo é feito com mais tranquilidade.

Já vivemos demasiado enclausurados pelas convencionais obrigações diárias. Há coisas que podem e devem ser ajustadas à realidade dos nossos dias. Há coisas que podem e devem ser mudadas. Não tenho dúvida nenhuma que esta é uma delas.  


sábado, 24 de março de 2018

REFLEXÕES OCASIONAIS | Os Miseráveis... ou Quo Vadis Advocacia Portuguesa? | ISABEL DE ALMEIDA

Corro o risco de me repetir, mas afinal, o propósito desta coluna semanal consiste precisamente em partilhar com o mundo aquilo que me faz pensar, que me incomoda, e que tantas vezes, mais do que incomodar me causa uma profunda revolta, uma indignação que me perturba de tal forma que tenho até alguma dificuldade em expressar por palavras o que me vai na alma.

Pedi emprestado a Victor Hugo o início do título deste artigo e é com profundo desgosto que, no ano em que completo dezoito anos de inscrição como Advogada, olho à minha volta e vejo-me forçada a concluir que somos, efectivamente uma classe pejada de "Miseráveis", note-se, e para que fiquem afastados os mal entendidos, não o digo com intuito de ofender ou diminuir quem quer que seja, até porque estaria a ofender-me a mim mesma! 

Passarei a explanar, de seguida, algumas das razões deste meu entendimento ( porque somos afinal, nós Advogados "miseráveis"?) e nem sequer tenho a pretensão de ser exaustiva na expressão dessas razões. Estas reflexões que hoje aqui partilho vêm sendo partilhadas e debatidas com um grupo próximo de amigos e colegas de trabalho, e fazendo justiça, quando reflectia entre amigos e colegas sobre o que poderia escrever e em que moldes o poderia fazer, a alusão literária a Vitor Hugo foi sugerida precisamente por um dos membros daquele que considero o meu núcleo duro de amigos e colegas que comungam destas mesmas preocupações (dado o adiantado da hora e não cito o nome da pessoa, que assim o fará publicamente em comentário a este texto, se assim o entender).

E deixando para trás as questões prévias, sinto-me grata por saber que existem, pelo menos, algumas pessoas que comungam desta minha preocupação, e que têm consciência de que somos uma profissão que corre sérios riscos de extinção na sua vertente mais tradicional ou clássica, se preferirem o segundo epíteto, salvo o devido respeito por formas diversas de trabalho, eu tenho de confessar que sempre fui idealista, e que a prática forense que me fez apaixonar e viciar por esta profissão foi a barra, a prática em pequena equipa, a adrenalina de ir aprendendo com a experiência, de fazer renovações pontuais na biblioteca jurídica e descobrir nos célebres "calhamaços" a doutrina certa para fundamentar os casos que vão surgindo, sem esquecer a jurisprudência!

Pessoalmente, ainda hoje continua a ser a adrenalina que me faz sentir um enorme prazer (e assumo, um, por vezes, inconfessado orgulho) quando entro numa sala de audiências para defender um arguido, ou para representar um assistente num processo crime, aquela indescritível sensação de conseguir improvisar (muitas vezes quando a produção da prova nos faz sentir que a linha condutora que tínhamos passado a noite anterior a afinar foi por água abaixo, sendo o direito penal uma das minhas grandes paixões!

A adrenalina flui e pode revelar-se produtiva e prazerosa quando nos sentamos em frente do computador com os nossos parceiros de escrita ideais, numa mesa repleta de livros, dossiers, apontamentos, notas soltas (algumas rascunhadas à pressa, em letra quase ininteligível, no primeiro pedaço de papel que estava à mão quando toca o telefone e algum dos parceiros teve uma ideia a desbravar e estudar mais a fundo na próxima reunião). Este tipo de trabalho é sempre pautado por uma ou outra piada que se debita para desanuviar a tensão, e constata-se que quem, como eu, está familiarizado com esta forma mais clássica (ou antiquada, dirão alguns) de trabalhar, imbuído do espírito de missão de conseguir fazer a justiça acontecer (ou ao menos tentar que ela aconteça e, nesse propósito, dar o nosso melhor) apresenta um raciocínio muito similar, ou complementar (eu sou a viciada na escrita cujos ímpetos de escrever peças processuais gigantes têm de ser contidos sabiamente pelos amigos e colegas que conseguem ser mais objectivos e práticos).

