quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

DE ONDE NUNCA SAÍ - O MILAGRE DO ALQUEVA, de Helder Menor















Diz-se muita coisa. Por isso fomos ver. Estávamos naquela altura do começo da primavera, com dias secos de sol ameno e noites limpas e geladas.
Dois sacos-cama, os cães e meia-dúzia de mantimentos na mala do carro. Numa manhã de sol seguimos rumo à planície esquecida. Do subúrbio ao profundo rural.
No Google víamos toda aquela água ali pronta a matar a sede de quem tem fome.
Água doce como mel em terra seca e amarga de velhos solitários.
Quando se começou a construir o Alqueva, políticos grandes e pequeninos anunciavam um novo mundo de prosperidade e fartura para um Alentejo velho e mirrado de gentes. São bons a anunciar futuros radiantes, os políticos. No início do milénio o dinheiro ia chegando, às vezes em jorro outras vezes a conta-gotas, sempre hipotecando os nossos bolsos coletivos. E a água foi subindo nas terras de sequeiro. Depois acabou-se o beiral a pingar dinheiro e veio a crise, mas o Alqueva já lá estava.
Nós chegámos antes do almoço. Na aldeia vazia, a mercearia era o epicentro da vida. Sotaques cerrados e rostos fechados que se foram abrindo.
Não, não viemos comprar terrenos, nem casas antigas para reconstruir.
Comprámos carvão, ovos, chouriço para assar, alhos, pão e fruta.
Falaram-nos dos hóteis que dizem que se vão construir. 
            – Onde?
            – Lá me baixo, na barragem.
            – Nós não procuramos hotel, viemos só ver a barragem.
Despedimo-nos e seguimos a pé para comprar vinho. Na taberna, sem rótulo, dentro de uma garrafa de litro e meio de água vazia. Tinto, naturalmente. Trouxemos também uns queijinhos duros e salgados.
Depois montámos na mula mecânica que nos transporta e descemos pelo estaradão de terra até à àgua. Escolhemos uma sombra uns metros acima da linha da água para deixar a carrinha. Acendi o lume e soltei os cães.
Tirámos fotografias à barragem que ali nasceu e ali ficou.
Olhámos à volta e o vazio absoluto respondeu-nos com silêncio.
Acendi um lume rasteiro entre pedras e assámos o chouriço. Comemos com pão, fruta e vinho. Depois, a sesta numa rede montada entre sobreiros.
Na tarde calma, caminhámos na borda d’água espiando os pássaros e ouvindo os sons esquivos do grande lago. Pegadas de perdiz, raposa e eventualmente texugo, ou arminho. Pelo caminho, apanhámos poejo, hortelã e umas laranjas ácidas com tamanho de tangerinas de uma larangeira meio selvagem e esquecida.
Cansados e felizes, voltámos para junto da carrinha, estava o sol a baixar. Vimos o pôr do sol sobre as águas mansas. Reacendemos a fogueira porque era preciso fazer o jantar e o frio da noite chegou sem pedir licença.
As estrelas acenderam-se no céu. Dentro de um púcaro grande, sobre as chamas, deitei àgua para ferver. Num tacho velho de muitas andanças, o pão que sobrou do almoço partido aos bocadinhos, dois dentes de alhos migados, azeite, os poejos e uma folha de hortelã. A água a ferver no tacho sobre as chamas da fogueira chamou os ovos para escalfar. A açorda é sempre comida de conforto, sobretudo quando o tempo arrefece e a noite cai sem lua.
Toda aquela água à nossa frente, parada, a refletir o brilho das estrelas alentejanas. Os cães deitados à nossa volta davam uma sensação doméstica à cena. Ali ficámos, a beberricar do tinto naquela conversa sem fim de quem se escolheu, entre outras coisas, para conversar até ao fim da vida. Perdemos a noção das horas e não sabemos quando fomos dormir.
Mas sabemos quando acordámos. Era cedo e o sol devia estar pela altura dos joelhos. Os cães a saltarem felizes à nossa volta. Lavámos a cara e os dentes com água do jerrican, comemos fruta e queijo que tinha sobrado da noite. Recolhemos o material e os cães, limpámos de resíduos e memórias o lugar e seguimos viagem.
Café na bomba de gasolina e fomos ao que viemos. Procurar os barros.
Todas as olarias concentradas numa aldeia próxima, dispersas nas ruas desertas e montadas nas casas dos oleiros. A aldeia vive do barro e dos oleiros. Alguns eram construtores de telhas e tijolos e em meninos aprenderam a fazer copos, pratos e jarras. Hoje todos são artesãos. 
E todos continuam à espera do milagre do alqueva. Esperam pelo milagre de molhar a massa do barro com aquela água de ouro da barragem. Esperam o milagre do turismo que está para chegar. Pelo sim pelo não, dão preços às peças como se o milagre da multiplicação dos euros já fosse um facto. Depois, baixam para os valores de um país pobre onde vive gente pobre. 
