domingo, 5 de abril de 2020

MENOPAUSA ENTALADA, de Maria Cecília Garcia















Era um velho sonho familiar realizar uma viagem, sem destino, em uma autocaravana. Na viragem do século, ano 2000, todos os sonhos pareciam querer concretizar-se, quando uma tarde, estacionou à porta de casa uma reluzente autocaravana, novinha em folha. A emoção de pais e filhos era digna de ver-se. A viagem já estava planejada há algum tempo mas trabalhamos toda a noite metendo bagagens e tudo quanto achamos necessário para uma viagem confortável: lençóis, mantas, almofadas- o meu filho levava a sua almofada de estimação, que não era mais do que uma tripa esborrachada de espuma do que outra coisa, e não podia ser lavada porque ele não suportava o cheiro a detergente, tinha mesmo que cheirar a baba curtida..

A minha filha levava o seu diário, o meu marido, tudo e mais alguma coisa, que nestas coisas ele era muito precavido. Eu tratei da mercearia e de cortar aquela loucura toda, se não me cuidasse daí a pouco não cabia ninguém naquela viatura. Ah! Não podiam faltar as máquinas fotográficas, rolos- ainda eram de rolos – e uma faiscante máquina de filmar. Assim apetrechados, pela manhã bem cedinho, num luminoso dia de Agosto ansiosos e satisfeitos, arrancamos, iniciando assim a nossa viagem.

Mas todos sabiam que era uma viagem de risco, (todos menos eu) eu estava na menopausa… e eles já tinham sentido os efeitos dessa condição. Não que me afectasse particularmente, sentia-me bem, nada de calores ou qualquer outra coisa, fisicamente tudo estava normal. Para mim, mas para meu marido e os miúdos, parece que não. Segundo diziam, eu estava diferente, andava raivosa, enfurecia-me facilmente, eu que normalmente era calma, até permissiva, diziam eles que eu andava sempre com o chicote na mão. Eu não dava por nada.
Eu fazia as vezes de co-piloto, calções, óculos escuros, corte de cabelo moderninho, muito curtinho e espetado e o mapa estendido à minha frente. Sentia-me uma turista experiente - não ia permitir que ninguém dissesse o contrário – estava decidida a levar a bom porto aquela expedição. Não me lembrei que sou daquelas pessoas que enjoam ao fixar a vista, para ler ou outra coisa qualquer, quando andam de carro…, mas não dei o braço a torcer. Era eu que tinha de estar sentada no cockpit…

Não entraríamos em Madrid, é uma cidade grande e com muito para ver, por isso ficaria para outra altura. O primeiro ponto de paragem seria Barcelona, onde ficaríamos dois dias, mas no roteiro da viagem estava França, mais uma vez deixamos Paris para outras núpcias, a tal coisa, cidade grande, muita coisa para ver… e Itália. Sem Roma, claro!

A vigem seria um esticão até Barcelona, havia comida e bebida a bordo, camas para descansar, casa de banho e fogão para o que fosse preciso. O meu filho, então com 11 anos, amante da fotografia, ia gastando rolo trás rolo, não parava até eu deixar o meu trono e retirar-lhe a máquina das mãos. A viagem ainda nem tinha começado…

Não sabíamos porquê era que cada vez que nos cruzávamos com outra autocaravana, eles tocavam a buzina, até percebermos que era uma espécie de código, as autocaravanas cumprimentavam-se uma às outras. Depois de saber isso, se o nosso condutor não respondesse ao cumprimento eu começava a ladrar.

- Não viste que era uma caravana! Mal-educado! Fogo, custa alguma coisa? Eu acho tão giro!
- Tenho mais o que fazer mulher! Larga-me da Mão, não vês que vou a conduzir?

Tomei para mim a incumbência, seria eu a responder ou melhor, seria a primeira a cumprimentar. Ansiava ver aparecer uma, quando via era eu que atacava o volante buzinando à força toda!

-Tu és maluca? Deixa que eu apito, pronto! Ainda temos um acidente por tua causa!

Mas eu era vigilante, logo que visualizava uma, olhava-o atravessado até ele apitar, enquanto eu acenava animadíssima e os outros viajantes também. Ficava danada quando saudava as caravanas com atrelado e elas não respondiam. Raios!

- De que país era a matrícula? -perguntava ao meu filho. Mas fosse qual fosse a nacionalidade, eles nunca respondiam. Chegamos à conclusão que cada categoria cumprimenta o seu igual, autocaravanas para autocaravanas, atrelados para atrelados…pronto, a partir de então só olhava para os nossos pares e deitava um olhar de desprezo para os outros. Afinal, são os parentes pobres.

