quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Olhar que me Persegue, de Helene Flood / Editora Dom Quixote - Tradução de Ricardo Gonçalves

Nas livrarias a 31 de Agosto




Sara está na flor da idade, tem trinta e poucos anos, é casada com Sigurd, um arquiteto igualmente jovem e ambicioso, sócio de um ateliê, sempre assoberbado de trabalho.

Sara é psicóloga e trabalha por conta própria num consultório instalado no anexo da casa onde vivem, e que andam a remodelar depois de a terem herdado do avô de Sigurd.

A maior parte dos seus pacientes são jovens problemáticos, mas não tem tantos como desejaria para equilibrar o orçamento familiar e, na maior parte dos dias, sente-se sozinha e entediada naquela grande casa em obras.

Porém, nada a podia fazer adivinhar o que a esperava: um belo dia, depois de lhe ter deixado uma mensagem amorosa no atendedor de chamadas, Sigurd desaparece. À medida que os terríveis acontecimentos se vão desenrolando, Sara sente-se quase incapaz de gerir tanto a sua vida como os seus pensamentos. Será que pode confiar na sua memória? Será que ela, perita em interpretar as emoções de terceiros, consegue realmente perceber as suas próprias? Será que é vítima do destino ou culpada pelo que ele lhe trouxe? 


quarta-feira, 26 de agosto de 2020

O Som da Montanha, de Yasunary Kawabata / Editora Dom Quixote - Tradução de Francisco Agarez

Nas livrarias a 31 de Agosto


De dia, Ogata Shingo, idoso homem de negócios de Tóquio, é atormentado por pequenos lapsos de memória. De noite, associa o rumor distante que lhe chega da montanha vizinha aos sons da morte. Pelo meio, as complexas relações que em tempos alicerçaram a sua vida: uma esposa difícil, um filho mulherengo e uma nora que nele inspira compaixão e frémitos de desejo. Com esta transluzente teia de fios condutores, Kawabata urdiu um romance que é uma meditação, poderosa e serenamente observada, sobre a inexorável passagem do tempo.

Lírico e meticuloso, O Som da Montanha é uma sublime descrição das agruras da velhice – o estreitamento gradual e relutante de uma vida humana, a par dos súbitos afloramentos de paixão que iluminam o seu desenlace.


domingo, 23 de agosto de 2020

Trilogia do Belo - Encontros de Filosofia e Literatura nos 50 anos de Vida Literária de Mário Cláudio, de Maria Celeste Natário e José Vieira (Organização) / Editora Dom Quixote

Nas livrarias a 25 de Agosto



“Mário Cláudio ocupa um lugar proeminente na atual literatura de língua portuguesa, não só pela sua qualidade narrativa, mas também pela sua escrita exuberante, pelos seus temas ao mesmo tempo locais e cosmopolitas e pelo alcance das suas personagens que viajam entre o domínio do real e da ficção, pondo em causa aquilo que nós, enquanto humanidade, vamos fazendo. […]

Reunimos aqui um conjunto de ensaios de académicos, professores, críticos literários e investigadores que têm dedicado parte do seu trabalho à análise e reflexão da obra de Mário Cláudio, onde se avançaram novas pistas de leitura, assim como novos horizontes de expetativa em torno da obra do autor […]

O diálogo entre a literatura, a filosofia e o pensamento, a interseção entre diversos campos artísticos como a pintura, a banda desenhada, o cinema, a teologia e a música, por exemplo, serviram para demonstrar o alcance, o dinamismo e a plasticidade da obra de Mário Cláudio.”


sábado, 22 de agosto de 2020

O CASTELO, de Fernando Teixeira

 


Os sinos da igreja dão as primeiras badaladas do dia, considerando haver terminado o período da noite em que a população da vila tem direito ao devido descanso em silêncio. Primeiro, quatro pares de badaladas a dois tons, seguidos de uma sequência de badaladas simples em número igual ao das horas certas.

Conta-as, mais para se certificar de que é a hora que julga ser, e não se engana: sete badaladas, sete horas da manhã. Levanta-se da cama e prepara-se para fazer a sua higiene. Antes, já um galo fizera anunciar a aurora, para o qual, tempo e dia não se medem em horas ou minutos, nem o som do sino tem qualquer significado. Porém, o cantar estridente do galináceo teve o condão de o deixar a sono solto, e é sempre assim no Verão: a ave começa o dia antes do sino e é com ela que desperta.