Conseguimos comprar uma tigela grande e bonita. A próxima açorda já não se faz em alumínio. 
Continuámos a conversar.
-        Não tem empregados?
-        Não. Faço tudo sozinho!!! Não quero cá ninguém para me roubar.
          E a agricultura? Dá emprego?
          Às vezes contratam aí uns romenos ou indianos...
          E portugueses?
          Portugueses não! Que exigem o salário minino!!!
O pequeno-empresário-artesão-comerciante, na lógica de quem emprega, sem pudores assume a miséria da fome que está disposto a pagar. Não aceita pagar a fortuna do que é salario mínimo...
Tive vontade de lhe devolver a puta da tigela pelos cornos e de lhe exigir os quinze paus de volta.
Felizmente a minha companheira percebeu antes de mim os meus desejos instintivos e levou-nos dali para fora.
O sol riu-se da minha indignação na rua vazia.
De volta à estrada, sempre a rodear a grande barragem.
Olivais e mais olivais. Vazios. Oliveirinhas pequeninas, sedentas de químicos a crescer raivosas na planície.
Na vila histórica parámos porque era preciso comer. Parámos numa tasca com sala reservada para refeições. Quatro mesas, apenas uma ocupada por uma família local. Com quem por ali parava.
Naturalmente conversámos. Voltaram-nos a falar do desenvolvimento e do progresso do turismo da barragem.
Outra vez o sebastianismo do pantanal. A revolução da agricultura que se anunciava era já uma realidade. Satisfeito por ter quem o oiça, o empresário-autarca explica que é desta que vem o progresso.
Lembrei-o das promessas antigas. Diziam que iam produzir legumes todo o ano, que iam produzir a melhor fruta da península, que iam ter pastagens para bovinos da melhor qualidade...
Afinal de contas, fizeram o lago para regar o olival... emprego ainda não chegou... chegou sub-emprego e semi-escravatura...
Mas há o turismo que está aí a chegar. Isto é já uma realidade, mentiu-me convicto o homem que vende software de contabilidade e que tambem é presidente da junta.
Contou-me que esperam turistas vestidos de cavaleiros que com armaduras feitas de tecnologia de ponta, venham os dragões velhos da pobreza e da interioridade. Dizem que os turistas vão chegar e que a coisa vai mudar. Turistas a sério, estrangeiros e loiros, enlatados em camionetas de luxo, porque não há comboio nem transportes de Lisboa para cá. Mas dizem que os turistas vão ficar temporadas inteiras nas dezenas de hóteis das margens do Grande Lago, que ainda não se construíram mas que já têm site na Internet e que podem cobrar fortunas pelas noites estreladas do Alqueva. 
E claro, há esse infinito recurso de elevado potencial económico que é o golfe. A água é tanta que vai dar para regar milhares de campos relvados onde vão florir bolinhas brancas de golfe. O desenvolvimento vem atracar nos cais fluviais, com emprego para os mais novos e reformas confortáveis para os mais velhos. Vamos vender todo este sol com sotaque alentejano em embrulhos de cortiça produzida artesanalmente. Todas as tardes vai haver workshops de nova-cozinha-alentejana.
A sério que sim! Assim nos falou o autarca que diz que não é político.
Bêbado de tanto dinheiro na terra molhada, despedi-me sem lhe dizer o que penso, para quê chamar estúpido ao homem, à frenta da mulher e dos filhos??!?!?! 
Voltei a descer à barragem. A água ali toda à espera.
A água veio e afinal tudo ficou na mesma.
Toda a agricultura que seria para criar emprego e desenvolvimento, foi modernizada nas tecnologias de sucção de recusros e de desfalque ao meio ambiente mas continua retrógada e medieval nas contratações de mão-de-obra.
O turismo que faria prosperar a região continua à espera de se cumprir e o que aparece são projetos megalómanos de lavagem de dinheiro ou afirmações financiadas por maridos cansados a tiazinhas na pré-reforma que descobriram o alentejo numa revista em Cascais.
O emprego que se esperava, esfumou-se nos vapores da crise e quando aparece é sasonal, mal-pago e sem continuidade.
Os alentejanos continuam pobres e estão mais velhos e solitários do que nunca.
As águas da barragem convidavam ao mergulho, desisti quando molhei os pés... demasiado fria. Pensei em pescar, não era oportuno. Atirei paus para os cães irem ao banho felizes.
Depois foi preciso voltar para cima. Trouxemos a tigela de barro, vinho, fotografias e memórias de um futuro que se falta cumprir.
Enquanto isso, com toda aquela água parada, os moradores das margens que outrora eram montados, esperam passivos por melhores dias e dedicam-se à pesca. Outros, mais velhos e sábios ensaiam suicídios levando cadeiras antigas para o campo e pendurando cordas grossas em sobreiros solitários.



quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

DIVULGAÇÃO LITERÁRIA | Oficina do Livro Lança edição especial dos Clássicos "Mulherzinhas" e " Boas Esposas", de Alcott a propósito dos 150º anos das obras e do novo filme | OFICINA DO LIVRO - GRUPO LEYA


Foto: Grupo LeYa | D.R.

Texto: Redacção c/ Grupo LeYa


Mulherzinhas e Boas Esposas, de Louisa May Alcott, os dois livros  que apaixonaram gerações e que deram origem à adaptação cinematográfica, com estreia marcada para esta semana cestão desde dia 28 de Janeiro de 2020 nas livrarias, numa requintada edição especial, ideal para quem não leu ainda os livros, e ainda especialmente apetecível por coleccionadores.

Guardados numa irresistível  e romântica caixa com look vintage, com o especial detalhe de uma fita em cetim que forma um laço na frente da caixa, são o presente ideal para nos mimarmos a nós próprios ou para oferecer a apreciadores e fãs.

 Duas das mais emblemáticas obras de Louisa May Alcott chega às livrarias na mesma altura em que estreia no cinema o filme "Mulherzinhas", com seis nomeações para os Óscares da Academia e com Emma Watson e Laura Dern no elenco!

Sobre os livros:

As irmãs Meg, Jo, Beth e Amy conhecem algumas dificuldades depois da partida do seu pai para a guerra e dos problemas económicos que a família enfrenta. Mas o espírito lutador e de união que reina entre todas ajuda-as a seguir em frente. Juntas vivem histórias em que o amor e a coragem se revelam mais fortes do que todas as dificuldades que têm de enfrentar, mas quando a tragédia lhes bate à porta, descobrem que o melhor conforto é terem-se umas às outras e poderem estar juntas. Bem-vindos à história de vida da família March! 

FICHA TÉCNICA:

Títulos: Mulherzinhas e Boas Esposas (edição especial)
Nº págs: 392 e 408
ISBN: 978-222-224-853-8
PVP C/ IVA: 18,90€





terça-feira, 28 de janeiro de 2020

QUEM É NUNO NEPOMUCENO?, por MBarreto Condado


Quem é Nuno Nepomuceno?

Autor de policiais, vencedor do Prémio Literário Note! 2012.
Representado pela Agência das Letras, os seus livros podem ser encontrados na Fnac, Bertrand, Wook, Google Play ou Amazon.
O seu último livro “A Morte do Papa”, inspirado na vida e morte de João Paulo I, lançado este mês, é o seu mais recente thriller religioso. Constam ainda do seu curriculum literário, “O Espião Português”, “A Espia do Oriente” “A Hora Solene”, “A Célula Adormecida”, “Pecados Santos” e “A Última Ceia”.

“A Morte do Papa”
Sinopse:
“O recém-eleito Papa e encontrado morto em circunstâncias contraditórias. Para a Santa Sé, terá sofrido um enfarte. Para o resto do Mundo, o Vaticano mentiu. Morte natural, ou homicídio?





Uma freira e dois cardeais encontram o corpo sem vida do Papa sentado na cama, com as mangas da roupa destruídas, os óculos no rosto e um livro nas mãos. O mundo reage com choque, sobretudo, quando Pedro, um delator em parte incerta, regressa à ribalta e contraria a versão oficial. Porém, tudo muda quando imagens de um escritor famoso vem à tona, colocando-o na cena do crime.
Enquanto as dúvidas se instalam, um jornalista dedica-se à investigação do desaparecimento de uma adolescente. Mas eis que um recado é deixado na redação da Rádio Vaticana. Com a ajuda de um professor universitário e da sua intrépida esposa, os três lançam-se numa demanda chocante pela verdade. O corpo da jovem está no local para onde aponta o anjo.”

Para mais informações, consulte o site oficial do autor: www.nunonepomuceno.com.

O meu agradecimento ao Nuno pelo tempo disponibilizado e pela agradável conversa.

MBarreto Condado

P.S. EU AMO-TE, de Cecelia Ahern / SUMA DE LETRAS

JÁ NAS LIVRARIAS

"Uma história de amor eterna e inesquecível que conquistou milhões de leitores em todo o mundo e chegará ao coração das novas gerações"

Resultado de imagem para P.S I LOVE YOU LIVRO DA SUMA DE LETRAS

Sobre o livro:

Algumas pessoas esperam a vida inteira para encontrar a sua alma gémea, mas não é o caso de Holly e Gerry. Conheceram-se quando eram estudantes mas sentem que se conhecem desde sempre; foram feitos um para o outro. Cada um termina as frases do outro e, mesmo quando discutem, fazem-no a rir. Ninguém os pode imaginar separados.

Até que o inesperado acontece e Holly pensa que não pode viver sem Gerry. Três meses depois da morte deste, recebe um pacote misterioso. Gerry deixou uma série de cartas, uma para cada mês após a sua morte, nas quais, com ternura, sabedoria e humor, a encoraja a seguir em frente.

Holly perceberá, carta após carta, que a vida é para ser vivida...mas que tudo pode ser muito mais bonito se houver um anjo que nos faça companhia.


Sobre a autora:

Resultado de imagem para Cecelia AhernCecelia Ahern, depois de se licenciar em Jornalismo e Comunicação, escreve este primeiro romance aos 21 anos. Foi um sucesso internacional sem precedentes, tendo sido levado ao grande ecrã, o que acrescentou ainda mais fãs a esta história de amor, que é um clássico. Desde então, Cecelia publica, com grande sucesso, um romance por ano. Até ao momento, os seus livros venderam 25 milhões de cópias, foram publicados em mais de 40 países, em 30 línguas. Só em Portugal, "P.S. Eu Amo-te", até à data, mais de  57 000 exemplares, e mais de 1 milhão em todo o mundo.

