segunda-feira, 16 de abril de 2018

CRÓNICA | Empatia | VANESSA LOURENÇO

Na qualidade de seres vivos senscientes, muitas vezes nos deparamos com situações em que pessoas que nos são próximas se encontram em sofrimento de algum tipo, e não conseguimos evitar sentir empatia e uma vontade imensa de os ajudar. De certa forma é uma reacção inata dos seres humanos, sentimo-nos de certa forma validados por empatizar com o infortúnio alheio e recompensados internamente quando conseguimos fazer a diferença, e ajudar o outro a ultrapassar um obstáculo que o limita. Um pensamento egoísta? Talvez. Mas a ser verdade, é do meu ponto de vista um egoísmo que faz de nós seres melhores, e do mundo um lugar melhor para crescer. Nunca me sentirei culpada por me sentir bem, quando faço alguém sorrir.

Mas também é perigoso.

A empatia em si é uma emoção perigosa, porque na sua forma mais pura implica que nos coloquemos no lugar do outro. E se formos sensíveis o suficiente, ao invés de ajudar, acabamos contagiados e esgotados por emoções e circunstâncias que em última análise, não nos pertencem.

Não é por acaso que somos seres individuais a conviver em sociedade, isso implica que cada um de nós tem os seus próprios passos e o seu próprio caminho a percorrer. E quando numa tentativa de ajudar, acabamos imersos no obstáculo do outro, não só não conseguimos ajudá-lo como acabamos a prejudicar-nos a nós próprios. De novo o pensamento egoista? Talvez. Mas conseguiremos realmente ajudar alguém, se nós próprios não estivermos bem? Não. Lamento, mas a resposta é não.

E é por isto que a empatia é perigosa, porque nos aproxima vertiginosmente da linha que separa o querer fazer o bem ao outro, e prejudicarmo-nos a nós próprios. Onde está então o Graal, o equilibrio entre a nossa intenção de ajudar o outro e não nos prejudicarmos a nós?
Eis uma parábola para o demonstrar:

O gato malhado tinha sido recentemente agredido, uma pedra lançada por um homem zangado tinha-lhe acertado em cheio no flanco e ainda coxeava, apesar de não ter lesões permanentes. Mas esse incidente tinha-o tornado num animal zangado, sem confiança nos seres humanos. Por isso naquele dia, quando a menina se tentou aproximar dele para o ajudar, recuou e bufou furiosamente, o pequeno corpo fechado em si próprio e o pêlo todo eriçado, num aviso claro para que ela o deixasse em paz. Ela recuou lentamente, mas não se foi embora. Tinha decidido fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para ajudar o animal ferido, e seria preciso muito mais para que desistisse dele. Agachou-se lentamente, tirou a pequena mochila das costas e abriu-a, sob o olhar atento do animal assustado. Retirou do interior uma pequena lata de atum e uma garrafa de água, e colocou no chão duas pequenas taças que encheu com ambos. Depois recuou mais alguns passos, e esperou.

As horas passaram, e nem ela se levantou, nem o gato se aproximou da refeição que ela colocara no chão. Nenhum dos dois se foi embora, nenhum dos dois se mexeu do lugar durante esse tempo. Por fim, a menina respirou fundo. Conseguia ver claramente que ele tinha fome, e sede. E que a atenção certa o levaria a curar a pata mais depressa. Por fim, decidiu ir-se embora e voltar no dia seguinte, esperando que na ausência dela ele se fosse alimentar.

No dia seguinte quando voltou, ele estava no mesmo lugar. Assim como as duas taças que tinha deixado, intocadas. À distância, ele bufou-lhe novamente. Não de forma tão agressiva como no dia anterior, mas ainda assim mostrando claramente que a distância devia ser respeitada. Ela suspirou e trocou a água da pequena taça, antes de recuar de novo e se sentar no chão. Mais algumas horas se passaram, e nada mudou. Por fim, prestes a ir-se embora, a menina disse ao gato, enquanto esticava as pernas dormentes:

- Eu quero ajudar-te. Apesar de saber que não confias em mim, quero ajudar-te. Não pode ser fácil viver na rua quando se tem fome, sede e se está a recuperar de uma lesão que nos limita. Deixa-me ajudar-te.

O gato tigrado permaneceu agachado e semicerrou os olhos, mas não respondeu. E ela calou-se. Mais algumas horas, e chegou a hora de ela regressar a casa. Respirou fundo mais uma vez, coçou a cabeça de frustração e encolheu os ombros, antes de se levantar. Olhou o gato tigrado nos olhos, e disse-lhe:

- Há uma coisa que tens que entender, eu não estou aqui para te salvar. E muito menos tenho a pretensão de guiar os teus passos. A tua vida é o teu caminho, não é o meu. Não faço ideia dos obstáculos que tiveste que enfrentar, ou das circunstâncias que fizeram de ti aquilo que hoje vejo. Isto é tudo aquilo que tenho para te oferecer, a minha vontade e estas duas taças. O que decidires fazer com elas, só depende de ti.

O gato tigrado ergueu a cabeça e inclinou-a ligeiramente, como que subitamente mais interessado no que ela tinha para dizer. Mas não se mexeu. Ela sorriu e as linhas do rosto serenaram-se-lhe ligeiramente, afinal talvez houvesse esperança. Continuou:

- Eu não conheço o teu medo, porque a vida to entregou a ti e não a mim. Não me pertence. Não posso vivê-lo por ti. Não posso arrancá-lo do teu espírito. Assim como a minha própria vida me entregou desafios e recompensas que nunca conhecerás. Se escolheres não aceitar a minha ajuda, encontrarei outro que a aceite. Se a aceitares, farei tudo ao meu alcance para que te sintas melhor, e com isso mais preparado para tomares as decisões que tens que tomar.

O gato tigrado piscou os olhos e fez menção de se levantar, mas hesitou. Olhou para as duas taças pousadas no chão, e novamente para ela. E levantou-se. Cautelosamente, avançou na direcção das taças, o corpo colado ao chão e a causa comprida agitando-se. Não tirou os olhos dela até alcançar as taças e quando lá chegou, começou lentamente a beber água.

Ela sorriu, e começou a erguer-se lentamente do chão. Ele agitou-se, mas não fugiu. Sacudindo as calças, ela colocou de volta a mochila aos ombros e olhou-o mais uma vez, ele estava agora a comer avidamente o atum. Disse-lhe:

- Até amanhã.

Ele ergueu a cabeça da taça, lambendo o focinho de satisfação, e os seus olhos pareceram dizer:

- Obrigado.



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