quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Noturno arco-íris, Solidão Partilhada | HELDER MENOR


A Vanda vive com o fantasma de uma velhinha. Moram as duas no sétimo direito.

A idosa apareceu-lhe uns meses depois de se ter separado. Enquanto casada, a angústia das ausências do marido e os ciúmes com que ardia, não a deixavam ver mais nada. Depois do Paulo sair de casa, começou a vê-la. Passou a ter mais tempo para olhar por ela, para ela e para as coisas à volta. A velhinha apareceu a primeira vez, numa noite de terça-feira, depois da Vanda adormecer no sofá. 

Acordou sobressaltada e com frio no sofá, levantou-se e foi para a cama. Foi então que percebeu a silhueta recortada na porta da cozinha. Parecia morta e parada atrás de uma espécie de mesa de ferro sem tampo. A viva não teve medo. Para dizer a verdade, nem pensou no assunto, caiu na cama e continuou a dormir e a sonhar com o ex-marido. Só na manhã seguinte se deu conta que a velha não fez parte do sonho. Ao final da tarde, a fazer o jantar na cozinha e a pensar na silhueta, ouviu os passos leves ponteados por uma espécie de bengala e sentiu uma presença a atravessar a sala.

- Devo estar a ficar maluca.

Estava. Afinal de contas, estamos todos. 

Nessa noite, a Vanda foi sentar-se a comer a sopa detox adelgaçante que bimby cozinhou. 
Sentou-se no seu canto do sofá da sala e fugiu ao mundo em episódios sucessivos de polícias fortes, lindos, inteligentes e americanos. O fantasma da velha pairou-lhe na mente mais uns dias.

Passaram umas semanas. Num sábado de manhã, enquanto aspirava o chão da sala, bem acordada, voltou a ver a velhota. Inteirinha, nem esfumada nem nada. A imagem completa, refletida no espelho em frente à porta da rua. Enrugada, magra e pequenina. Tinha o cabelo encaracolado branco e marcas nos braços de quem passou muito tempo a soro. Um vestido leve tipo bata clara com flores azuis e um andarilho de alumínio à frente. Apenas por um instante. Mas viu bem. Curiosamente, mais uma vez, não se assustou. Continuou a aspirar. Depois comeu uma sandes de queijo fresco e foi tomar banho.

À tarde contou à Tita, que faz reiki e é assim meio espiritual.

- Caraças, pá miúda, temos de ver o que é isso e quem é essa velha!!!

A Tita ficou entusiasmada e marcaram logo uma “sessão energética” para essa noite. Inclusive a Tita, até desmarcou um jantar que tinha com um mais-ou-menos namorado. Ligaram à Maria João, uma amiga da Tita que é mais graduada no Reiki e em anos de divorciada...

Jantaram as três frango assado e nem beberam o vinho verde que gostam porque a João, disse que o espírito podia ficar ofendido. Sentaram-se à volta da mesa da sala, acenderam umas velinhas redondas dentro de copos (eram as únicas que tinham), apagaram a televisão e deram as mãos. A João presidia a cerimónia com voz profunda.

- Espírito que estás nesta casa, por favor apresenta-te aos teus irmãos vivos e dá-nos um sinal. (Pausa). Espírito que estás nesta casa, por favor apresenta-se aos teus irmãos vivos e dá-nos um sinal.

Nada. Nada de sinal. Nem vozes, nem corrente de ar, nem velas a apagar. Nada.
Apenas um silêncio frio e desconfortável.

A João repetiu o apelo, um num tom sério... como aqueles dos carros mal estacionados nas caves dos hipermercados... mais lento e pesado. É um espírito tímido, concluiu, às vezes acontece, sobretudo se são mulheres...

Picado por esta boca algo machista, a alma da velhinha manifestou-se na cozinha. Um copo cometeu suicídio lançando-se do alto do escorredor onde estava deitado acabado de lavar e à espera de secar… Um copo grande de água com riscas amarelas. Vidro grosso partido com estrondo espalhado no chão.

As três vivas gritaram o susto. A João, depois de recomposta, sorriu conhecedora. Tita ficou arrepiada e teve de ir a correr fazer xixi. A Vanda levantou-se, acendeu as luzes e foi varrer o chão da cozinha. Acabou-se ali a sessão.

Decidiram sair. Foram a um bar ouvir música brasileira e beber umas caipirinhas que custaram os-olhos-da-cara-mas-um-dia-não-são-dias. A Vanda nessa noite acabou por ir dormir a casa da Tita que ficou imprópria para conduzir.

Depois da sessão e do copo a partir-se, a velhinha começou a aparecer mais vezes. Passou a ser uma presença quase permanente lá em casa. A Vanda foi-se habituando ao perfume Madeiras do Oriente.

Passaram-se meses desde que o copo caiu do escorredor.

Uma tarde destas, cruzou-se com a João na rua.

- Vanda temos que fazer outra sessãozinha lá em tua casa, mas desta vez, levo uma defumação, para expulsar o espírito...

A Vanda indignou-se!

- Expulsar?? Nem pensar nisso, deixa estar a senhora. Faz-me mais companhia que o meu ex e dá menos trabalho que um gato. Não preciso de lhe andar a ver as mensagens do telemóvel nem de lhe mudar a areia da caixa!!!! Além disso desde que a Tita disse no café que tenho um fantasma em casa, a Dona Idália do primeiro frente deixou de me querer arranjar casamento com o filho que é gay.



terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

LUA DO SANGUE, IRMANDADE DA CRUZ


"Já não sabia quem suplicava, perdido nas mãos e na boca dela. Podia morrer naquele momento, nos seus braços, morreria feliz."