Para além de ser uma romancista amplamente premiada, Cecelia Ahern também cria projectos originais para televisão.

Em Fevereiro de 2020, a Suma de Letras vai publicar a tão aguardada sequela de "P.S. Eu Amo-te: A Última Carta".



segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

CRÍTICA LITERÁRIA | " A morte do Papa", de Nuno Nepomuceno | CULTURA EDITORA


Texto: Isabel de Almeida | Jornalista | Crítica Literária

Foto: Arquivo Nova Gazeta | D.R.


"A Morte do Papa", do autor Português Nuno Nepomuceno é mais uma prova de que devemos apostar em autores nacionais, sem medos e nos mais variados géneros literários. Em concreto, Nuno Nepomuceno já habituou os seus leitores residentes a excelentes thrillers, cheios de acção, intriga, mistério, perigo e belíssimas paisagens descritas ao detalhe, convidando o leitor a percorrer aqueles mesmos percursos das personagens da trama.

Ler um livro do autor é o que de mais equivalente conheço a viajar até aos cenários da narrativa, como se fossemos nós leitores uma das personagens envolvidas, e em simultâneo, de modo perfeitamente automátiico, embalados pelo mistério, acabamos por assumir também o papel de investigadores, conjecturando sobre hipóteses quanto a quem possa ser culpado ou inocente.

É bem visível na construção da narrativa o metódico trabalho de pesquisa e investigação que Nuno Nepomuceno investe na criação de cada um dos seus livros, o que mais enriquece os mesmos, indo além de produtos literários meramente comerciais, mas contendo informação real e fidedigna quanto a diversos detalhes, que nos alertam também para fenómenos sociais e políticos.

Desta feita, somos transportados até ao mundo fechado, perigoso e promiscuo, das lutas de poder fratricidas patente no cenário da Cidade do Vaticano. Inspirado na história da morte do Papa João Paulo I, o autor confronta-nos com um crime em pleno Vaticano, o Papa Mateus I pode ter sido assassinado, há ligações perigosas e segredos potencialmente mortíferos que causam vítimas inocentes (ou nem tão inocentes assim). 

Em nome da religião, e do poder à mesma associado, os valores humanos perdem terreno, e o que importa é atingir o topo das hierarquias no seio da Igreja Católica, sem olhar a meios para alcançar tal fim. Os homens fortes da Igreja Católica ( aqui representados pelos Cardeais Horace Tremblay e Diego De Santis) revelam-se perante os nossos olhos como ambiciosos, calculistas e mesmo cruéis.

A pressão dos media, a informação e contra-informação, os génios informáticos que desvendam segredos obscuros e os expõem publicamente, mas a coberto de anonimato. O jornalismo de investigação, e os serviços de espionagem que se mantém atentos ao que se passa no Vaticano.

Encontramos personagens já nossas conhecidas de anteriores obras do escritor a interagir com novas personagens. Já conhecidas e como protagonistas reencontramos como o Professor  Afonso Catalão, a sua esposa Diana Santos Silva, que será ajudada por um  colega - o Jornalista Italiano Paolo Fattore. 

Quem se esconde nas sombras? Todos são quem dizem ser? Quem mente? Quem diz a verdade? Quem sobreviverá incólume? Esta e muitas outras questões são colocadas aos leitores numa obra que apresenta uma escrita vivaz, com diálogos que prendem o leitor e que permitem caracterizar as personagens, bem como o espaço social e político em que estas se movem. Uma narrativa empolgante, em ritmo bastante dinâmico, uma escrita elegante e muitíssimo cuidada, o que é já imagem de marca do autor.

Perigo constante, mistério, segredos, ambição, um jogo sábio de verdades e mentiras que se cruzam perante os nossos olhos. Uma obra que se lê de um fôlego, e que nos faz reflectir sobre o poder das religiões, o que este pode implicar numa perspectiva nada inocente. 

E, mais uma vez, seria uma excelente ideia ver este livro passar ao grande ecrã, pois tem todos os elementos necessários a um bom thriller com muita acção e cenários fabulosos. Nuno Nepomuceno está, mais uma vez, de parabéns!
FICHA TÉCNICA DO LIVRO:

Título: A Morte do Papa

Autor: Nuno Nepomuceno

Editora: Cultura Editora

Edição: Janeiro de 2020

Nº de Páginas: 352

P.V.P.: €18,50

Classificação Nova Gazeta: 5/5 Estrelas



DIVULGAÇÃO LITERÁRIA / AS PROVADORAS DE HITLER de Rosella Postorino / DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 31 de Janeiro


























Prússia Oriental, outono de 1943. Hitler esconde-se na Wolfsschanze – a Toca do Lobo –, o seu quartel-general oculto na floresta. As perspectivas de vencer a guerra começam a esboroar-se e os seus inimigos aproximam-se cada vez mais. Dez mulheres são escolhidas. Dez mulheres para provar a comida de Hitler e protegê-lo de ser envenenado.