Nessa manhã, depois de tomar o pequeno-almoço, decide-se por um curto passeio enquanto ainda sopra uma ligeira brisa tépida, antes que a dureza do estio, na forma de um calor inclemente, lhe tolha os passos e o impeça de sair de casa. Percorre sem pressa meia dúzia de ruas estreitas com algum declive, pois naquela terra o caminho só se faz subindo ou descendo, por vezes de forma tão acentuada e por ruelas tão estreitas que recebem o nome de “quelhas”.  

Dirige-se ao castelo da vila ou, melhor dizendo, a uma mera amostra dele, já que, em tempos passados, alguém terá achado que as pedras do castelo teriam melhor aproveitamento se fossem utilizadas para construir os muros do cemitério, ali perto. Hoje, são os mortos que testemunham, na base do castelo, a aberração de tal escolha, por entre alguns viventes que guardam o sucedido na memória.

Sobe as escadas que ladeiam uma rampa de pedras irregulares e acede ao terreiro do castelo. Abeira-se do que resta das muralhas de granito e, como é hábito sempre que ali vai, deixa-se levar pela contemplação da imensidade e beleza da campina raiana espraiando-se no sopé do morro em que a sua vila se encavalita. Ao longe, as serras estendem-se até ao país vizinho.

Agasta-se com o estado em que o terreiro se encontra: ervas daninhas crescem a eito e também algum lixo se encontra por ali, sem que seja feita a devida manutenção do espaço. Evidentes sinais de desmazelo. Já antes, ao longo da escada de acesso, havia reparado que os focos de luz no chão, que deveriam iluminar o castelo de noite, continuam lamentavelmente deteriorados em resultado da selvajaria ou falta de civismo de alguns.

Na frente de um binóculo para se observar a campina, uma rampa de granito polido, infelizmente também ela grafitada, contém a inscrição:

Subi acima ao castelo

Lá ao longe vi a Espanha.

Dei um abraço a Monsanto

E o coração à Idanha.

 

Sentado na muralha do castelo, virado para a vila, observa a igreja matriz, a torre sineira e o casario mais adiante. Duas badaladas do sino, indicando uma meia hora, sobressaltam-no do torpor em que entrou. Reflecte, então, em como não basta que uma autarquia crie espaços de cultura e de lazer para usufruto da população e visitantes. É necessário que depois proceda à sua manutenção, esperando que o cuidado e civismo de todos contribua também para a sua conservação e beleza. A bem das nossas gentes e dos forasteiros. Naquele caso, para que uns e outros dêem, efectivamente, o coração à Idanha.

 

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O MUNDO DESDE AGORA, de Anita dos Santos











Tudo mudou.

Todos os nossos hábitos tiveram de ser alterados a partir do momento em que o Mundo tomou consciência do novo flagelo que se chama COVID.

Não adianta pensar que algum dia as coisas serão de novo como eram, nunca mais vão ser.

O ser humano não é “feito” para viver isolado, mas ao longo da história da humanidade conhecida se viu que ser necessário o isolamento para que tornasse possível debelar pestes e doenças que assolaram o vastas zonas e populações do Mundo. Só temos de olhar para trás e relembrar o passado.

A varíola foi uma das grandes ceifeiras a nível mundial. Esta epidemia conhecida desde antes da era cristã, dizimou ao longo do tempo incontáveis porções de população pelo mundo inteiro.

Só no século XVIII se tornou prática injectar o vírus em crianças e jovens. Este modo de imunização ainda hoje é denominando por vacina.

Em Inglaterra, país altamente infligido por esta doença, a família real foi inoculada publicamente para convencer os seus concidadãos a aceder à vacina.

Hoje, a doença está erradicada.

Mas o Mundo mudou.

Passamos pela peste negra, pandemia que dizimou cerca de um terço da população da Europa no século XVI. Era uma doença fatal e bastante rápida depois de manifestada na forma de inchaços, que dava uma média de vida dolorosa entre dois e cinco dias ao seu portador.

Hoje, se diagnosticada atempadamente, pode ser curada através de antibióticos adequados.

Mas o Mundo mudou.

A tuberculose é uma das mais antigas doenças conhecidas, talvez a maior causa de mortes a nível global.

Embora exista vacina para esta doença desde 1906, bem como vários tratamentos possíveis, continuam a falecer todos os anos vários milhares de pessoas devido a esta doença.