PORTUGAL MAIS QUE SOL | Convidamos-vos a conhecer: A CIDADE ROMANA DE AMMAIA – A Atlântida do Alentejo | PAULO DA COSTA GONÇALVES


Texto e Fotos : Paulo Da Costa Gonçalves
Direitos Reservados

Atestando a sua grandeza patrimonial as ruinas da Cidade Romana de Ammaia situam-se na freguesia de São Salvador da Aramenha, bem próximas das convidativas vila de Marvão e cidade de Castelo de Vide, em pleno coração do Parque Natural da Serra de S. Mamede no distrito de Portalegre. 
Proporcionando-nos um grandioso encontro com a História, Ammaia é uma pérola histórica escondida no meio do Alentejo e motivo privilegiado de visita.
Com o estatuto de "Civitas" atribuído por Cláudio (41 dc - 54 d.c), o 4º imperador da dinastia júlio-claudiana e sucessor do extravagante e cruel Calígula, a cidade de Ammaia terá sido fundada nos finais do século I a.C., durante a governação de Augusto, fundador do Império Romano e o seu primeiro imperador. A sua localização, os recursos minerais e naturais da região, tais como o quartzo e o ouro, proporcionaram à cidade desenvolver-se como um importante núcleo urbano do império e ponto de cruzamento de vias romanas ligada à capital da província, "Emerita Augusta" (atual Mérida/Espanha).

Tendo sobrevivido à Queda do Império Romano, apenas entre os séculos V e IX e quando a zona estava já sob o domínio árabe, terá entrado em declínio e sido despovoada.
Uma das principais curiosidades destas ruínas é que, durante séculos, pensou-se que a cidade teria tido a sua existência onde se viria a desenvolver a actual cidade alentejana de Portalegre. Por um lado, porque nos séculos V e IX terão sido vítimas de um cataclismo que as terá soterrado. Por outro lado, é reconhecido que muita da pedra aparelhada com que foram construídos palácios e igrejas em Portalegre foram oriundas das suas ruinas, sobretudo a partir do século XVI. O mesmo aconteceu para a construção das muralhas de Marvão e de Castelo de Vide e aos poucos e poucos apenas foram ficando, acima do solo, alguns muros construídos com pedra miúda e fragmentos de tijolos e telhas que não tinham interesse para as novas construções na região.

No entanto, esses e outros factores naturais, fizeram com a Ammaia seja uma das poucas cidades do império romano que ficou conservada e, contrariamente ao que aconteceu em muitos outros locais ao longo da história, sobre a qual não foi desenvolvida qualquer outra cidade.

Soterrada a uma profundidade de pouco mais de 80 cm um arado mais fundo, de tempos a tempos, ia levantando e trazendo até à superfície alguns restos da desaparecida Ammaia e na tradição popular nasceu a lenda de que a velha cidade da Aramenha teria sido engolida pela terra durante um grande terramoto. 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | O Homem Sapo (e como ele se transformou) | VANESSA LOURENÇO


Deambulava sozinho por entre becos de ruas salobras, cardumes de ilustres desconhecidos e a escuridão das noites frias. Dir-se-ia que andava perdido, mas conhecia os recantos do charco citadino como ninguém. A vida não lhe era farta, mas dela insistia em se saciar, um dia de cada vez, cantarolando. “É louco”, murmuravam uns, “canta para fugir da vida”, diziam outros. E o velho, que muitas vezes os ouvia, não queria saber.

Chamou-lhe Libelinha, e não foi por acaso: apesar de viver nas ruas, era um homem culto, e sabia que estes pequenos animais, antes de se tornarem adultos nos céus, nasciam nas águas turvas dos charcos emoldurados por juncos e ervas altas. Ora ele tinha encontrado a Libelinha dentro de um contentor de lixo que as chuvas impiedosas dos últimos dias tinham inundado, e por pouco lhe tinha salvo a vida. Ela tinha renascido e por gratidão, nunca mais lhe largara os passos.

Habituado à sua solidão, o velho viu-se pela Libelinha obrigado a renascer, pois que o diacho da cadela adorava pessoas e depois de escapar da morte quase certa, parecia determinada em exigir da vida tudo aquilo a que tinha direito: “que simpática, a cadelinha é sua?”, “tome lá esta ração e não agradeça, ela precisa de crescer forte!”, “que bonita, onde a encontrou?”. E a todos o velho se via forçado a responder, notando ao final de uns dias que todas as manhãs ansiava por este mundo novo que a Libelinha teimava em lhe fazer ver: a cadela parecia acreditar que ninguém era intrinsecamente mau e que por todos devia distribuir amor, e esse amor pela vida era tão grande que transbordava do pequeno corpo e inundava o velho, que de antigo só tinha a casca grossa que lhe cobria os ossos, afinal.