Rosa Sauer, 26 anos, perdeu tudo para esta guerra. Sozinha e sem dinheiro, toma a fatídica decisão de deixar Berlim devastada pelos bombardeamentos para morar com os sogros no campo, em busca de refúgio. Mas uma manhã, as SS vêm dizer-lhe que foi recrutada para ser uma das provadoras de Hitler: três vezes por dia, ela e nove outras mulheres são levadas para a caserna de Krausendorf, nas proximidades da Wolfsschanze, para provar as refeições do Führer. Forçadas a comer o que pode matá-las, na atmosfera turva destes banquetes perversos, as provadoras e os militares das SS traçam alianças insólitas – mas o que é insólito quando se vive no limite? E quando, na primavera de 1944, chega ao quartel o tenente Ziegler, instaurando um clima de terror, um inesperado vínculo nasce entre ele e Rosa.




domingo, 26 de janeiro de 2020

ALMA ERRANTE, de Vanessa Lourenço















O grande gato preto tinha nascido na rua, num beco escuro a que nunca tinha verdadeiramente chamado lar. Nos primeiros meses de vida tinha deambulado por entre caixas de cartão, contentores ora cheios ora vazios, correndo para os recantos mais escuros daquele lugar sempre que seres humanos desconhecidos entravam no beco para, bruscamente, recolher o lixo.

Por vezes, dava por si sentado, muito quieto, observando a luz do sol quando esta alcançava, timidamente, a metade do beco mais próxima da confusão da rua onde desembocava. Não se atrevia a aproximar-se e sequer permitir que pousasse sobre o pêlo negro como a noite, dissera-lhe a mãe que para lá do beco, onde aquela luz tocava, havia muitos perigos. A luz era perigosa.

Mas à medida que o seu corpo se desenvolveu, assim cresceu também a curiosidade latente em todos os gatos. O mundo do beco já não lhe chegava, e a vida começava a exigir-lhe mais do que permanecer na escuridão onde nascera. Um dia, a curiosidade foi mais forte. Percorreu o beco uma vez mais, tudo o que lhe era conhecido e que agora se assemelhava bem mais a uma prisão do que ao recanto seguro que lhe tinha garantido a sobrevivência até então. Compreendeu, não sem um arrepio de medo, que sobreviver já não lhe chegava. Queria mais. Precisava de mais. Merecia mais. A alma exigia-lhe mais.

Partiu. E assim que a luz do sol tocou o pêlo negro forte – e agora luzidio – os músculos fortes desenhados pelos meses saltando sobre contentores e tábuas podres rejubilaram com o toque quente e amistoso dos raios solares.

Durante meses percorreu ruas movimentadas e terrenos baldios, identificou os lugares onde podia sempre voltar para comer ou onde podia encontrar água, e a eles voltava de cada vez que a necessidade assim o exigia. Agora a vida entregava-lhe toda a aventura que podia desejar, e a experiência moldava-lhe os passos seguros. Correu riscos, quase perdeu a vida, conheceu a injustiça. Mas testou também os seus limites, fez escolhas, conheceu o mundo para lá do beco.

Então, um dia, a vida falou-lhe de novo. A sua alma estava inquieta. Ele ainda não conhecia o amor…. Até que a conheceu, a ela. E ela prendeu-lhe o olhar com a luz que se desprendia do corpinho franzino, o calor do sorriso, a ternura das suas mãos, da primeira vez que se deixou tocar.

Anos mais tarde, ao colo dela, ouviu-a perguntar-lhe:

- Nasceste num recanto escuro, cresceste nas ruas, e vives agora numa casa comigo. A qual destes lugares chamarias alguma vez de lar?

Ele piscou os olhos, sonolento, e voltou ligeiramente a cabeça para a encarar. Respondeu:

- Lar não é um lugar, porque não se trata de onde o teu corpo possa pertencer. Isso são apenas acessórios ou circunstâncias que podes sempre perder. Um verdadeiro lar nunca pode ser perdido porque não é onde o teu corpo repousa… é onde a tua alma descansa. O meu verdadeiro lar é no teu coração.


Vanessa Lourenço

sábado, 25 de janeiro de 2020

FAZER BEM, de Fernando Teixeira















Como em quase tudo na nossa vida, há diferentes maneiras de fazer uma determinada tarefa, umas mais expeditas, outras mais elaboradas. O objectivo é conseguir atingir um certo resultado, a forma como lá se chega é que pode variar de pessoa para pessoa.

O método utilizado pode depender de experiências anteriores, da avaliação que se fez então do caminho percorrido e dos resultados obtidos, da optimização de processos na procura de uma maior eficácia face às dificuldades encontradas… enfim, resumidamente, do saber-fazer de cada um.

Tudo isso depende de uma aprendizagem que se vai fazendo com o tempo. Aprende melhor quem se preocupa em conseguir o melhor resultado, de acordo com os dons, o tempo e as ferramentas de que dispõe. Porém, tem de ter esse espírito, essa vontade.

Sempre ouvi dizer que, normalmente, demora tanto tempo a executar uma tarefa mal como bem. Poderá não ser bem assim, mas estou convicto de que vale a pena demorar mais uns minutos a pensar e a executar bem, do que o contrário. Porque, daí para a frente, o ponto de partida será sempre diferente.