E agora, perguntaram os leitores, então mas se até agora o que foi descrito nos três parágrafos anteriores parece até bastante positivo, como se chega à conclusão de que somos "miseráveis"? A razão primordial já foi enunciada acima, é que tudo isto que acabei de descrever está em sérios riscos de extinção (nem quero pensar a que prazo). A advocacia nacional, nesta que considero ser a sua essência, está à beira de se desmoronar totalmente como um frágil castelo de cartas!

E porquê, entre várias outras razões, porque nos está a ser exigido, em tantos casos, pagar para trabalhar, ao invés de sermos pagos pelo nosso trabalho (reitero o meu veemente protesto e indignação quanto à inconstitucionalidade flagrante decorrente de pagar contribuições para um regime de previdência cuja base de incidência para o cálculo assenta em rendimentos presumidos e não reais), sentir e saber que muitos advogados vivem em situação de gravosa insuficiência económica e sem conseguir "pagar para trabalhar" nem, muito menos, "ganhar pelo trabalho que desenvolvem" e esta impossibilidade pode advir de motivos como: redução da carteira de clientes fruto da recente conjuntura económica negativa, o valor verdadeiramente proibitivo das taxas de justiça praticadas em Portugal que, a meu ver, violam o Direito de Acesso à justiça consagrado na Constituição (num pais onde o salário mínimo é de 580,00€ a taxa mínima para uma acção de valor superior à alçada da primeira instância é de 612,00€ em muitos processos); a perda de actos próprios de advogados que foram confiados a outras entidades públicas ou privadas; o simples e duro facto de os advogados serem seres humanos que podem adoecer e ficar incapacitados de exercer a sua profissão (podendo tal incapacidade ser temporária ou definitiva) e, nesses casos, não terem direito a baixa nem, tão pouco, à suspensão de pagamento de contribuições para a Caixa de Previdência ou das Quotas para a Ordem Profissional (as normas habilitantes em vigor não permitem excepcionar nem acautelar a necessária protecção perante situações excepcionais).

Assusta-me, indigna-me e revolta-me profundamente que existam colegas com penas disciplinares aplicadas por terem faltado a diligências por comprovadas razões de saúde, que mesmo perante os tribunais o justo impedimento para a prática de um acto processual pode não ser entendido de modo a abarcar diversas situações de impedimentos por motivos de saúde.

E deixo para o fim o caso mais grave, mais cruel, mais inacreditável, quando ousando ser humanos os advogados têm a infelicidade de ser acometidos de doenças oncológicas, de doenças crónicas, de doenças incapacitantes, a solução das instituições que deveriam zelar pelos seus associados é o expresso convite a sair, a suspender a inscrição. Esta postura institucional é para mim inconcebível, não consigo assimilar, não consigo calar-me, não consigo ficar indiferente, nem consigo perceber onde se encaixa uma situação destas num Estado de Direito Democrático como dizem ser o nosso!

São vidas que estão aqui em causa, é de seres humanos que se trata e não de números! São carreiras que podem ser ceifadas a qualquer momento, e sem alternativas profissionais viáveis, muitas vezes 10, 20 ou 30 anos de um projecto profissional que podem ser-nos tirados à força...como se gere uma perda de tal dimensão?

Numa triste  e cruel ironia, aqui se cruzam, pelo menos dois tipos de "miseráveis": os que caíram em desgraça porque se vêem doentes e pobres e todos os outros que olham de maneira indiferente, conformada e absolutamente passiva para este estado de coisas!

Lutamos todos os dias pelos direitos de outras pessoas, apaixona-mo-nos por essa luta, e por nós mesmos? Quem vai lutar? Até quando vamos tolerar ser os carrascos de nós mesmos por acção ou omissão? É "miseráveis" que queremos ser até ao fim? É desta contraditória massa que somos feitos? O que faremos com os despojos de nós mesmos? Quo Vadis? Precisamos de heróis obscuros, porque com os pseudo-heróis ilustres não me parece que possamos chegar a bom Porto!

"A vida, a infelicidade, o isolamento, o abandono, a pobreza, são campos de batalha que têm os seus heróis; heróis obscuros por vezes maiores do que os heróis ilustres." 

In, "Os Miseráveis", Victor Hugo


quinta-feira, 22 de março de 2018

CRÓNICA | VAMOS FALAR das Pequenas/GRANDES Livrarias! | PATRÍCIA REBELO



Quantas e quantas pequenas livrarias, daquelas que nos aconchegam a alma, que nos aquecem com as suas estantes cheias de sonhos, de autores consagrados e de jovens autores que procuram um lugar, estão a fechar?