Começaram a ser conhecidos na vizinhança, e o velho depressa compreendeu que não tinha salvo a vida da cadela mais do que ela tinha salvo a dele: o barbeiro da avenida ofereceu-se para lhe fazer barba e cabelo, pois que “onde já se viu, uma cadelinha tão bonita andar ao lado de um homem descabelado?”; o dono da pastelaria oferecia-lhe pela manhã um café e um pastel, pois que “tem que andar bem acordado, não vá a Libelinha perder-se!”; a veterinária municipal insistia em oferecer vacinas e desparasitantes, pois que “a Libelinha tem que andar saudável para tomar conta de si!”.

O velho decidiu então que tinha que estar à altura de todo aquele amor e começou com a Libelinha a percorrer as ruas em busca de desperdício que pudesse vender: latas vazias, metal e objectos deitados fora que pudessem ser vendidos em segunda mão. À tardinha, regressava à pastelaria e ajudava nas limpezas, o que lhe garantia sempre meia dúzia de tostões e uma refeição quente para si, e para a Libelinha.

Uns meses mais tarde, sentado num banquinho de madeira ao lado da porta de um pequeno anexo cedido gentilmente por um vizinho, e com a cabeça pequenina da Libelinha entre os joelhos enquanto lhe acariciava o focinho farrusco, pensou de si para si que ela devia ter planeado tudo aquilo muito antes de se terem encontrado. Afinal de contas, não podia acreditar que tivessem salvo a vida um do outro por acaso.




LITERATURA | Querida Ijeawele de Chimamanda Ngozie Adichie | DOM QUIXOTE (Ensaio) - Tradução de Ana Saldanha

Nas livrarias a 28 de Fevereiro


Quando uma amiga lhe perguntou qual a melhor forma de educar a filha como feminista, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie respondeu com uma carta: Querida Ijeawele…Neste texto intimista, faz 15 sugestões. O seu objectivo? Fortalecer as novas gerações de mulheres e proporcionar-lhes as ferramentas para crescerem com um maior sentido de identidade e independência. Da aparência à parentalidade, do casamento à sexualidade e até mesmo à escolha dos brinquedos na infância, a autora explora temas fundamentais e incita as mulheres a desprenderem-se dos velhos mitos e de uma sociedade predominantemente machista (ainda que, nalguns casos, de forma encapotada).

domingo, 25 de fevereiro de 2018

LITERATURA | Na Prática a Teoria é Outra (escritos 1957-99) de Victor Cunha Rego | DOM QUIXOTE (Ensaio)

Nas livrarias a 27 de Fevereiro


Com prefácios de José Cutileiro, Otavio Frias Filho, Manuel de Lucena e José Miguel Júdice, esta edição organizada por Vasco Rosa e André Cunha Rego, reúne todos os textos do jornalista, colunista e diplomata.

CRÓNICA | A humanidade e a desumanização | CRISTINA DAS NEVES ALEIXO




Este é um tema que me tem dado uma boa dose de inquietação, pela sua crescente transversalidade ao ser humano, contemplando crianças e adultos. Desde as barbaridades das guerras à corrupção em todas as áreas, passando pela notória falta de paciência e agressividade do cidadão comum, até ao bullying juvenil e, até, infantil.

É certo que guerras e elementos sem brio e ocos de emoções sempre houve, o hoje chamado bullying também e a natureza humana sempre gostou de ter e ostentar poder, mas creio que ainda existiam alguns limites que, nos dias que vivemos, já foram amplamente ultrapassados. Aquilo que verifico, actualmente, enquanto observadora atenta do que me rodeia, é que todos os valores morais de que éramos imbuídos desde o berço estão a desaparecer. O respeito, a honra, a honestidade, a abnegação, o esforço e a empatia estão a dar lugar aos seus opostos. Estamos a esquecer-nos do que significa ser humano, do verdadeiro e enorme significado que essa palavra encerra.

Os adultos estão demasiado ocupados em conseguir os meios para ter e dar uma vivência cada vez mais materialista e de ostentação; querem ser e ter mais e melhor; são desafiados a isso, pelo sistema perfeitamente montado para efeito e crêem – falsamente – serem recompensados por tanto esforço, por relegarem as famílias para segundo plano, por abandonarem as bases morais, os alicerces com que os seus pais os dotaram para enfrentarem os desafios da vida. Fazem desmoronar os princípios básicos da sustentabilidade de uma sociedade pacífica e próspera para todos e dão início às fundações da anarquia e do caos. O comodismo e a inércia instalam-se e permitem-se serem guiados – usados – por pares completamente cegos pelo poderio e viciados no sofrimento alheio.

Os miúdos, completamente desacompanhados, crescem sem qualquer noção do que é viver em sociedade, do que custa ter e manter uma vida minimamente confortável e honrada. Tornam-se insensíveis e desligados de emoções positivas; regridem às emoções primárias, as anteriores à evolução, aquelas que nos permitem a defesa e o ataque e tomam-nas como princípios essenciais à vivência. São o produto perfeito dos seus desgastados e hipnotizados pais. E são, também, o futuro, os percursores da nossa espécie. Pergunto-me que valores, que vivências, que experiências irão construir o futuro; o que passarão aos seus próprios filhos; que legados deixarão.

