sábado, 27 de dezembro de 2025

PORTO - CIDADE DE NÉVOA E PEDRA, de MBARRETO CONDADO | COLECTÂNEA PORTO UMA CIDADE COM ALMA | CHIADO BOOKS

 

Há cidades que se mostram de imediato, outras que se revelam devagar. O Porto, não — o Porto não é nenhuma delas — habita nas entranhas da pedra, dissolve-se na bruma, paira no silêncio húmido que desce do Douro e cobre os telhados rubros como um manto de memória ancestral. É uma cidade que se sente antes de se compreender, onde o granito tem voz e o vento murmura histórias que ninguém ousou escrever.

As gentes do Porto dispensam ornamentos: dizem o que pensam e cumprem o que prometem. São austeras como as fachadas da Ribeira, mas com um coração doce. Falam com voz rouca de quem viveu muito e sorriem com dignidade, sem pedir licença para existir. Nos olhos guardam ternura, nos gestos, uma franqueza que embriaga mais que o próprio vinho do Porto. Aqui, a hospitalidade não se mostra — pratica-se.

A cidade ergue-se em socalcos e vontades, resistindo a cercos, séculos e à pressa dos tempos. Por isso é Invicta — não por vaidade, mas por justiça. Em 1832, durante o Cerco do Porto, suportou bombardeamentos e privações para defender a liberdade constitucional. Foi aqui que D. Pedro IV foi aclamado, e quis repousar simbolicamente o seu coração — um raro gesto de amor político. Séculos antes, nas margens do Douro, nasceu o berço da nação. Daqui partiram navios que rasgaram mares e mapas, e chegou a modernidade com fábricas, comboios e indústria a transformar a cidade.

Nos muros e varandas cruzaram-se fidalgos, mercadores, espadas e ideias. O Palácio da Bolsa guarda essa nobreza ativa, unida ao labor tenaz dos homens livres. Nos seus salões ecoam passos de reis, palavras de diplomatas e juras de alianças. O Porto foi palco de revoltas operárias, bastião republicano e berço estudantil. Resistiu à censura e floresceu com o 25 de Abril. O passado não descansa: molda, arde e permanece.

Também nos muros se escreveram versos. Do Porto saiu Almeida Garrett, mestre do romantismo combativo. Aqui nasceu Sophia de Mello Breyner Andresen, que ouve o mar como quem escuta o destino. Camilo Castelo Branco viveu nestas ruas as suas paixões e tormentos — ora cúmplice, ora verdugo. Ainda hoje, o Porto é berço de autores: livrarias respiram entre pedras, cafés e ideias. Cada rua é um poema por escrever. O Porto transforma a dor em literatura eterna.

À mesa, outra epopeia — íntima e heroica. Há séculos, os portuenses cederam a melhor carne às naus, ficando com as tripas. Da escassez nasceu um prato símbolo: as tripas à moda do Porto. Nada descreve melhor a alma da cidade — que transforma pouco em muito, rude em belo. A gastronomia é resistência: a francesinha desafia, o caldo verde conforta, o bacalhau, eterno companheiro, renasce sempre. Em cada tasca pulsa uma alma, um aroma que fica na roupa e no coração.

E há o vinho do Porto, que desce do Douro em tonéis e repousa nas caves de Gaia, como quem adormece para sonhar. Não se bebe só — contempla-se. Doce, escuro, profundo. Como a cidade.

Os costumes nascem de festa e fé. No São João, sagrado e profano abraçam-se, e o Porto transforma-se em espanto. Balões sobem como preces, martelinhos e alhos-porros dançam entre gargalhadas, e o rio espelha as estrelas. É a noite em que a cidade se entrega, e por um instante, todos são filhos do mesmo chão.

O clima é um personagem à parte. Não se limita a estar — impõe-se. Os verões cheiram a sal e sol, os invernos colam-se à pele. Mas é no nevoeiro que o Porto encontra o seu rosto. Esse manto espesso que desce sem ruído envolve tudo, desfoca os contornos e devolve à cidade o seu mistério. No Porto, o nevoeiro não oculta — revela. Nas manhãs brancas, ouve-se melhor o tempo antigo, e cada beco parece um segredo em suspensão.

Na bruma, o Porto adormece,

com o Douro a sussurrar,

e um coração que nunca esquece

o que sempre há-de amar.


À beira-rio, os barcos rabelos contam outro tempo. Os degraus que descem à água falam de homens que lavraram o Douro com mãos calosas e coragem. Do alto da ponte D. Luís I vê-se a cidade em camadas: velha, eterna, resistente. Lá em cima, os telhados desenham uma colcha de ferrugem e sonho.