Quantas já fecharam...?

Quantas ainda vão fechar?

Porque deixamos que isso aconteça?

Porque preferimos livrarias online, grandes grupos livreiros e centros comerciais?

Porque têm mais descontos Patrícia... Porque é mais fácil... porquê é mais cómodo.

Ok...

Sim... tudo isso é verdade.

Mas todos perdemos tanto...

O descobrir as pequenas livrarias...

O fascínio pelas estantes...

Pelos autores consagrados ...

Pelos novos autores que aí conseguem uma oportunidade real...

Pelos livros mais antigos...

Pelos livros raros que não se conseguem encontrar em lado nenhum...

Pelo atendimento personalizado.

Invistam.

Tentem...

Vamos impedir que mais livrarias pequenas fechem.

Frequentem!

Comprem!

Procurem!

Invistam realmente nas pequenas livrarias.

Quando fecham perdemos todos...

Quando fecham... a culpa é de TODOS nós!

Hoje é o dia em que eu, na minha pequenez, enquanto autora, bati o pé e disse basta a esta enorme rede comercial.

Em que quis ter uma palavra a dizer.

Em que me revoltei porque o mundo editorial está mau...

Em que me revoltei porque, cada vez mais, se fecham portas a novos autores, por muitos acharem que como são novos nada valem.

Hoje acreditei desde do primeiro momento que as minhas palavras de revolta poderiam ser de todos nós.

Nós: leitores, autores, escritores, criadores, distribuidores, vendedores, livreiros, editores, entre tantos outros que o mundo literário não fala....

Acreditei e continuo a acreditar...

Podemos sim fazer a diferença e lutar por esta causa, acreditando em cada um dos meus leitores, nas suas partilhas, no seu empenho, na sua atenção e divulgação, sem recorrer a serviços de pagamento de divulgação.

Acredito que quando sentimos que fazemos o bem, esse bem é recompensado.
Para mim chegava se me dissessem:

" Patrícia partilhei... e mais não sei quantas pessoas que conheço também partilharam..."
"Patrícia, hoje comecei a olhar com mais atenção para as pequenas livrarias."
"Patrícia, hoje entrei numa pequena livraria e tenciono frequentar"

Fiz este desabafo, porque o mundo literário merece, na minha opinião, um murro na mesa.

Fiz este desabafo, não por mim nem pelo meu trabalho..., mas por nós.

Por todos nós que sofremos, cada vez que perdemos mais uma casa que nos permite adquirir vários tipos de conhecimentos.

Por todos nós... e pelas pequenas livrarias.

Posso pedir-vos para PARTILHAREM?

Podem ajudar a ganhar força esta mensagem?

Posso pedir-vos para divulgarem?

Não por mim.

Não pelo meu trabalho.

Mas por todos.

Autores, livreiros, leitores, distribuidores, editores...

Por um mundo editorial e livreiro mais competitivo, mais justo e mais próximo do leitor.

#pelaspequenaslivrarias
#pelaslivrariaspequenas
#porummundoeditorialmaisjusto


LANÇAMENTO DO LIVRO "CEM MITOS SEM LÓGICA"


quarta-feira, 21 de março de 2018

CRÓNICA GASTRONÓMICA | Porque a boca também come: Feijoada tropical | HÉLDER MENOR


A feijoada tropical é sempre um acontecimento. À volta dos pratos, juntam-se a família e os amigos. Convida a recordar histórias antigas, saudosos ausentes e casos de outras épocas e latitudes.

Se formos uns doze entre adultos e crianças, precisamos de uns três quilos de feijão (dois de feijão preto e um de feijão vermelho) um pé de porco, uma orelha, três chouriços vermelhos, dois bocados do tamanho de um punho fechado de toucinho, umas doze costeletas do fundo, uma tira de entrecosto, meio quilo de carne de vaca para guisar (vazia ou aba), azeite, alhos, malagueta, orégãos, dois quilos de tomates e quatro laranjas, coentros, um saco de farinha de mandioca, coentros, limões, gengibre e duas cebolas roxas.

Dois dias antes deita-se o feijão para dentro de água. Pretos e vermelhos juntos, porque a sua natureza é próxima. A água a cobrir, e aviso já que vão ensopar e que vai ser preciso ir acrescentando mais água.