A nossa história tem algumas figuras completamente maquiavélicas, ao longo dos tempos, mas nunca se viu tantos exemplos de prepotência e desumanidade como agora. Temos líderes mundiais que afirmam que a forma de combater a violência armada é armando, ainda mais, o cidadão comum; outros querem, a qualquer preço, ter o melhor armamento e divertem-se a espicaçar e a ver o resto do mundo a tremer de medo e de raiva, enquanto fazem mais um teste nuclear aqui, outro ali; há aqueles que torturam e matam em nome de uma qualquer crença religiosa e perpetuam no tempo guerras e acossamentos infindáveis; pululam os corruptos, os oportunistas e ladrões, que não hesitam em espezinhar quem se atravesse no seu caminho para travar os seus objectivos.

E o cidadão comum é liderado por estes exemplos a negativo da essência humana. Torna-se também ele frio e calculista – a necessidade aguça o engenho; torna-se, também ele, o exemplo a não seguir.

Na base da pirâmide estão os jovens e as crianças. E eles crescem a violentar física e psicologicamente os pares e os parceiros de vida, cada vez mais cedo; a matar pais e irmãos; a descartar os mais velhos já a necessitar de amparo e empatia – algo que não conhecem. Perdem-se para a vida, pois não vivem, apenas sobrevivem.

Lembro-me de há vinte ou trinta anos ver alguns filmes de ficção científica que retratavam um futuro apocalíptico, de paisagens cinzentas pela destruição em massa, onde o sol se tinha eclipsado há muito, despojado de sentimentos e dominado pela necessidade primária da sobrevivência a qualquer custo. Na altura pensei que eram representações sem qualquer sentido. Quem, no seu juízo perfeito, seria capaz de tais atrocidades?, de se destruir a si próprio?! Hoje, infelizmente para todos nós, penso que os criadores desses cenários foram verdadeiros visionários.

Não nos podemos esquecer que somos uma espécie privilegiada: temos a opção da escolha e “damos cartas” nesta ainda maravilhosa bolinha azul. Podemos sempre escolher entre o certo e o errado, assim tenhamos as bases para isso.

Chegamos ao ponto em que se impõe uma única pergunta, que pode mudar o rumo da nossa espécie, de todo o planeta: vamos escolher viver confortavelmente ou sobreviver no caos? A escolha é mesmo só nossa e começa em cada um mas… não por muito tempo.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

LITERATURA | A Filha de Anna Giurickovic Dato | DOM QUIXOTE - Tradução de José Colaço Barreiros

Nas livrarias a 27 de Fevereiro


Ambientado entre Rabat e Roma, A Filha coloca-nos perante uma perturbante história familiar, em que a relação entre Giorgio e a sua filha Maria oculta um segredo inconfessável. A narrar tudo na primeira pessoa está, porém, a mulher e mãe Silvia, cuja paixão pelo marido a torna incapaz de reconhecer a doença de que este sofre.

Enquanto observamos Maria, que não dorme durante a noite e renuncia à escola e às amizades, a revoltar-se continuamente contra a mãe e a crescer dentro de um ambiente de dor e de suspeita, vamos pouco a pouco descobrindo a subtil trama psicológica dos acontecimentos e compreendendo a culposa incapacidade dos adultos em defender as fragilidades e as fraquezas dos filhos. Quando, após a misteriosa morte de Giorgio, mãe e filha se mudam para Roma, Silvia apaixona-se por Antonio, e o almoço que organiza para apresentar o novo companheiro à filha despertará antigos dramas. Será Maria de facto inocente, será realmente a vítima da relação com o seu pai? Então, porque tenta seduzir Antonio sob os olhares humilhados da mãe? E seria a própria Silvia verdadeiramente desconhecedora do que Giorgio impunha à filha?

REFLEXÕES OCASIONAIS | As nossas crianças estão seguras nas escolas? | ISABEL DE ALMEIDA

   Talvez por uma questão de mentalidade, cultura, modo de estar, ou por mera questão de tempo, coisa que o próprio tempo nos dirá, a realidade escolar Portuguesa ainda não se deparou com o clima generalizado de terror gratuito que é, certamente, um tiroteio em contexto escolar. Todavia, se percorrermos a actualidade noticiosa dos últimos anos, encontramos casos de violência bastante gravosos, que revestem a natureza de diversos exemplos de bullying (violência entre pares), recordo casos de espancamentos em grupo, gravados e divulgados nas redes sociais (fruto perverso do uso não normativo das novas tecnologias como forma de difusão de mensagens de exaltação da violência gratuita, quiçá como forma de afirmação identitária dos jovens, que escolhem o caminho errado para alcançar este fim).

   O bullying escolar é um fenómeno complexo, que vem sendo alvo de estudo, por exemplo, pela psicologia, e que em termos mais teóricos, prometemos analisar futuramente neste mesmo espaço, talvez numa série de artigos), mas é infelizmente bastante mais comum do que os casos cujos relatos nos chegam através da comunicação social, pois existem muitos outros, que por passarem mais despercebidos, por serem calados pelas vítimas (que tantas vezes optam pelo silêncio enredado em vergonha e medo neste como noutros contextos de violência), ou por serem desvalorizados pelas figuras de referência a quem caberia proteger ou promover a devida intervenção em casos de violência entre pares já em curso  (pais, professores, auxiliares de acção educativa, irmãos mais velhos, por exemplo), caem no esquecimento.

   A questão que aqui deixo à vossa reflexão é, precisamente, a de tentarmos perceber até que ponto as nossas crianças, em todos os níveis do sistema de ensino, se encontram seguras no respectivo contexto escolar. 