Falo pela minha experiência de projectista de estruturas. Dos projectos mais simples aos mais complexos, sempre me preocupei que todos os cálculos e desenhos fossem executados com a máxima exactidão e correcção. A responsabilidade inerente provocou em mim uma certa obsessão com o perfeccionismo. Sei que qualquer projecto pode ter de sofrer alterações em função da vontade do cliente ou por vicissitudes encontradas em obra. Então, é sempre preferível alterar o que se fez, partindo de uma base correcta, bem-feita, do que pegar num trabalho em que, por facilitismo ou para poupar algum tempo, não se pormenorizou este ou aquele aspecto, se omitiu um ou outro detalhe, mesmo que tal não tivesse grande importância. Partir de uma base errada, ou imprecisa, é trabalhar em algo que está aldrabado, armadilhado, omisso, é um pouco como diz o povo: “Quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Para se corrigir depois, será necessário gastar mais tempo e com maiores custos e dispêndio de energia do que se se tivesse feito logo tudo bem. É poupar na farinha, para gastar no farelo…


Por isso, melhor será que aquilo que fazemos nasça bem, para ficar bem. Saibamos ser criteriosos, estudar, planear e executar as nossas tarefas de modo a obter o melhor resultado possível. Não facilitemos, dizendo “está bem assim, não me importo, ninguém vai reparar nisso!”, “podia ter ficado melhor, paciência!”, apenas para não recuar um pouco e gastar mais uns minutos a corrigir o que não ficou tão bem.

Se algo não ficou como gostaríamos numa divisão da nossa casa, sempre que entrarmos nela, os nossos olhos irão teleguiados para esse pormenor que não ficou como devia. Isto é tão válido para as coisas importantes da vida como para as mais comezinhas: do projecto de uma casa ou da remodelação de uma cozinha à arrumação da louça num armário ou na máquina de lavar, da organização de uma empresa à disposição de tudo o que temos na nossa despensa, de um livro que se escreve a um apontamento num memorando. Podemos fazer tudo de muitas maneiras diferentes e podemos fazê-lo da maneira que fica melhor, que nos fará sentir mais realizados, felizes.


Em todas as facetas da nossa existência, podemos optar por seguir critérios de optimização dos procedimentos ou seguir pelo critério do “tanto faz”. Cada um colherá depois o resultado do seu método.


O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

DIVULGAÇÃO LITERÁRIA / CARTAS PARA MIGUEL TORGA de Carlos Mendes de Sousa (Organização e Prefácio) / DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 28 de Janeiro




Neste volume, organizado e prefaciado por Carlos Mendes de Sousa, está coligida parte da correspondência enviada para Miguel Torga, remetida por personalidades das mais diversas áreas, entre as quais se destacam Fernando Pessoa, Adolfo Casais Monteiro, Mário Soares, Fernando Piteira Santos, Jorge de Sena, Jorge Amado, Jack Lang, Cecília Meireles, Óscar Lopes, Teixeira de Pascoaes, Vitorino Nemésio, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eduardo Lourenço, Ruben A., Gonzalo Torrente Ballester.

Um livro de singular importância que sem dúvida alguma ajuda o leitor a conhecer um pouco melhor a vida, a obra e o universo pessoal do autor de A Criação do Mundo.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

NOTURNO ARCO-ÍRIS – VIRGEM SARA, de Helder Menor















Vendas Novas é terra de militares, ferroviários e moças pobres a fazer pela vida. Assim conta a tradição das estradas do Alentejo. O caso que vos venho contar, aconteceu em Vendas Novas, mas quase que não mete fardas da tropa, nem fardas dos caminhos de ferro, nem saias curtas, nem ambiente de bordel.

É uma história triste e verdadeira entre o milagre e o nada.

Há cerca de 50 anos nasceu na Beira, Moçambique, uma bebé pequena e saudável, filha de um sargento de artilharia e da senhora sua esposa dona Efigénia, mulher beirã, dura e devota. Segunda filha, irmã mais nova de um rapazinho de três anos. À menina chamaram Sara, ao irmão tinham chamado Sérgio.

Acabada a comissão do sargento, em 1972 regressou com a familia para Vendas Novas, onde ficou colocado. O militar, com as economias da segunda comissão em Moçambique, comprou um terreno na estrada que segue para Bombel. Fez uma casa de rés-do-chão e primeiro andar. Uma vivenda simples e modesta para uma vida simples.

Passou o 25 de Abril e os ventos de mudança da Revolução não afetaram a vida do Sargento Ramos. As crianças foram crescendo e o sargento, sem grandes sobressaltos foi-se mantendo na Escola Prática e marcando o passo da classe dos sargentos. Nos anos 80, com a epídemia da heroína, o rapazito Sérgio foi infetado. Os braços do moço apareciam picados e o dinheiro de casa desaparecia. O sargento Ramos tentou resolver as coisas como sabia: gritos e tareias com o cinturão da farda. A dona Efigénia, fez à sua maneira, reforçou a sua presença na igreja, fez promessas à Virgem e apoio ao marido. A Sarita, tímida e assustada, acompanhava a mãe nos percursos religiosos. Vivia uma existência entre o estudiosa e o êxtase místico, exacerbado pelas crises de sonambolismo em que, a dormir se levantava e a mãe ia com ela ajoelhada a rezar o terço à Nossa Senhora de Fátima. Teria treze anos e queria ser freira.