Após a descoberta do tratamento para cada uma das epidemias que referi, o Mundo mudou.

Será uma questão de tempo, será uma questão de engenho e perícia. Mas havemos de chegar à tão esperada vacina para o último flagelo do Homem chamado COVID.


Três Novelas - Um Verão Assim; As Máscaras de Sábado; Damascena, de Mário Cláudio / Editora Dom Quixote

Nas livrarias a 25 de Agosto


As três primeiras novelas assinadas por Mário Cláudio e publicadas entre 1974 e 1983 colheram desde o primeiro instante o elogio unânime da crítica e dos pares, transformando o escritor numa das mais sérias promessas das letras portuguesas de então. Encontrando-se fora de mercado há já vários anos e não tendo nunca pertencido ao catálogo das Publicações Dom Quixote, a recente celebração dos 50 anos de vida literária de Mário Cláudio foi o pretexto ideal para reunir estas três novelas num só volume.


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Lugar para Dois (finalista do prémio Leya), de Miguel Jesus / Editora Casa das Letras

Nas livrarias a 25 de Agosto



Depois do sucesso da inauguração do Metropolitano de Lisboa, Daniel Stoffel, responsável financeiro do projeto, parece poder escolher o futuro que quiser.

Porém, a morte da filha num acidente estúpido enche-o de uma culpa de que não se consegue libertar. Desfeito o casamento, começa a afundar-se na bebida, até que um amigo lhe sugere que deixe Portugal, onde tudo aconteceu, e tente recomeçar a vida noutro lugar.

Instala-se, então, num lugar recôndito de Moçambique, onde uma velha negra o ajuda nas tarefas domésticas e lhe leva jornais que o põem a par dos movimentos independentistas das Colónias e das mudanças por que a Metrópole vai passando.

Apesar da vontade de ficar sozinho, o frondoso embondeiro que o protege da curiosidade alheia tem uma frase riscada no tronco que parece traçar-lhe um destino diferente, insistindo na paternidade que lhe estava destinada. E, por mais que Daniel a renegue, é nesse caminho que poderá encontrar o próprio perdão.


terça-feira, 18 de agosto de 2020

Pés na Terra, de Raquel Ochoa / Editora Oficina do Livro

Nas livrarias a 25 de Agosto



Quando lemos relatos de viagens, transformamo-nos nós próprios em viajantes. E isso não deixará de acontecer com a leitura deste notável Pés na Terra, da premiada escritora Raquel Ochoa, que reúne memórias de viagens aos cinco continentes, fazendo-nos olhar para o mundo contemporâneo como algo incrivelmente belo, mas também cheio de desigualdades e contradições. As suas experiências (sobretudo como mulher viajando sozinha e enfrentando o risco e o preconceito), as peripécias inesperadas, as provações e o desconforto a par da superação, do deslumbramento e da pacificação – e ainda o relato apaixonado de alguns encontros especiais ao longo da jornada – são o guia ideal para quem queira sair do seu umbigo para o umbigo do mundo, de mochila às costas ou sentado no sofá.


Autora MBarreto Condado


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Estórias com Figuras, de António Tabuchchi / Editora Dom Quixote - Tradução de Maria José de Lancastre e Gaëtan Martins de Oliveira

Nas livrarias a 25 de Agosto



Na origem destas estórias de Antonio Tabucchi estão obras de vários artistas plásticos portugueses contemporâneos – José Barrias, António Dacosta, Lisa Santos Silva, Paula Rego, Graça Morais, Maria Helena Vieira da Silva, José de Guimarães, Júlio Pomar, António Costa Pinheiro, Bartolomeu Cid dos Santos -, testemunhando a profunda e duradoura cumplicidade do autor com a cultura e a arte de um país que tão bem soube compreender e sobre o qual tanto e tão brilhantemente escreveu.


Autor Fernando Teixeira


domingo, 16 de agosto de 2020

Jubiabá (nova edição), de Jorge Amado / Editora Dom Quixote

Nas livrarias a 25 de Agosto



Eis o romance que deu projeção internacional a Jorge Amado. A história das voltas e reviravoltas do órfão Antônio Balduíno – que vai de mendigo a músico, de pugilista a trabalhador em plantações de tabaco, de artista de circo a inflamado orador sindical.