   Cada caso é um caso, mas a verdade é que as vítimas de violência escolar, mesmo quando não tiveram ainda a coragem de pedir ajuda a pais ou professores, dão sinais de instabilidade emocional que indiciam que algo não estará bem. Ansiedade, evitamento às aulas, possível somatização ( queixas físicas que resultam de forte tensão emocional), insucesso escolar, alterações nos ciclos de sono/vigília (com possível ocorrência de insónias), dificuldades de concentração. Assim, ainda que não exista notícia de alguma situação de violência na escola, há que estar atento a qualquer alteração de comportamento das crianças e jovens, e conversar diariamente com estes acerca do seu dia na escola. É muito importante que existam adultos nos quais os jovens depositem a necessária confiança para confidenciar qualquer situação alarmante, portanto, aqui deixo algumas indicações práticas sobre como monitorizar estas situações.

   Não seria legítimo generalizar, mas a verdade é que o actual sistema de ensino encerra em si diversas situações que podem propiciar violência entre crianças e jovens. Desde logo, muitas escolas não possuem os recursos humanos bastantes para manter sob vigilância a área bastante extensa dos recintos escolares, havendo sempre zonas mais escondidas e menos vigiadas onde é maior a vulnerabilidade dos mais fracos ( por idade, estatura física ou maior fragilidade emocional). Também as regras aplicáveis à obrigatoriedade de frequência do ensino até idade mais tardia conduzem a situações limite, que se tornam recorrentes em muitas escolas, onde alunos mais velhos, com graves problemas de indisciplina (e com vasto registo disciplinar, e expulsão de anteriores estabelecimentos de ensino) perturbam constantemente as aulas, desafiam professores e auxiliares de acção educativa e tendem a impor-se aos colegas mais novos criando-lhe medo e intimidando-os, perturbando o normal funcionamento do sistema de ensino, ao invés do que seria desejável.

   No âmbito profissional diariamente sou confrontada com relatos que, há uns anos atrás seriam impensáveis, de turmas com graves problemas disciplinares, onde os professores literalmente não conseguem dar aulas, e onde, consequentemente, os alunos que queiram aprender e ser bem sucedidos acabam por se perder no meio de um sistema que está subvertido.

   Mais grave ainda foi uma situação de que tive conhecimento através de pais e alunos que conheço pessoalmente, num estabelecimento de ensino próximo da área onde resido, um jovem com quase 18 anos de idade frequenta uma escola de 2º e 3º ciclos do ensino básico, e tem gerado um verdadeiro clima de terror entre muitos alunos do 5º ano, extorquindo-lhes dinheiro, exigindo maços de tabaco, ameaçando mesmo deslocar-se até junto das residências dos jovens, numa atitude claramente intimidatória que gera e pretende gerar medo como forma de manipulação. Nos últimos relatos que me foram feitos chegar, soube estarem já em curso diligências oficiais de inquérito e que quero crer levem a uma punição deste jovem, e até ao seu afastamento desta comunidade escolar.

   Se pensarmos que situações como a que acima descrevo são parte integrante do dia a dia de muitas escolas Portuguesas, se tivermos em conta que estas situações ocorrem dentro dos recintos das escolas e que, em muitos casos, nem sequer é possível reunir provas bastantes para uma pronta intervenção, porque as vítimas se calam por medo, pode ser assustador pensar na natural progressão das nossas crianças e jovens no sistema de ensino nacional, e nas condições de segurança que este poderá não conseguir garantir.

   Converse diariamente com os seus filhos, acompanhe de perto o seu percurso escolar, procure estar em contacto permanente com a comunidade escolar (outros pais e colegas do seu educando, professores, directores de turma, associações de pais e encarregados de educação) e fique atento a algum sinal de alarme que não deve, de todo, ser ignorado.
 
  Na escola, o Seguro morreu de velho!

CRÍTICA LITERÁRIA | " A Verdade sobre Lorde Stoneville, de Sabrina Jeffries | TOPSELLER


Texto: Isabel de Almeida | Crítica Literária
Foto: Direitos Reservados


A Verdade sobre Lorde Stoneville, é o romance que dá a conhecer ao público Português Sabrina Jeffries, autora bestseller do New York Times que nos brinda com um excelente romance de época com chancela Topseller

A premissa inicial deste romance de época, cuja acção decorre em Inglaterra em 1825, decorre de uma analepse inicial até 1806, contextualizando um trágico acontecimento familiar que irá influenciar de forma decisiva o desenrolar da acção, bem como a evolução, em termos psicológicos, do herói - Oliver Sharpe - Marquês de Stoneville.

Libertino inveterado, evitando constantemente o compromisso, pois sente-se incapaz de ser fiel a uma mulher, Lorde Stoneville é o herdeiro do título nobiliárquico que lhe chegou através do pai, sendo Oliver o resultado de um casamento infeliz que procurou salvar da ruína certa a propriedade de Haltstead Hall, na posse do anterior Marquês, que contraiu matrimónio com a bela e rica filha de comerciantes - Prudence Plumtree - num contrato bastante usual na época, onde alguma da nobreza tradicional britânica estava arruinada, apenas tendo como moeda de troca os seus títulos, que por sua vez, eram vistos como apetecíveis bilhetes para a ascensão social desejada por tantos membros da burguesia, pessoas de origens humildes que enriqueciam em resultado do comércio a que se dedicavam.