Se o passado é pedra, o futuro vibra nos corredores da Universidade, nas livrarias, nos cafés onde fermentam ideias. A vida académica é pulso, juventude, reinvenção. Chegam estudantes de todo o mundo, misturam línguas, sonhos, culturas. Enchem jardins, ocupam teatros, desafiam praças. Diz-se que é nos olhos deles que o Porto reaprende a ver o futuro — com ciência, arte e ousadia feroz.

O Porto escuta, mas também se transforma. Inova sem ruído, respeitando o que foi para erguer o que há-de vir. Cresce para o mundo, sem perder o cais da sua identidade.

E entre os heróis de outrora, também o presente se projeta. O futebol — paixão visceral — reflete a alma combativa da cidade. O azul e branco do F. C. Porto não é apenas cor — é nervo, é orgulho tatuado no peito de milhares.

Hoje, turistas chegam de todas as latitudes e perdem-se encantados entre a Ribeira e a Foz, entre travessas escondidas e o brilho dos azulejos ao entardecer. Espantam-se com a força do vinho, com a alma da comida, com a forma como o passado habita cada esquina. E os próprios portugueses, olham para o Porto com respeito e um fascínio silencioso — como se ali residisse uma verdade antiga, que todos reconhecem mas poucos conseguem nomear.

No fim, o que fica é um sentimento sem nome — um Fado quieto. O Porto não é só cidade: é forma de ser, de estar, de amar em silêncio. Quem aqui nasce, nunca parte por inteiro. E quem chega, se souber escutar, encontrará sempre um lugar onde pousar o coração.

O Porto é nevoeiro e luz, dureza e abraço. É pedra, rio, vinho e gente. Passado que pulsa, presente que arde, futuro que sonha — sempre com alma.

MBarreto Condado


sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

O DIA EM QUE O PAI NATAL SE DESLIGA DO MUNDO, de MBARRETO CONDADO


Dia 26 de dezembro.

As sobras do bacalhau ainda ocupam meia cozinha, os brinquedos estão espalhados pela casa como se tivesse passado um furacão infantil… e há uma pergunta que ecoa pelo mundo inteiro:

“E agora… onde está o Pai Natal?”

Depois de dois dias de autêntico caos logístico — milhões de presentes, renas stressadas, chaminés estreitas e GPS’s avariados na Lapónia — o Pai Natal está finalmente OFFLINE.

Completamente.
Indisponível.
Inalcançável.
Nem o WhatsApp mostra “última vez online”.

Neste momento, o Pai Natal está provavelmente:

• enfiado no sofá da Lapónia com uma manta,

• a beber um chocolate quente extra-forte,

• a ver séries em modo maratona,

• e a repetir para si próprio:

“Nunca mais como um bolo-rei deixado no parapeito. Nunca.”

As renas, coitadas, estão num spa especializado em animais exaustos, a fazer hidroterapia e massagens nas patas — principalmente Rudolph, que tem tendência para se queixar mais.

A Mãe Natal, essa sim, é a verdadeira heroína. Passou dois dias em gestão de crise, a atualizar listas, a coordenar elfos em burnout e agora olha para o marido e diz apenas:
“Amanhã começas a dieta.”

Os elfos, libertos finalmente, estão em modo festa total: karaoke, jogos, biscoitos… e zero trabalho até fevereiro. É praticamente o verão das férias deles.

E nós?

Nós recuperamos lentamente, digerimos o peru, arrumamos brinquedos, e olhamos para o calendário a pensar:

“Como é possível ainda faltar uma semana para o Ano Novo?”

Mas lá longe, na Lapónia, entre neve, mantas e ressonares épicos, o Pai Natal repousa.
Porque sabe que para o ano vai tudo recomeçar.

E porque, sinceramente… se o homem não descansasse hoje, ninguém aguentava o Natal de 2026.

MBarreto Condado

 

quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

ENTRE VÍRGULAS E AFETOS, de MBARRETO CONDADO

Há amizades que nascem no acaso, outras na necessidade, e há aquelas que florescem na palavra. Vocês, meus amigos escritores — Fernando, Vanessa, Mafalda, Anita e Cecília — pertencem a esse último e raro tipo. Vieram primeiro como companheiros de letras, cúmplices de textos e conversas intermináveis, mas permaneceram — e permanecerão — como muito mais do que isso. Tornaram-se família: um irmão e irmãs.