Aplaudido pela crítica e pelos leitores desde a sua estreia, em 1931, Jorge Amado viu a sua posição definitivamente firmada no panorama literário brasileiro com o lançamento de Jubiabá.

Publicado em 1935, quando o autor tinha apenas 23 anos, este é um verdadeiro romance de formação, onde o escritor aborda um dos temas que lhe é mais caro – a força da cultura afro-baiana contra a opressão política e as injustiças sociais.

O livro representou uma verdadeira revolução no romance brasileiro. Antônio Balduíno, a sua figura central, tornou-se um dos personagens mais populares da novelística do país, e Jubiabá foi o trampolim que projetou Jorge Amado no estrangeiro, através de uma série impressionante de traduções.


sábado, 8 de agosto de 2020

O REFÚGIO, de Fernando Teixeira



Achou a distância demasiadamente longa para chegar ao terreno que o vendedor lhe ia mostrar. Seis quilómetros desde que se saía da estrada nacional, percorridos por uma outra municipal sinuosa e estreita mas asfaltada, do mal, o menos, pareceu-lhe ser motivo mais do que suficiente para se decidir por uma recusa em comprar aquela porção de terra. E só ainda ia a meio do caminho…

Porém, quando lá chegou, essa impressão negativa desvaneceu-se e nem as palavras do vendedor, a tentar convencê-lo, seriam necessárias para tomar uma decisão. O local era perfeito, aprazível, sem construções à vista, rodeado de alguma floresta variada e de vegetação mais rasteira, alguns afloramentos rochosos dispersos e ligeiro declive para um pequeno riacho, por onde corria água, mesmo em Verões mais secos, disse-lhe o vendedor a quem resolveu dar o benefício da dúvida.

Dúvidas, não tinha ele. Sim, aquele era o local perfeito, tal como imaginara que seria o lugar onde um dia construiria uma casa que seria o Refúgio, assim chamaria ao seu paraíso, longe do bulício da cidade e dos seus habitantes, onde poderia estar em contacto com a natureza, procurando a paz e a simplicidade que idealizava depois de uma vida em permanente correria e convulsão. Com a mesma tranquilidade, fechou o negócio.

Durante dois anos, tratou de conseguir um projecto aprovado pela autarquia e foi construindo, ele próprio, a casa de pedra com que sonhara, tão simples e rústica como acolhedora. Vezes sem conta, fizera então aquela estrada até se tornar familiar como as suas mãos, conhecendo-lhe cada curva, as árvores nas bermas, cada marco ou singularidade que lhe permitia distinguir onde se encontrava e quanto faltava para o destino.

Mês após mês, com a ajuda de antigos companheiros das obras, foi colocando pedra sobre pedra, amassando argamassas para colocar novas pedras, marcando os vãos, vendo as paredes erguerem-se e tornarem-se numa habitação, como fizera tantas vezes para outros proprietários para quem trabalhara. Mas agora, era a sua casa que ele erguia, de sol a sol, metodicamente, vencendo a ansiedade de a ver concluída e pronta, para nela entrar e residir.

Cada pedra de granito assente carregava em si o peso de tantos sacrifícios que fizera no passado, o suor de cada dia de trabalho significava sucessos e fracassos de outrora, cada viagem ao longo dos seis quilómetros da “sua” estrada transportava dentro de si alegrias e tristezas, sendo a viuvez prematura o maior dos infortúnios, cuja lembrança o deixava a cismar por saber que nunca teria, naquela casa, no refúgio ambicionado e concretizado, a companhia de quem tinha partilhado consigo sonhos e dificuldades da vida.

Ao fim da tarde, cansado pelo esforço físico despendido, gostava de bebericar uma cerveja com os homens, ou sozinho se eles já tivessem dispersado, admirando o céu alaranjado logo após o astro-rei se ter ocultado por detrás das serras circundantes, aguardando o anoitecer pejado dos ruídos da natureza envolvente. Só então regressava à cidade.

Depois da casa construída e de finalmente se ter mudado para lá, manteve o mesmo hábito. Quando o ocaso se aproximava nas tardes estivais, descansava o corpo numa espreguiçadeira, com uma cerveja na mão, observando os diversos matizes que metamorfoseavam o céu, desde o azul-celeste a um alaranjado crescente, cada vez mais vivo, até que o firmamento se revestia de tons violeta para depois escurecer, tornando-se breu, iluminado por milhões de estrelas que pareciam subjugá-lo. Chegava a sonhar com tais ocasos quando, adormecendo na espreguiçadeira, o sonho parecia querer substituir-se à realidade.