Do casamento infeliz do anterior Marquês de Stoneville e da sua esposa Prudence, ambos já falecidos num contexto que gera constantes rumores, dúvidas e mexericos entre a alta sociedade Londrina, nasceram (além de Oliver, o mais velho e herdeiro) outros quatro filhos: Jarret (viciado em jogo), Minerva (escritora de romances góticos, considerados escandalosos à data), Gabriel (viciado em corridas) e Celia (tem uma forte apetência por tiro ao alvo, e encabeça a luta pelos direitos dos trabalhadores infantis, então alvo de dura exploração no Reino Unido). Os Cinco irmãos são conhecidos por "Os demónios de Hallstead Hall", e vivem a expensas da avó, a astuciosa e determinada Hester Plumtree, gerente da cervejaria que herdou do marido, é uma empresária próspera que decide congeminar um plano para levar os netos, todos eles indomáveis e independentes, a constituir família e a continuarem a sua dinastia familiar, fazendo-lhes um ultimato nesse sentido.

O Marquês de Stoneville vê-se, assim, encurralado num beco sem saída, quando a avó tenta manipular os cinco netos, levando-os a casar sob pena de serem despojados da sua vasta fortuna pessoal. Hester, uma mulher muito inteligente, e uma das personagens mais marcantes, de forte personalidade e muito intuitiva, mostra conhecer muito bem a sua prole de netos incorrigíveis - " Encontrara, por fim, uma forma de fazer com que todos lhe obedecessem: usar o afecto que sentiam uns pelos outros, a única constante nas suas vidas."

Oliver Sharpe, Lorde Stoneville, é um homem marcado pelo passado, esconde segredos pesados que cerceiam a sua crença na possibilidade de ser feliz, optando por evitar a vivênvia normal de uma relação amorosa potencialmente bem sucedida no futuro: " (...) Não havia nada por que valesse a pena arriscar a vida, Nem uma mulher, nem a honra e muito menos a reputação." e revelando fortes problemas de auto-estima e sentimentos de culpa que procura exorcizar criando uma "persona" que, afinal, descobrirá não corresponder ao seu verdadeiro "eu".

Por acaso do destino, o Marquês, que encara negativamente a responsabilidade e o dever de decoro e reputação impostos pelo título de nobreza que possui, irá cruzar-se com Maria Butterfield, uma jovem herdeira americana, que com a ajuda do desajeitado e desengonçado primo Freddy, procura o seu noivo desaparecido, com o qual necessita de casar para assumir a titularidade da fortuna deixada por morte do pai, dono de metade de uma poderosa empresa ligada ao sector de transportes marítimos.

É deveras interessante e divertido observar a dinâmica entre um nobre Inglês, que renega o peso das suas responsabilidades, mas que intimamente se culpabiliza por não se sentir à altura do papel social que lhe coube em sorte desempenhar, e uma herdeira americana bastante pragmática, desassombrada e frontal, com pouco ou nenhum poder de encaixe para todas as regras e os maneirismos e aparências impostos pelo rígido e hipócrita código social da alta sociedade britânica.

 Vendo-se na contingência de representar o papel de falsa noiva de Stoneville, numa tentativa de contrariar o plano da avó do Marquês, em troca recebendo ajuda para resolver a sua delicada situação pessoal, Maria será uma verdadeira lufada de ar fresco que entra nos bolorentos salões da ancestral residência familiar de Stoneville - Hallstead Hall - (e isto sucederá tanto em sentido literal como simbólico ou figurado).

O confronto cultural entre duas pessoas com educação tão díspar, a personalidade forte e a teimosia inerente ao casal protagonista, e a forte e espontânea química sexual que surge entre ambos ( e que resultará em cenas pejadas de erotismo bastante intensas e devidamente contextualizadas), serão os propulsores ideais do desenvolvimento do enredo e de uma clara evolução psicológica de ambos os protagonistas.

Uma mistura explosiva de drama, mistério, crítica social, paixão, coragem, o poder redemptor do amor, ingredientes que evoluem perante um evidente choque cultural que  levam o leitor a não querer pousar o livro antes de terminar a sua leitura, além de nos deixarem a ansiar pelos próximos romances da série, até porque no final surgem pistas para um novo entendimento de uma situação familiar que parecia já sanada, e os restantes irmãos Sharpe prometem muitas horas de puro entretenimento. Prepare-se, Sabrina Jeffries parece-nos perita em escrever estes  deliciosos guilty pleasures para adeptos do romance de época.

Ficha Técnica do Livro


Autora: Sabrina Jeffries

Edição: Fevereiro de 2018

Editora: Topseller | Grupo 20|20

Nº de Páginas: 352

Género: Romance de época | Inglaterra Século XIX

Classificação Atribuída: 4/5 Estrelas





quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Maioridade | MBARRETO CONDADO

“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”

*
Depois de um início de vida privado de todos os objectos da moda, spectrum, walkman, lembrando somente alguns, mas que todos os amigos tinham, Nunes pensava poder ter finalmente alguns dos benefícios que a maioridade lhe garantiria. Lançava olhares disfarçados ao seu velho pai tentando perceber o que lhe teria preparado para o importante dia, enquanto tentava retirar parcas palavras da sua mãe, pois a coitada continuava a preferir adotar a postura de distraída a roçar o lerdo abstraindo-se de tudo o que a rodeava mesmo que isso implicasse o desaparecimento do marido durante todos os meses que compunham o Verão.