As carnes do porco salgam-se no dia anterior, orelha, pé e pernil (ou lação), mais as costeletas do fundo e a tira de entrecosto inteira.

No próprio dia, de manhã cedo, começa o ritual. Na panela de pressão pomos ao lume o feijão mais a orelha, o pé e o pernil, com algum sal, pouco. Deixar cozer bem. Umas duas horas. Se for preciso abrir e acrescentar água, que seja feito.

Pode ouvir-se música animada e há quem acompanhe a tarefa enquanto dança com uma primeira cerveja.

Façamos o refogado que vai ser a cama da nossa feijoada: No fundo da panela deita-se o azeite a tapar o metal e corta-se um dos cubos do toucinho em tiras! Acende-se o lume baixinho e junta-se o toucinho. Quando o toucinho começa a ficar transparente, entram meia dúzia de dentes de alho picados e as malaguetas. Aqui fica ao vosso critério… eu costumo pôr uma malagueta por pessoa e não mais… porque há sempre alguém que se vai queixar do picante… Os alhos e as malaguetas vão começar a fritar e a chamarem pela cebola. Quando os alhos gritarem “quero a cebola”, e isso vai acontecer quando já começa a ficar castanho, faz-se-lhes a vontade e avançam as duas cebolas cortadas às tiras fininhas. Sobe-se o lume e dá-se a primeira volta com a colher de pau.

Chegam agora os chouriços cortados em rodelas fininhas. Dão duas ou três voltas com a cebola para começarem a fritar. Vem o resto do porco: as costeletas do fundo cortadas em três, mais a tira do entrecosto fatiada mantendo os ossos inteiros.  Duas voltas com a colher de pau e baixa-se o lume.

Entretanto prepara-se a farofa:  numa frigideira larga, corta-se o toucinho que sobrou em tiras fininhas, junta-se mais uns três dentes de alho e meia dúzia de malaguetas, o lume acende-se  baixinho e quando o toucinho estiver bem tostado, sobe-se para o máximo. Acrescenta-se a farinha que absorve toda a gordura e se envolve com o toucinho, os alhos e as malaguetas enquanto torra durante uns três minutos. A colher de pau sempre a mexer. Está pronta. Reserva-se e vai para uma taça grande para ir à mesa.

Voltemos à feijoada… as carnes já estão a  ficar bem cozinhadas… entra o feijão que ainda está quente. A concha, ou uma cafeteira, serve para tirar o feijão e a água de cozer onde as carnes deixaram o sabor fará o molho da feijoada.

Corta-se a orelha e desossa-se e corta-se o pé mais o pernil. Junta-se  tudo na panela, que vai levantando fervura. Agora corta-se a carne de vaca, bem fininha, salga-se, tempera-se com um bocadinho de vinagre e entra também na panela da feijoada. Aumenta-se o lume, envolve-se e assim que ferver em cachão, apaga-se!

Numa travessa funda, corta-se os tomates em cubos pequeninos, mais o gengibre, mais umas doze malaguetas, mais a cebola roxa. Junta-se tudo e envolve-se e tempera-se com sal, coentros e orégãos. As laranjas é só lavar e cortar às rodelas e pôr em pratos também na mesa.

Que se apague o lume e se deixe descansar a feijoada. Dentro de dez minutos estará pronta a ser servida. Sugiro que o façam num prato fundo: duas conchas de feijoada duas colheres de sopa de farofa, uma concha do tomate. Cerveja, vinho, limonada ou mesmo água podem acompanhar. Deve comer-se devagar e pausadamente temperada com gargalhadas, muito afeto e se possível algumas lágrimas de alegria. 

terça-feira, 20 de março de 2018

PORTUGAL MAIS QUE SOL | Convidamos-vos a conhecer: A Necrópole de Carenque | PAULO DA COSTA GONÇALVES


Texto: Paulo da Costa Gonçalves
Fotos: Direitos Reservados

Assemelhando-se à morfologia das antas, este sítio arqueológico é constituída por três sepulcros, genericamente designados de “Grutas Artificiais”, por terem sido escavados nos afloramentos calcários locais, remontam ao final do Neolítico, mais precisamente ao 3º milénio a.C. e situam-se no Tojal de Vila Chã, freguesia da Mina, município da Amadora.
Revestindo-se de grande interesse para a compreensão da nossa Pré-História, a construção desta necrópole é de uma época em que na região a população tinha as suas vivências assentes numa economia agro-pastoril e já evoluída sob o ponto de vista das tecnologias de produção pré-históricas.
A Necrópole de Carenque integra-se numa tradição cultural-funerária mediterrânica e cujas principais características de arquitetura passam pelo acesso ser efetuado por um corredor, normalmente voltado a nascente, que através de um pequeno portal de formas arredondadas comunica com uma câmara funerária. 