Um dia, regressava a casa, percorrendo uma vez mais aqueles seis quilómetros de estrada estreita e sinuosa que o separavam do Refúgio. Já era de noite e apenas os faróis da viatura iluminavam o asfalto e as árvores mais próximas, transformadas em fantasmas monocromáticos. Não se vislumbravam estrelas e o breu era total. Só pensava em chegar e deitar-se no conforto da cama, esperando o dia seguinte. Após contornar uma colina, foi surpreendido pela visão de uma espécie de ocaso onde o sol já se pusera há muito. À distância, o contorno negro da serra distinguia-se num clarão alaranjado, cada vez mais vivo à medida que se aproximava. Um clarão maldito e imenso, ameaçando envolver toda a área do seu Refúgio.

Foi então que sentiu o cheiro a madeira queimada.

 

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

UM DIA DE CÃO, de Anita dos Santos










Olá! Já uma vez vos contei umas “aventuras” que tive com una livros da minha dona.

Nessa altura eu era muito pequeno, era ainda um cachorro.

Entretanto já passaram alguns anos, cresci, já sou um cão adulto e com juízo. Já sei que não devo brincar com os livros da minha dona!

Muitas coisas se passaram, entretanto, mas a mais importante foi que um dia os meus donos chegaram a casa e traziam com eles uma “coisinha” toda preta. Ela só chiava, mas tinha um cheiro muito agradável, umas orelhas penduradas (as minhas são espetadas!), e acho que ela também gostou de mim. Sim, era uma ela!

Ficámos a ser os melhores companheiros.

De manhã, quando os donos acordam, eles abrem-nos a porta do quarto. Nós vamos à vez, e saltamos para a cama deles. Só depois vimos para baixo, para onde está o resto da casa e o jardim.

É muito bom sair porta fora e ir cheirar tudo, para ver se o malandro do gato do lado veio passar à porta enquanto lá não estávamos para correr com ele. Ou então qualquer outro cheiro de outro bicho que por lá tenha andado. O sapo já não aparece há um tempo…

Entretanto podemos sempre contar com as lagartixas!

A minha dona não gosta que eu ande à procura delas, mas elas são tão divertidas que não consigo resistir. É que nem ouço quando ela ralha comigo de tão entretido que estou na caçada à lagartixa…

É sempre divertido andar a correr atrás da minha amiga, ela não fica nada preocupada. Pelo contrário, muitas vezes é ela que me desafia para brincar, me mostra os dentes ou me rói a orelha. Também gosta de chegar ao pé de mim e bater os pés no chão – isso aprendeu comigo! – para me desafiar. Depois desata a fugir para eu ir atrás dela.

Quando estou com preguiça, fico deitado ao sol com os olhos um pouco fechados, até ficar quentinho, depois vou deitar-me onde a minha dona estiver.

É bom quando vamos passear, mas fico muito esganado com o peitoril e a trela… a minha dona diz que eu puxo muito… não sei o que é que ela quer dizer com isso. Mas gostava mais de ir passear quando íamos ver as cabras – a minha dona dizia que se chamavam assim – mas agora já lá não estão.

Ao serão gostamos de ficar no sofá com a nossa dona.

Quando chega à noite tenho de ter em atenção em ser o primeiro a subir as escadas para escolher a cama para dormir, senão ela escolhe aquela que eu quero…

E pronto, assim se passa um dia divertido, mesmo que pelo meio tenhamos tido ainda tempo para roer uns paus, que tenham vindo da pilha da lenha!




domingo, 2 de agosto de 2020

NÓ NA GARGANTA, de MC Garcia


Os negócios corriam mal, era impossível continuar com o bar. Já não se tratava de amealhar o dinheiro necessário para construir a casa na aldeia, esse sonho estava inevitavelmente, adiado, agora tratava-se de sobrevivência.

Tudo o que tinham estava investido no negócio, e já não havia mais. Fechar o bar foi, com toda a certeza, a decisão mais difícil que meus pais tomaram.

Ainda faltava pagar algumas das letras, acordadas aquando da compra ao sócio. Este não se encontrava no país, mas tinha nomeado um procurador que morava na capital e raramente aparecia por aquelas bandas. Meu pai precisava urgentemente de falar com ele.