Na verdade, nunca soube o que fazia ou para onde ia o velho manhoso, mas naquela fase da sua vida também pouco lhe interessava afinal aqueles meses acabavam por ser sagrados para ela pois fazia o que mais gostava, dormir, melhor mesmo seria se o Nunes fosse para casa do primo onde aliás ultimamente passava mais tempo do que na própria casa.

Chegou o grande dia e o pai organizou um jantar de aniversário que envolvia a família e mais um ou dois casais conhecidos, pois era necessário que alguém trouxesse o vinho para regarem a celebração. Já oferecia a casa e a língua de vaca estufada, nos meses que se avizinhavam ficariam a pão duro e água, sendo que esta tinha que ser racionada, porque até ficava seco de pensar nas contas, pelo que as oferendas deveriam ter utilidade e chegar em forma de bebida.

Os convidados conhecendo bem o seu anfitrião já vinham jantados de casa e por esse motivo a língua de vaca conseguia voltar a ser congelada quase intocada para ser requentada na ceia do Natal seguinte.

O Nunes andava cabisbaixo, exceptuando a família não conhecia nenhum dos outros convidados, mais uma vez não tinha o seu único amigo Paulitos presente porque o pai não gostava dele. Ia esbanjando todo o seu charme, como o pai lhe ensinara. Envergando calças de ganga azul deslavada com uma camisa no mesmo tom, circulava pelo meio dos convivas com o seu copo de vinho inalterado. Bebericando. Não aguentava bem a bebida e particularmente naquele dia nada poderia correr mal.

Mas correu. Quando inchado se aproximou de duas primas trazidas de propósito para conhecê-lo, não sabia ao certo o que fazer aproximou-se cantarolando “uma é loira, outra é morena…” e sem ninguém esperar no único momento de coragem que teria em toda a sua vida, bebeu o liquido de um trago desajeitadamente partindo o copo com os dentes. As primas abriram muito os olhos de espanto, aquela era uma imagem que ficaria para sempre marcada nas suas memórias por muitos anos que vivessem. Nunes com um pedaço do vidro do copo na boca a esgaçar um sorriso enquanto o primo aparecia para o salvar do ridículo, apesar de já ser um pouco tarde para isso. Pousou-lhe a mão no ombro comunicando em voz alta.

- Não bebas mais que hoje vais finalmente conhecer os prazeres que uma meretriz da noite te pode oferecer. Eu pago.

E assim o Nunes conheceria da pior forma como dar prazer a uma mulher, sem saber, no entanto, que nem sempre quando se ouvem gemidos signifique que a coisa esteja a correr bem pode ser também o sinal de que se deve despachar porque vai começar uma telenovela brasileira nova a não perder.


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Dia Zero - O Dia em que as Torneiras vão secar | PAULO DA COSTA GONÇALVES

Apesar dos sucessivos adiamentos continua a ser muito provável que o primeiro Dia Zero de uma metrópole urbana acontecerá a 4 de Junho do presente ano na Cidade do Cabo a segunda maior da África do Sul. Ou seja, a água que por enquanto ainda vai vertendo das torneiras, e é contada ao segundo, parece ter os dias contados e provavelmente esgotar-se-á devido à pior seca dos últimos 100 anos e que ocorre há 3 anos. 

Segundo o hidrogeólogo português Rui Hugman, que há perto de um ano integra o projeto de abastecimento da água de emergia na Cidade do Cabo: “O Dia Zero é o dia em que as barragens chegam ao nível mínimo de água e em que deixa de haver o suficiente para o abastecimento da população. O dia em que as torneiras vão secar.” 

Fruto do fenómeno climatérico “El Niño” tanto as chuvas de verão, não ocorreram, como as de inverno, por norma mais substanciais, também continuam fora das previsões meteorológicas. Por consequência as barragens continuam a secar, apesar de todos os racionamentos em vigor.

Inicialmente vaticinado para 16 de Abril, foi posteriormente presumido para 11 de Maio e agora está previsto para 4 de Junho. Os esforços da cidade para limitar o consumo com interrupções significativas, a sensibilização de grande parte da população local para um uso contido e o declínio no uso da agricultura têm contribuído para os sucessivos adiamentos do Dia Zero. No entanto os bairros mais densamente povoados já correm o perigo de desenvolver focos de doença pela ausência de água corrente.

Se o “Dia Zero” se tornar um facto no próximo 4 de Junho ou em qualquer outra data posterior, os habitantes da Cidade do Cabo e segundo o governo regional, passarão a dispor de apenas 200 pontos de recolha de água, onde poderão receber, no máximo, 25 litros de água por dia por pessoa.
Mas os problemas relacionados com o acesso a água potável não se limitam aos cerca de 4 milhões de habitantes da Cidade do Cabo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as secas estão cada vez mais severas e afetam já aproximadamente 850 milhões de pessoas um pouco por todo o mundo e por isso, para além de inacreditável é inaceitável que um recurso natural essencial, como o é a água, ainda seja tão desperdiçado quando menos de 1% da água de todo planeta é doce e está disponível para o consumo humano.

Por exemplo, de acordo com a GIZ (consultora ambiental alemã) nos países em desenvolvimento e emergentes, cerca de 80% da água é perdida em vazamentos por deficiências nas infraestruturas de distribuição às populações. Mas essa tipologia de desperdício é também um facto em algumas áreas de muitos dos países mais desenvolvidos, onde chegam a atingir os 50%.