Por volta de 1988, o rapaz saíu de casa e veio morar para Lisboa. O pai dizia que o filho para ele tinha morrido. A mãe, chorava e fazia promessas. A irmã , entregava-se a Deus quando devia entregar-se aos amores da adolescência. Desistiu de ser freira, para ficar em casa a apoiar os pais.

Dois anos depois de ter saído de casa, o rapaz apareceu morto nuns arbustos da berma da Avenida de Ceuta. Telefonaram ao pai para ir reconhecer o corpo ao Instituto de Medicina Legal, no campo de Santana. O sargento foi sozinho para Lisboa e voltou com a morte do filho na mala do carro. Fizeram o funeral do rapaz e o luto com o apoio da família, dos viznhos e dos outros sargentos.

A Sara estudava para ser professora primária mas continuava a viver a vocação de esposa de Cristo. Em casa, disse ao pai que foi Deus que levou o mano.

O sargento, não durou muito mais... no inverno seguinte à morte do filho, apareceu-lhe o cancro que o levou. Ficou de baixa, depois passaram-no à reserva. O soldado morreu velho e mirrado no hospital de Setúbal.

À Sarita, acabado o curso, foi colocada como professora primária numa escola perto de casa. Dedicava-se aos meninos e à catequese. Nunca casou nem se lhe conheceram namorados.

A dona Efigénia, na sua fragilidade dos cinquenta quilos, manteve-se rija e continuou a gerir a casa, a pensão de viúvez do marido e o salário da filha, com a mão de ferro que herdou do sargento de artilharia. A filha professora que tinha sido uma rapariguinha apagada, foi-se transformando numa senhora apagada. Dos vinte saltou para os trinta. Dos trinta saltou para os quarenta. Sem amores a não ser o amor a Deus, à Nossa Senhora de Fátima e à Familia, este último amor condensado na pessoa da mãe que envelhecia seca.

Quando estava quase a fazer trinta, umas vizinhas e amigas lá da igreja, tentaram arranjar um namoro à Sarita com um moço que era sobrinho de alguém... mas o namoro não foi para a frente, porque a Sara não gostou dos avanços do moço a pegar-lhe nas mãos e a propor levá-la no carro para o cinema em Lisboa. Passaram os anos e a Sara foi ficando sozinha.

Há coisa de cinco, seis anos, uma família chinesa que tem um restaurante e uma loja lá em Vendas Novas, alugou a casa ao lado da casa onde viviam a Sarita e a dona Efigénia.

Os chineses e as suas chinesises culturais foram assunto de conversa entre a mãe e a filha. Os dois quintais pegados e a falta de assunto, faziam com que a vida dos chineses fosse a telenovela favorita das senhoras.

Os chineses arranjaram o anexo do quintal onde era a cozinha com o lume de chão e fizeram desse espaço uma outra casa, com um quarto pequenino, uma cozinha minúscula e uma microcasa de banho. Passados uns meses, alugaram o anexo a uns moços do Bangladesh, que vieram trabalhar na agricultura. Eram quatro rapazes à volta dos vinte anos que ali viviam.

A Sarita e a dona Efigénia sempre atentas às entradas e saídas dos rapazes do Bangladesh, aos seus hábitos de higiene, à frequência dos banhos, à lavagem das roupas, loiças e horários das refeições.

A mãe, na casa dos setenta, rija. A filha, nos quarenta e picos cheia de doenças que os médicos não conseguiam curar. Eram formigueiros nas pernas, dores nas costas, ventre inchado, tonturas... A médica fez-lhe os exames todos. Inconclusivos. Mandou-a ir a um psiquiatra.

Médico dos nervos, dizia ela às beatas com quem se relacionava e às duas colegas na escola.
O psiquiatra disse-lhe que ela tinha uma depressão e receitou-lhe comprimidos que a faziam dormir.

A Sara tomava os comprimidos religiosamente depois do terço e deitava-se para dormir sem sonos na sua cama de solteira, naquele quarto de freira decorado com imagens de cristo e dos santinhos. De manhã, levantava-se, rezava e ia trabalhar carregando a cruz da sua doença e dos sofrimentos do mundo. A dona Efigénia, queixava-se da vida e mantinha as portas e as janelas fechadas para não entrar nem o frio nem o calor. A casa, foi-se transformando num convento, cuja única janela que se abria era a do quintal e que dava diretamente para a novela dos bengalis a viver ao lado.

Entre o bem e o mal, às vezes vai a distância de um suspiro. E o bem ou o mal entrou precisamente por essa janela que era a única que se abria. Naquele inverno rigoroso, nas noites de sono químico da Sarita, as crises de sonambulismo voltaram e em força. Mas desta vez, não ia rezar o terço, nem a mãe acordava para vê-la.

Adormecida e de olhos fechados, na sua camisa de dormir de flanela e descalça, saía do quarto silenciosa, de luzes apagadas e descia pela escada do quintal até ao muro baixo que saltava com deselvoltura. Depois batia devagar na porta do anexo onde viviam os bengalis e entrava. Entrava para amar o amor que nunca tinha conhecido mas que o seu corpo sabia fazer sem que lhe tivessem ensinado.