Só posso dizer o que vejo ao lembrar esse dia, que nunca vou esquecer e que, ainda hoje, me ata com um nó a garganta.

Anoitecia. Os dois homens encontraram-se na pequena ponte junto ao bar. Sob a luz ténue do candeeiro da rua a figura do meu pai originava uma sombra comprida e amarelada. Sinto que nada mais existe. Não vejo a minha mãe, vejo apenas aqueles dois homens. Um gesticula agitadamente, o meu pai baixa a cabeça, fala baixinho. Não consigo descrever os sentimentos dele naquela hora, mas consegui sentir o desespero que o assaltava interiormente.

Mesmo sem entender o alcance do que estava a acontecer sentia-me apavorada, era como se o chão me fugisse debaixo dos pés! O meu pai estava dando o negócio como liquidação de uma dívida que era muito inferior ao valor do equipamento que havia no bar.

Depois de conversar durante algum tempo, o meu pai colocou nas mãos daquele homem as chaves do bar, mas ele atirou-as ao chão e exigiu, mais uma vez, o pagamento em dinheiro. Só isso lhe interessava.

Ouço o meu pai dizer “Se quiseres, a minha cabeça eu posso dar, mas o dinheiro não, não tenho!” porém, o homem virou as costas e entrou no carro. O meu pai ficou ali, imóvel, amargurado, olhando sem ver, o automóvel que partia, até este desaparecer na noite escura. Naquele momento o meu pai era o homem mais solitário do mundo.

Depois tomou a minha mão e, em silêncio, regressámos para casa. Agora vejo a minha mãe, ela vai connosco. Aperta o peito com as mãos, chora baixinho…

Sofreram toda a vida por não terem conseguido pagar aquela dívida. É em momentos como este que constatamos que o destino não está nas nossas mãos e nos fogem todas as certezas…

Já do avesso virou cada certeza

E o país que procurava não existe

Ainda não existe

Manuel Alegre, in “Um Barco Para Ítaca”

 

Como o bar ainda estava nas suas mãos, ele decidiu saldar as pequenas dívidas com peças de mobiliário. O padeiro, um português grande, daqueles que o sol não bronzeia, mas avermelha, que fazia a distribuição do pão porta a porta numa mota com sidecar, levou a máquina registadora; o fornecedor de bebidas levou a "minha" Rockola…, mas não levou a maior parte dos discos de 45 rotações, esses guardei. O senhorio ficou com tudo o que restava.

Meu pai só vendeu a licença de licores porque esta tinha algum valor comercial e era transmissível. Com essa pequena quantia devia iniciar uma nova vida e sustentar a família, sabia lá, por quanto tempo.

E numa manhã, como outras tantas, o Bar Copacabana fechou as portas para sempre, deixando-nos do lado de fora, ao sabor de um destino incerto.

Muitos anos depois, passei por aquela rua. O edifício ainda existia, mas as portas do antigo bar continuavam fechadas. As pessoas que moravam na rua não sabiam que naquele local tinha existido um bar que se chamava Copacabana. Mais recentemente soube que, durante as grandes inundações, muitos dos lugares onde passei a minha infância foram sepultadas pela pedras e a terra, ou arrastados pelas águas enfurecidas e lançados ao mar. Ficam só as memórias.

Perder o negócio foi, para os meus pais, uma vergonha. Custava-lhes enfrentar os seus conterrâneos e suportar a comiseração de uns e o escárnio de outros. Apenas tinham vontade de sair daquele lugar e começar uma nova vida onde ninguém os conhecesse.

Talvez por isso foi tão fácil aceitar a sugestão de um conterrâneo, um daqueles que tinham esquecido a aldeia e a família,  aventurando-se a ir para o país mais profundo, onde o rio Orinoco se cruza com o Caroní, junto à selva, onde se escondem os tesouros da terra.

Ele falou-lhe da grande siderurgia em construção e da cidade que se desenvolvia ao seu redor, da abundância de trabalho e dos bons ordenados.

Então, o meu pai soube que tinha que começar a trabalhar na construção civil e pôr em prática tudo o que tinha aprendido com o pai.

Com uma magra quantia de dinheiro, talvez menos do que aquela que trazia quando chegou àquele país, decidiu partir, uma vez mais, deixando atrás a mulher e quatro filhos pequenos. Mas agora o que o levava não era o sonho e a esperança, agora era o desalento e a incerteza que o levavam.