O meu filho, atento às matrículas só dizia: Franceses, italianos, alemães…quanto à minha filha, dormia. Para ela a viagem era só quando chegava ao destino, é verdade que enjoava um bocadinho, mas estava mais ocupada pensando no namoradito que tinha deixado em Portugal e tentar apanhar o telemóvel do pai, que rosnava cada vez que ela tentava.

Saímos por Badajoz, e seguimos pela E90 até Madrid. Não devíamos entrar em Madrid, havia que ter muita atenção para não deixar a auto-estrada e entrar no eixo da E15 que ligava directo para Barcelona. Eu sabia. Sabia, mas, quando demos por isso estávamos em plena cidade, andando às voltas para encontrar a ligação para Barcelona. Não vimos Madrid, é verdade, mas que a rodeamos, rodeamos!

Eu nem olhava para o conductor, ele deitava fumo por todos os lados, mas devido à minha “condição” fazia um grande esforço para não explodir. Logo ele, que habitualmente era quem se irritava, quem se enfurecia e fazia calar todo mundo, levava agora uma dose do seu próprio veneno. Não se diga que a vida não é justa!

Claro que ao fim de algum tempo, não sei quanto, uma eternidade, encontramos a via adequada.

A viagem corria bem, sem percalços, em breve estaríamos em Montserrat. Um belíssimo maciço rochoso, a cinquenta quilómetros de Barcelona. Existe ali uma bela ermida e um Santuário que vale a pena visitar. Fiquei com a máquina de filmar da qual o meu filho tentava, em vão, apoderar-se. Era o que faltava! Eu sabia muito bem o que queria filmar, a paisagem era tão linda, e la estava eu, munida da dita apontando para tudo o que parecia interessante.

Eles queriam descer no funicular, ao longe era tão a pique, descia quase na vertical, tive vertigens…nem pensar! Ninguém se vai meter naquela caixa e deixar-se cair montanha abaixo!

A ideia do meu marido era que nos juntássemos às outras caravanas, nas estações de serviço, para não ter que pagar em parques de campismo, mas não foi possível. Eu não era capaz, tinha medo, de maneira que lá abrimos o catálogo de parques de campismo com espaço para caravanas como a nossa. Antes de entrar em Barcelona já sabíamos para onde devíamos ir.

O parque era bom, pertinho do mar, mas essa noite ninguém dormiu por causa de uma trovoada como eu nunca vi, tantos raios e trovões…a manhã estava molhada, chovia a cântaros,  a minha filha ficou a pavonear-se em bikini , na porta da caravana, e eu tive que fazer um almoço no mini fogão enquanto o meu marido tomava banho na mini casa de banho. O meu filho jogava com as cartas mágicas. O tempo melhorou, fomos para a cidade. Encontramos uns amigos que moravam lá, levaram-nos ao Corte Inglês. Não gostei, mas adorei Barcelona, as ramblas, fizemos um cruzeiro pelo porto… amei.

A cidade é linda. Tenho que lá voltar!

Deixamos Barcelona pelas vias da Costa Brava, rentinho ao Mar Mediterrâneo. Havia muito trânsito, dava para ver os banhistas na praia, deu para ver uma praia nudista, eram quase todos homens, jogando ténis, correndo na areia, dando ao badalo. Giros…

Ainda fomos a Figueres visitar o Museu Dali, ideia da minha filha. Mas gostamos todos desse espaço. Depois, a Costa Azul maravilhosa. Não posso fazer um roteiro turístico, mas digo que gastamos muitos rolos fotográficos e filmamos muito- nesta altura eu já tinha cedido a máquina de filmar, depois de descobrir que quando pendurava a câmara, vaidosamente, ao pescoço, supostamente desligada, na verdade não o estava e metade do filme era sobre a calçada e o movimento dos meus pés ao andar. Depois ficava sem bateria e não podíamos gravar as paisagens.

Passamos por Marselha, de onde avistamos a ilha de If, prisão do Conde de Monte-Cristo, Perpignan, pernoitamos em Fréjus, onde havia um arraial e nos juntamos a um grupo para ir à festa. Descobrimos que os franceses não se coíbem na hora de soltar gases, o que foi um alívio para o meu marido. Tomamos banho na praia de Saint Tropez …e por aí fora, sem esquecer Cannes, Nice, Mónaco.

A viagem continuo bem, mas eu ainda tinha humor de cão raivoso e desatava a chorar quando eles ameaçavam deixar-me à beira da estrada, e das dezenas de voltas dadas nas rotundas porque ele, o condutor, nunca via a tempo o meu sinal.