Na primeira vez que aconteceu, o rapaz veio abrir a porta e não percebeu o que é que a vizinha do lado queria. Abriu a porta e deixou-a entrar. Ela passou por ele sem abrir os olhos e foi direta ao quartinho onde estavam os dois beliches. Depois despiu a camisa de dormir e as cuecas de gola alta com que dormia sempre e meteu-se na cama do outro mocinho que no espanto dos seus vinte e dois anos nunca lhe tinha acontecido tal coisa.

O outro rapaz, no mesmo beliche em cima, saltou da cama espantado. Ainda tentou falar, mas o que estava na cama de baixo e debaixo da Sarita, mandou-o calar. Ele calou-se. Quando o rapaz acabou, a Sara quis continuar. Pegou na mão do espantado que lhe tinha aberto a porta e que estava de olhos arregalados e abraçou-o antes de o levar para a cama. Acabado o segundo, a dormir mas de sentidos despertos, o seu corpo pediu mais. Foi ao terceiro. E depois o quarto. Sempre a dormir, sempre em silêncio, sempre de olhos fechados. A cerimónia do amor durou duas horas, quando o seu corpo decidiu, vestiu as cuecas, a camisa de dormir e saiu sem dizer palavra.

Os quatro jovens, não dormiram mais naquela noite. Quando os telemóveis tocaram para a alvorada, já tinham decidido não contar a ninguém o que tinha acontecido. No dia seguinte foram trabalhar com um sorriso nos lábios e pronto. É a Europa, diziam entre si, aqui as coisas são diferentes... as mulheres são diferentes.

Na noite seguinte a Sara não voltou ao anexo dos rapazes.

Mas nessa semana aconteceram mais duas vezes as crises de sonambulismo que passavam pela cama dos bengalis.

A coisa foi assim durante meses. Três ou quatro vezes por semana, a vizinha adormecida, descia as escadas e amava com um, dois, três ou os quatro. Dependia da vontade da mulher e da disponibilidade dos moços. Depois, voltava a pôr a camisa de dormir e seguia calada e silenciosa para a sua casa escura e para a sua cama de convento.

Sem que soubesse explicar porquê, a Sarita começou a sentir-se melhor da sua saúde. Passaram as tremuras nas pernas, as dores nas costas e as tonturas. Também se sentia menos triste e com mais energia.

Pensou que fosse ajuda da nossa senhora a quem rezava todos os dias. Pensou em milagre, de facto era um milagre noturno que às vezes acontecia mas que só os bengalis sabiam. Os chineses que tinham alugado a casa ao lado, transformaram-na num armazém onde não morava ninguém, por isso o segredo do quintal era apenas testemunhado pelas duas laranjeiras e pelo limoeiro por cima do poço.

A coisa durou assim uns meses. Do inverno passou-se à primavera e da primavera entrou-se no verão.

A menstruação deixou de aparecer à Sara. Ela estranhou, era mulher regular... depois pensou, que seria a menopausa... tinha quarenta e cinco anos, se calhar ainda era cedo para a menopausa... mas não podia ser outra coisa, por isso não se preocupou.

Os rapazes do Bangladesh, perceberam antes pelas mudanças no corpo da viznha. Quando ela aparecia à noite, tinham o cuidado de não pressionar o ventre.

A barriga começou a inchar... e as mamas que não eram grandes, começaram a crescer-lhe.
Quando decidiu ir ao médico estava grávida de sete meses.
Impossível! disse ao médico.

- Sou solteira e nunca conheci homem.

O médico, mostrou-lhe a ecografia com o bebé a branco a nadar num aquário preto dentro da barriga dela.

Sem saber o que fazer ou dizer, levou os papéis do médico e a ecografia e foi direta ao padre 
Silvino. O Padre que era padrinho dela e tinha sido capelão no quartel, muito amigo do pai e amigo da família.

Contou-lhe tudo. Tudo o que sabia. Tudo menos das crises de sonambulismo das quais nunca teve conhecimento.

O Padre, abriu muito os olhos miúpes e perguntou-lhe:

- Sarita, minha filha, queres que te oiça em confissão?

- Mas padrinho, eu nunca tive com homem nenhum! Juro por tudo o que é mais 
sagrado!

- Está bem minha filha... mas para estares grávida....

A Sara, chorou por incompreendida.

Voltou para casa e não falou com a mãe naquele dia. Queria esperar por uma altura melhor.
As crises de sonambulismo não voltaram.

Ficou em casa calada com a barriga a crescer. A dona Efigénia percebeu antes da filha ter ido ao médico. De raiva, de dor e de vergonha, deixou de falar à filha.

Uma noite de outono, chegaram as dores à Sara. Fez força, mordeu uma toalha turca sem gritar e pariu sozinha na cama um bebé que nasceu morto. Cortou o cordão com uma tesoura de costura e depois, também ela morreu esvaída em sangue. Os bombeiros de Vendas Novas vieram buscar os corpos na manhã seguinte, já próximo do meio-dia, quando a dona Efgénia abriu a porta do quarto da filha para arejar.


Está enterrada no cemitério de Vendas Novas. A mãe fez-lhe um funeral simples, com a urna fechada e o bebé foi com ela no mesmo caixão. Foi assunto falado em Vendas Novas.