Irmão e irmãs não apenas de caneta e papel, mas, sobretudo, de sentimentos. Vocês estão sempre presentes nos momentos melhores e piores da minha vida, encorajando-me com palavras sábias que tocam a alma, e que nunca me permitem desistir. Entendem o silêncio que precede uma ideia, a inquietação de um parágrafo inacabado, a alegria quase infantil de quando uma frase finalmente encontra o seu lugar. Sabem que escrever não é só técnica; é entrega, é fragilidade exposta, é coragem partilhada.

Estiveram sempre comigo — nos dias de inspiração, e nos de cansaço; nas páginas que brilhavam, e nas que tremiam. Souberam ouvir quando as palavras doíam, celebrar quando elas voavam, e, acima de tudo, acompanhar quando elas simplesmente não vinham.

A literatura aproximou-nos, mas foram a sensibilidade, o respeito, e o carinho que nos uniram de vez. Hoje, olho para cada um de vocês — Fernando, Vanessa, Mafalda, Anita e Cecília — e vejo não apenas escritores admiráveis, mas pessoas raras, cuja presença consola, inspira, e transforma.

Se a vida é feita de capítulos, vocês são aqueles que nunca deixaram de aparecer nas minhas páginas. Obrigada por serem porto, riso, reflexão, e abrigo. Obrigada por serem mais do que amigos: por serem verdadeiros irmão e irmãs de alma, e de sentimento.

Que continuemos a escrever juntos — histórias, dias, e afetos — por muito tempo, porque a nossa vida já é um parágrafo em comum, cheio de vírgulas, sem ponto final, sempre aberto a novas linhas, novas histórias, e novos momentos partilhados.

MBarreto Condado 

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

NESTE NATAL, O QUE IMPORTA MESMO?, de MBARRETO CONDADO


Caros leitores,

À medida que nos aproximamos de mais um Natal, somos convidados a abrandar o ritmo e a olhar em redor com maior atenção. Não apenas para as luzes que cintilam nas ruas, mas para as pessoas que dão sentido ao nosso quotidiano — as que nos acompanham de perto e as que encontramos apenas por instantes.

O Natal tem esta capacidade singular de nos recordar que pertencemos uns aos outros. Somos parte de comunidades, famílias e histórias que se cruzam e se transformam mutuamente. Porém, na pressa dos dias, é fácil deixar escapar o essencial: um gesto de cuidado, uma palavra de conforto, uma presença que pode iluminar o dia de alguém.

Esta quadra convida-nos a recuperar o valor da proximidade. A importância dos encontros, das conversas demoradas, de uma mesa partilhada. Convida-nos também a olhar com especial sensibilidade para aqueles que vivem esta época com maior dificuldade — quem está sozinho, quem enfrenta momentos de fragilidade, quem carrega ausências que pesam mais no silêncio do inverno. O espírito natalício torna-se verdadeiramente autêntico quando se revela em gestos concretos de solidariedade.

A todos os leitores da Nova Gazeta, desejo um Natal vivido com serenidade, significado e verdade. Que haja tempo para agradecer, para reatar laços e para oferecer o que não cabe em embrulhos: atenção, generosidade, presença. Que cada pequena luz que encontramos na cidade possa inspirar um brilho correspondente dentro de cada um de nós.

Festas felizes para todos.

MBarreto Condado

 

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

CONTO | MARIA, E O COMPANHEIRO IMAGINÁRIO, de ANITA DOS SANTOS

Já era noite escura há algum tempo. Tempo suficiente para serem horas de ir para a cama.

Mas estar à janela era muito mais apetecível.

Maria, era uma criança cheia de vida. Plena de imaginação, que muitas vezes os adultos, os de casa e os de fora, não entendiam, e ela por sua vez, não os percebia a eles. Eram complicados demais.

Por isso, ali estava ela, sozinha na janela a espreitar as nuvens que conseguia ver passar em frente da lua, e imaginar nas formas que via, animais que conhecia, ou então não conhecendo, achava que podia talvez terem aquela forma e serem daquela assim, como os estava a idealizar.

Numa outra ocasião, podiam ser objectos, aquele que mais se assemelhasse ao que os seus olhos viam passar. Por vezes mudava de ideias, e o que lhe tinha parecido um globo passou a ser um relógio gigante que ganhou um pêndulo, e dava horas a todas as horas. A sua imaginação era infindável.

Deu um longo suspiro, mudando de posição no banco. As pernas já estavam dormentes.

- O melhor que tens a fazer, é ir para acama. Se te virares ao contrário, vês a janela e o céu.

Por instantes ficou parada. Depois começou a olhar, devagar, em volta, para descobrir quem tinha falado.