Deixamos a França e percebemos logo que tínhamos chegado à Itália, não só porque as pessoas falavam italiano, mas porque toda a beleza e a limpeza que vimos na Cote d’Azur, já não existia. As ruas sujas, os prédios abandonados e muitos personagens que nos faziam sentir dentro de um filme de Fellini ou Visconti. Eram mulheres peludas, gordos de barriga pendurada e papadas gigantes e olhares nojentos

… Sanremo…. Ali sim, insisti eu, tenho que tomar banho na praia de Sanremo! Mas, por mais que procurássemos, não dávamos com uma saída que nos levasse até à praia, não era possível que não houvesse uma se até podíamos ver os banhistas na areia. Voltas e mais voltas e nada…. Até que o meu marido gritou:

-Ali há uma saída! – Olhamos todos na direcção que ele apontava, animados, mas…

- Não te parece muito estreita?

- Não, dá perfeitamente, disse ele, já enfiando o carro.

-Olha, este não é o nosso Opel Corsa…. É uma caravana. Mas ele continuava enfrente entusiasmado, enquanto eu via que a rua se estreitava cada vez mais.

-Não vás!  Não vai caber …Ele virou à direita, andou uns centímetros, e parou. Não dava não. Estávamos completamente entalados. As portas laterais não se podiam abrir, e só havia portas laterais naquela carripana. O meu filho aproximou-se, esticou o pescoço e apontando com o dedo. Ao fundo, não muito longe, uma pequena ponte com um letreiro: Veículos até 2.50 metros.  A autocaravana tinha 3m50. E agora?

Entretanto o pessoal começava a sair da praia e detinha-se à nossa frente, nós não podíamos sair, nem aquelas pessoas, com cadeiras, toalhas, sacos e guarda-sóis conseguiam passar.
Era uma pequena multidão, todos a olhar para nós, eram risadas, braços no ar…

Tapei a cara com as mãos. O meu marido, calado nem olhava para ninguém, não sei o que se passava na cabeça dele, mas posso imaginar.

Meu Deus, que vergonha! Devem achar que os portugueses são idiotas!

O meu filho, sempre oportuno:

-Deixa lá mãe, pode ser que eles pensem que somos polacos, as matrículas são parecidas.

No meio daquele pesadelo ainda conseguiu fazer-nos rir.

A nossa sorte foi haver, alguns metros atrás, um armazém de pedras funerárias e outras, mármores, granitos. À porta estavam estátuas de anjinhos, livros, vasos, cruzes, e os bons homens arredaram tudo para o interior, abriram completamente os portões e, dando instruções detalhadas, guiaram o nosso chofer, ao milímetro, até a traseira da caravana entrar no depósito e poder fazer inversão de marcha. Assim saímos daquele entalanço. Creio que nem agradecemos aos homens, que riam a bandeiras despregadas.

-Agora já não paro em lugar nenhum até chegar a Génova! - Nem eu queria. Mas parou sim.

Alguns quilómetros depois, numa localidade chamada Bussana, arrancou o espelho lateral a um Volvo, por acaso estacionado encima do passeio. Olhamos um para o outro, estávamos pensando a mesma coisa, apetecia continuar andando, não ligar ao que tinha acontecido.

Já nos imaginávamos fugitivos Itália fora, com a polícia atrás, como bandidos. Era excitante, se não fossem os miúdos…. Parámos. A dona do carro já estava lá, nem parecia muito preocupada. O meu marido só queria saber quanto era, nada de chamar seguros ou polícia, precisamos seguir viagem e ainda havia muito pela frente.

- Quanto custa o espelho? -

- Devo parlare con mio marito - disse. O meu marido responde com um palavrão, baixinho.

- Ora chiamerò il mio meccanico – o mecânico chegou, conferenciaram, e no fim:

- Questo dovrebbe costare 400 mila lire …

…e lá foi o meu marido, à caixa multibanco levantar as 400 mila lire…que é como quem diz, 40 contos. Na altura ainda não havia euros.

Depois tudo correu bem, mesmo que tivéssemos ficado sem gasolina no alto dos Alpes e descido aquelas estradas com curvas e contracurvas deixando o carro ir embalado até Aix -les Bans. Mas eu cantei olarilolela hihi, saltitei nos prados verdes, apanhei florezinhas silvestres, senti-me a Heidi, aos pés do Mont Blanc.

E ainda nos enganamos e fomos parar à Suíça, onde, ao perceber que estávamos enganados ele fez inversão de marcha, bateu num poste com a bandeira desse país, que ficou todo torto e quase a bater na janela de uma casa. Mas aí não nos detivemos, fugimos como danados até sentir que já estávamos na França outra vez, e ainda assim…

De regresso fui despromovida. A minha filha era agora co-piloto. Chegamos a casa sem nos enganarmos nem uma vez. 


MC-2019

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