Pouco se sabe dos indivíduos ali sepultados, se eram todos oriundos de um mesmo povoado ou se pertenciam a alguma formação social específica com acesso exclusivo à necrópole, excepto o facto de que eram maioritariamente adultos e jovens de pequena estatura e provavelmente representativos do tipo de população que habitava o sul da Estremadura naquela época. Também se desconhece quais os rituais de sepultamento, mas pelo que se sabe desta cultura acredita-se que os corpos possam ter sido acocorados em posição fetal de encontro às paredes e rodeados de oferendas, no entanto ao serem igualmente encontrados utensílios em cobre e cerâmicas campaniformes, indiciam uma posterior utilização na Idade do Cobre que terá alterado a disposição original das ossadas e artefactos, dificultando a reconstituição da sua disposição no recinto tumular.
Entre os achados na Necrópole de Carenque foram recolhidas cerâmicas com decorações campaniformes, materiais de carácter utilitário, ídolos talhados em calcário, placas de xisto e crescentes lunares em calcário (vulgarmente conhecidos por lúnulas) com orifícios para suspensão. 
Tais achados, não só nos dão acesso ao conhecimento tecnológico de que já dispunham os construtores da Necrópole de Carenque, como evidencia a existência de uma vida simbólica de inspiração agrária rica. Dão-nos também a conhecer o carácter mágico-simbólico dominante. Ou seja, por um lado, são símbolos da sexualidade e da reprodução, e por outro lado, são representações lunares, provavelmente associados a um género de calendarização do tempo, teriam possibilitado que comunidades de agricultores-pastores organizarem-se.

Localização:

Urbanização Serra das Brancas, 
Topo da Av. Luis de Sá - Amadora
Coordenadas geográficas: Latitude: 38°46’24.61"N - Longitude: 9°14'37.41"W

Horário:

Verão – sábados das 14h00 às 18h00 e domingos das 09h00 às 14h00
Inverno – sábados das 13h00 às 17h00 e domingos das 10h00 às 15h00 
Entrada gratuita.

Acolhimento de Visitantes:

Visitas guiadas para grupos, sendo necessária marcação prévia (Tel: 214 369 090)

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segunda-feira, 19 de março de 2018

LITERATURA | Sangue na Neve de Jo Nesbo | EDITORA DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 20 de Março

Olav é um assassino contratado, mas tem uma vida solitária e tranquila. Quando o que se faz na vida é matar o próximo, não é fácil fazer amigos, mas sem ninguém a quem se afeiçoar ou prestar contas, os dias também decorrem sem problemas. Só que o quotidiano de Olav complica-se ao conhecer a mulher dos seus sonhos. Apaixonar-se por alguém já é por si só uma situação desafiante, mas há duas outras particularidades que fazem desta mulher um vendaval na sua rotina: é casada com o seu chefe. E este acaba de o contratar para a matar. Como é que Olav irá gerir a situação? Será que vai conseguir enganar um dos mais temíveis criminosos do país? 

Este livro, anterior à série Harry Hole, tem já todos os ingredientes que fazem com que Jo Nesbø seja um dos autores nórdicos de policiais mais bem-sucedidos em todo o mundo.