Sobre um banco pequeno redondo que lhe servia de mesa de cabeceira, estava poisada uma luzinha que provinha, percebeu quando se aproximou, de um pequeno homem de olhos brilhantes, mãos cruzadas em frente da barriga. Estava sentado, muito confortavelmente num dos seus brinquedos de madeira. Tinha uma roupa estranha vestida, antiga, parecendo feita de retalhos de muitas coisas. Por chapéu, tinha o pé de uma bolota, sendo este pequeno para o seu cabelo ruivo, espetado para todo o lado.

Era uma figura e tanto, resolveu a Maria, gostando logo dele.

– Olá, eu sou a Maria. – disse a Maria, tomando coragem.

- Bem sei. Conheço-te muito bem, e de há muito tempo. Eu sou o gnomo Vaga Lume.

- Vaga Lume? Nunca tinha ouvido esse nome. – Maria sentia-se um pouco atarantada, algo que não era normal nela.

- É claro que não tinhas ouvido. Ele só me foi dado a mim. – respondeu o Vaga Lume, algo abespinhado – Isto é porque quando perco a calma, por vezes, não muitas, mas às vezes, pego fogo àquilo que me irritou, estás a entender? Não faço por ter mau temperamento, é uma questão de feitio!

- Entendo. Quando te irritam ou dizem coisas más.

- Ora até que enfim, alguém que me entende! Será que foi por isso que os anciãos me disseram para te vir fazer companhia? Humm! Também me disseram para olhar para o teu coração e aprender. Humm! Tenho feito tudo isso durante o tempo que te tenho estado a observar sem me mostrar… Humm! Tenho de pensar nisto…

Maria, ouvia o discurso do gnomo de olhos esbugalhados.

- Não seria, talvez, por eu ter desejado muito um companheiro, alguém com quem conversar ou até brincar?

A esperança brilhava nos olhos da pequena enquanto confessava aquilo que mais desejava.

Vaga Lume, levantou-se, deu uma volta com as mãos na cintura, e olhou de lado para a Maria.

- Ai foi? Desejaste muito um companheiro? Aqui em casa não tens quem brinque contigo, não é?

- Já são todos grandes. Não têm tempo para mim, e a mãe, quando pode e não está muito cansada, conta-me uma história…

- Eu posso ser teu amigo! Sou um amigo dos bons. E fica a ser um segredo só nosso. Que me dizes?

- Digo-te que também sou uma amiga das boas, e que o segredo está guardado.

Maria, fez o sorriso mais feliz da vida, que foi retribuído pelo Vaga Lume

Dois amigos, uma criança e um gnomo – real, ou não! – que se tornaram companheiros para a vida, ela tendo companhia quando a solidão apertava, e ele, aprendendo a domar o seu feitio.

Anita dos Santos

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

O ÚLTIMO REFÚGIO, de MBARRETO CONDADO


Naquele edifício abandonado, onde a madeira apodrecida rangia ao vento e as paredes gastas guardavam silenciosamente memórias de outros tempos, uma pomba repousava sobre um amontoado de telhas partidas. Era ali que, em dias outrora mais leves, encontrara abrigo. Um ninho improvisado entre ruínas, um pequeno gesto de vida num lugar há muito entregue ao abandono.

Agora, porém, a ave permanecia imóvel, encolhida contra o frio e contra o destino. O que fora o seu refúgio começava a transformar-se no seu derradeiro leito. As telhas que antes protegiam tornavam-se, lentamente, o seu caixão de barro e silêncio. A luz que atravessava as frestas iluminava-lhe as penas baças, como um último afago, enquanto o mundo lá fora continuava indiferente.

Ali, no meio do que restava de uma casa e de uma vida, a pomba rendia-se. Não com revolta, mas com a serenidade triste de quem sabe que tudo tem um fim — até o mais persistente dos voadores. E assim, o ninho que a acolheu tornou-se o lugar onde a vida repousa pela última vez, numa despedida tão discreta quanto a própria existência da ave.

MBarreto Condado

 

domingo, 21 de dezembro de 2025

AUTORES INTERNACIONAIS | GUADALUPE NETTEL

Guadalupe Nettel, nasceu na Cidade do México, em 1973, estudou Línguas e Literaturas Hispânicas e, em 2008, concluiu um doutoramento em Ciências da Linguagem na EHECS de Paris. É membro do Sistema Nacional de Creadores de Arte mexicano, autora de três livros de contos e do romance El huésped, finalista do Prémio Herralde, em 2005. Foi traduzida em francês, holandês, alemão, inglês, checo, esloveno e sueco. Os seus livros obtiveram vários prémios como o Antonin Artaud e o Anna Seghers.