Algumas fontes (ONU, UNICEF, etc.) estimam que atualmente um bilhão e 200 milhões de pessoas (35% da população mundial) não têm acesso a água potável tratada. Cerca de um bilhão e 800 milhões de pessoas (43% da população mundial) também não acessão a serviços adequados de saneamento básico e devido a estas ocorrências constatam que anualmente e em decorrência de doenças, principalmente intestinais transmitidas pelo consumo de água não tratada, morrem dez milhões de pessoas no mundo. As mesmas fontes estimam ainda que há uma grande probabilidade de, nos próximos 25 anos, dois em cada três habitantes do planeta, enfrentarem problemas no abastecimento de água potável devido ao crescimento populacional, à poluição das águas, ao desperdício na distribuição e uso, e principalmente devido às mudanças climáticas.

As mudanças climáticas irão originar em que vivamos num mundo em que a água se torna um desafio cada vez maior e onde a sua escassez será agravada, por um lado, em virtude da desigualdade social, e por outro lado, da falta de manejo no uso sustentável deste recurso natural onde apenas 6% se destina a uso “doméstico”, 73% à irrigação agrícola e 21% para a indústria. 

Diante deste cenário o recurso tecnológico para uma maior aplicação de soluções “inteligentes” na gestão da água é mais um desafio dos líderes políticos que não podem, tal como numa crónica anterior chamei a atenção por já estarem em falha com os atuais refugiados climáticos, separar a política populacional da do abastecimento de água.



Foto: Direitos Reservados | Internet

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Prece de um verme | VANESSA LOURENÇO

Enquanto procurava um tema para a crónica desta semana, cruzei-me por acaso com um video nas redes sociais que me despertou a atenção: a história de um cão que, de cada vez que era passeado pela dona, recolhia gentilmente com os dentes pequenas minhocas perdidas no asfalto e as libertava no relvado mais próximo. Dei por mim a pensar que talvez a história por trás deste comportamento peculiar merecesse ser contada, e acredito que terá sido mais ou menos assim:

Desorientada e sem conseguir ver, a pequena minhoca deu por si a ferir o focinho sensivel no asfalto, demasiado sólido para poder ser perfurado por um animal tão pequeno. Achando que se tratava de uma pedra, avançou na esperança de a contornar e regressar às profundezas da terra que tão bem conhecia, mas por muito que avançasse a pedra parecia não ter fim e ficava cada vez mais quente. Prestes a ficar queimada, entrou em desespero e formulou uma prece:

- Terra, mãe que embala todos os seres vivos e lhes permite crescer, se for essa a tua vontade permite que me salve e regresse à segurança do teu seio.

O asfalto cada vez mais quente começava a queimar o pequeno corpo sensivel da minhoca, e nada aconteceu. Continuando sempre a avançar, porém, resolveu tentar de novo:

- Terra, mãe que embala todos os seres vivos e lhes permite crescer, se for essa a tua vontade permite que me salve e me junte às minhas irmãs para continuar o meu trabalho a fertilizar e oxigenar o teu leito.

A resposta tardava em chegar e começava a ser cada vez mais doloroso para ela avançar no asfalto fervente, fustigado pela luz do sol. Contudo, não se podia permitir desistir. Não entregaria a sua vida, que lhe era tão preciosa, sem se encontrar para lá de toda a esperança.

De súbito, os raios de sol deixaram de lhe queimar a pele, e sentiu um corpo húmido pressionar o seu corpo gentilmente. Já desidratada, decidiu que a proximidade da morte lhe estava a provocar alucinações e preparou-se para desistir. Porém, no momento seguinte sentiu que o solo escaldante desaparecia debaixo do seu corpo e que se erguia no ar, liberta da gravidade. Demasiado esgotada para se debater, deixou-se levar e sentiu pela primeira vez a brisa acariciando o esguio corpo cansado. O ar fresco renovou-lhe os sentidos e percebeu que estava a ser carregada, algo ou alguém a tinha erguido acima da morte certa. No momento seguinte, o cheiro fresco e que tão bem conhecia da erva molhada apoderou-se-lhe dos sentidos e renovou-lhe a esperança, mas ela não sabia o que esperar. Apenas quando se sentiu pousada com cuidado na relva húmida e sentiu de novo a carícia da terra nos anéis do seu corpo ela percebeu que estava salva, e que as suas preces tinham sido ouvidas. De súbito, uma voz:

- Estás bem? Consegues regressar ao interior da terra?

Ainda não refeita da sensação da terra molhada no seu corpo, respondeu:

- Quem és tu? Porque é que me salvaste a vida?

O cão castanho sacudiu o corpo peludo e aproximou dela o focinho, dizendo:

- Sou alguém que ouviu as tuas preces, nada mais.

A pequena minhoca ergueu no ar o focinho cor-de-rosa e disse-lhe:

- As minhas preces? Tu ouviste as minhas preces?

O pequeno cão sorriu e olhou para trás, onde uma senhora de olhos brilhantes lhe segurava a trela, maravilhada com o que estava a acontecer. E respondeu:

- As minhas preces também foram atendidas, um dia. E nesse dia eu compreendi que quando nos cruzamos com alguém que precisa de ajuda, nos transformamos nos braços da Terra para lá chegar.