CRÓNICA | Gatos e Selfies | VANESSA LOURENÇO


Pegou bruscamente no gato amarelo sem olhar para ele a direito sequer, com uma mão apenas. Na outra, brilhava o ecrã vidrado do telemóvel. Atirou-se para cima da cama, com o gato ainda encaixado no braço, e com as costas da mão que segurava o telemóvel posicionou desajeitadamente as almofadas e alisou a colcha da cama. O gato, incomodado, tentou libertar-se do braço que o prendia, mas ela não permitiu que fugisse. Colocou a câmara do telemóvel em modo selfie, e enquadrou-se a sí e ao animal na imagem reflectida no pequeno ecrã. Sorriu e fez olhinhos de mel, mas depressa franziu o sobrolho, uma das almofadas estava desenquadrada. “Não pode ser”, pensou, “a foto tem que ficar perfeita”. Ajeitou a almofada, mas quando olhou de novo para o pequeno ecrã percebeu que quando se tinha esticado para ajeitar a almofada, tinha enrolado a colcha debaixo de si mesma. Levantou-se com enfado da cama, a bufar e de gato nos braços. Esticou a colcha e deitou-se de novo. Desta feita, o gato já não estava preocupado em mostrar-lhe com gentileza que estava farto de ser tratado como um peluche, e começou a debater-se vigorosamente. Na tentativa de não o deixar fugir, ela deixou cair o telemóvel, que bateu no chão com estrondo. Deu um grito e levou as mãos à cabeça, o que deu ao gato a oportunidade perfeita para desaparecer pela porta do quarto. Saltou da cama num segundo e apanhou o telemóvel do chão, com o coração nas mãos e a respiração acelerada. Se estivesse partido tão cedo não teria direito a outro, e ficaria isolada do mundo. Se não estivesse presente nas redes sociais, o que pensariam os seus amigos? O mundo esquecer-se-ia dela!

Apanhou o aparelho do chão, e confirmou que não estava partido. Suspirou profundamente e apertou-o contra o peito, os olhos fechados de quem não tinha ganho para o susto. Aliviada, depressa se recompôs: caminhou na direcção da cama, ajeitou de novo a colcha e as almofadas, e olhou em volta à procura do gato. Afinal de contas as pessoas adoram gatos, e todas as fotos tiradas com eles tinham muito mais interesse e geravam muito mais interacção na rede do que fotos simples da cara. E com ele podia mais facilmente justificar a vontade de publicar fotos de si própria, sem necessidade de perder a modéstia.

Saiu do quarto à procura dele, mas por muitas voltas que desse não o encontrou: chamou, procurou nos locais mais improváveis e até abriu uma lata de atum, coisa que o fazia sempre aparecer se estivesse por perto. Nada. Só havia uma coisa a fazer:

- MÃE! Viste o gato?

A mãe estava a trabalhar no próximo artigo para o jornal, sentada em frente ao computador. Ergueu ligeiramente os olhos para ela, ajeitando os óculos na ponta do nariz, e respondeu antes de voltar a fitar o monitor:

- Parece-me que saiu para o jardim.

Ela encolheu os ombros, exasperada, e rolou os olhos. Como não tinha pensado nisso? Aquela peste peluda adorava esgueirar-se para fora de casa sempre que lhe era possivel. Dirigiu-se para a porta, pegou nos óculos escuros e saiu, de telemóvel ainda na mão.

Lá fora, mesmo de óculos escuros, não pôde evitar sentir os olhos feridos pela luz do sol durante uns segundos, e só depois reparou no esguio gato amarelo sentado na relva no centro do jardim, a olhar para ela. Esfregou os olhos debaixo dos óculos de sol, e avançou para ele:

- Espero que tenhas perdido a vontade de fugir, isto é importante!

O gato pareceu sorrir, e fechou os olhos enquanto lambia a pata, para depois começar a esfregá-la no focinho vigorosamente. Aproximou-se com ligeireza do pequeno animal e sentou-se ao lado dele, procurando enquadrar no pequeno ecrã do telemóvel a si própria e ao gato ainda sentado ao seu lado. Depois de várias tentativas frustradas, porém, resmungou:

- Bolas! Não consigo tirar uma fotografia de jeito com este sol!

Frustrada, começou desajeitadamente a tentar levantar-se com o telemóvel na mão, e quando percebeu que sentada não conseguia girou o corpo para ficar de joelhos. E nesse momento reparou novamente no gato: já não estava sentado, quieto. Estava a brincar com um pequeno ramo que possuia ainda algumas folhas que se agitavam no ar. Sem pensar, sentou-se de pernas cruzadas e pegou no ramo. Pousou o telemóvel na relva ao seu lado e começou a brincar com ele. Uns segundos depois, rebolavam ambos pela relva e ela ria como nunca, já sem óculos de sol. Longe de o pensar, sentiu que há muito que não se divertia tanto. E se tivesse pensado mais um pouco, teria percebido que não estava ninguém a ver. Ninguém a filmar. Ninguém a fotografar. Ninguém a deixar “gostos” ou “adoros” no que estava a fazer. Ninguém saberia. E, contudo, estava feliz. Era feliz. E podia ser feliz, sem que o mundo precisasse de o saber. Ou de o validar.

domingo, 18 de março de 2018

LITERATURA | Cadáveres às Costas de Miguel Real | EDITORA DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 20 de Março

Após a morte do pai, um jovem abandona o curso de Direito e aluga um pequeno apartamento no sótão de um palacete de Lisboa, com o fito de escrever um romance. Aí vive a família Peralta Perestrêllo, cuja matriarca centenária – d. Consolação, há muito acamada – é visitada no dia 13 de Maio de 2017 pela aparição da irmã Lúcia, após o que consegue erguer-se e dar uns passinhos. Filho, nora e netos ficam hesitantes quanto a acreditar no suposto milagre; mas cada um a seu modo (e também a Igreja, chamada imediatamente para avaliar a situação) descobre como retirar dividendos do episódio – o mesmo acontecendo, aliás, com o jovem escritor que, sem ideias para o seu romance de estreia, tem subitamente um filão ao dispor, para não falar do seu interesse pela neta mais nova da miraculada… 

CRÓNICA | O ser e o parecer | CRISTINA DAS NEVES ALEIXO


Nos últimos tempos tenho andado mais atenta que o habitual às reacções contraditórias das pessoas e à crescente necessidade de tudo destacar. Talvez por estar a ficar saturada de tanta incongruência e picuinhice, ou, se calhar, sou eu que estou a ficar “avariada” – já tenho dado por mim a pensar, face às inconsistências verificadas.

Há um bocadinho de tudo. Para todos os gostos, como se costuma dizer.

Já repararam que todos os dias se comemora alguma coisa? Mas que raio de necessidade é esta de assinalar “tudo e um par de botas” só porque… sim?! Ele é o dia dos bonitos, dos feios, do pastor, dos tios, dos sobrinhos… blá, blá, blá… do céu nublado, do periquito. Até há – pasmem-se -, o dia da falsidade. Da falsidade! Que coisa bonita e importante, certo? Não! E não! Lembro-me de experimentar uma sensação de tristeza ao saber da existência deste dia - queixamo-nos que andamos tão ocupados e depois temos tempo para estas… -, parecemos autênticas criancinhas invejosas e birrentas - porque aquele tem eu também quero – e disputamos nas redes sociais as criações mais absurdas.

Na mesma arena há quem defenda acerrimamente a obrigatoriedade da limpeza dos terrenos por parte dos proprietários – “têm que limpar, pois claro, quem haveria de ser?, não podemos ter mais incêndios como os do ano passado!” -, para depois vir contestar, com a mesma veemência, a estipulação de prazos para o fazer e a aplicação de multas, caso o prazo não seja cumprido. Mas como raio querem obrigar um país a cumprir os seus deveres?! Onde é que está a razoabilidade de ser defender posições opostas para um mesmo assunto? Ainda se fosse o facto de os prazos serem curtos, seria compreensível.

Há quem diga adorar o tempo de Inverno e ande a rezar a todos os santinhos por umas valentes chuvadas, nestes tempos conturbados de seca extrema, para depois vir bufar para todos os cantos que já não suporta a chuva, o vento e o frio. Esquecem-se rapidamente das necessidades globais. Estes também são aqueles que, habitualmente, ainda o Verão não começou e já andam a suspirar pelo tempo invernoso. Afinal em que é que ficamos?

Constato que hoje vale mais aparecer virtualmente, e a qualquer pretexto, do que ser íntegro e consistente ao defender com paixão aquilo em que verdadeiramente se acredita. Já não se valoriza as conversas puras, olhos nos olhos, em que a linguagem corporal é o espelho das nossas crenças e emoções e desvenda a verdade sem barreiras; onde o toque, o cheiro, todos os sentidos, são fundamentais para saudáveis interacções e vivências. Escondemo-nos cobardemente atrás de um telefone, de um ecrã de computador e fingimos ser aquilo que não somos, consoante ditar a maioria, pois o importante é estar na crista da onda. Privilegiamos o parecer em detrimento do ser e amachucamos o livre-arbítrio, a liberdade individual de existir, para os descartarmos num qualquer caixote esquecido. Consequentemente, vamos perdendo as qualidades que nos fizeram alcançar o patamar de evolução actual e as futuras gerações, crescendo neste panorama de frivolidade, constroem um mundo onde a autenticidade, algo por que nos batemos durante tanto tempo, deixará praticamente de existir.

Pensemos nisto. Onde é que escolhemos deixarmos de ser? Onde é que escolhemos, simplesmente, deixar de viver?