quinta-feira, 30 de abril de 2020

O VALOR DA PRIVACIDADE, de Fernando Teixeira














Na ordem jurídica nacional, a Lei nº 58/2019 assegura a execução do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, no que concerne ao tratamento e circulação de dados das pessoas singulares, visando a sua protecção.

Esta questão tornou-se ainda mais premente após o escândalo da britânica Cambridge Analytica que, veio a saber-se, entre 2014 e 2015, terá utilizado indevidamente os dados recolhidos por uma aplicação da rede social Facebook para chegar aos dados pessoais de 87 milhões de cidadãos, dando origem a perfis de consumidores para fins de marketing estratégico em campanhas políticas que terão influenciado o resultado das eleições para a presidência dos Estados Unidos em 2016.

Desde então, a navegação na Internet nunca mais foi a mesma. Sob a capa da protecção dos nossos dados pessoais, somos bombardeados diariamente com separadores que se sobrepõem à janela do browser, impedindo-nos de continuar a navegar na net, a menos que se clique num botão “ACEITO”. E o que estamos realmente a aceitar, apenas para podermos prosseguir?

O separador diz “Damos valor à sua privacidade”, a título de nos sossegar. E, logo a seguir, Nós e os nossos parceiros utilizamos determinadas tecnologias no nosso site, como os cookies, para personalizarmos os conteúdos e a publicidade, proporcionarmos funcionalidades das redes sociais e analisarmos o nosso tráfego. Clique em baixo para consentir a utilização destas tecnologias na web. Pode mudar de ideias e alterar as suas opções de consentimento em qualquer momento, voltando a este site.”

Não tendo tempo para ler os detalhes, como se não bastasse o incómodo de ver a nossa tarefa interrompida uma vez mais pelo maldito separador, o impulso é clicar em “ACEITO”, única forma de prosseguir e ver a página que queremos consultar. Porém, se nos dermos ao trabalho de abrir o separador “Consultar detalhes”, somos surpreendidos por um conjunto de itens que definem quais os tipos de dados, nossos, que estão a ser revelados a entidades terceiras.

Se o fizermos, ficamos a saber que são recolhidas informações sobre a nossa utilização dos sites, sobre os nossos interesses, sobre os assuntos que nos foram apresentados, a frequência e respectivo tempo de visualização, e de que forma reagimos a eles, se clicámos num anúncio ou se fizemos uma compra, com o fim de que essas entidades possam personalizar futuros conteúdos e publicidade de acordo com o nosso perfil de utilização. Isso é conseguido através do acesso e guarda de informações conservadas nos nossos dispositivos, tais como identificadores de publicidade, identificadores de dispositivos, cookies e tecnologias semelhantes.

Neste âmbito, são combinados dados de fontes offline, inicialmente recolhidos noutros contextos (?), com dados recolhidos online, são tratados dados de forma a associar diferentes dispositivos pertencentes ao mesmo utilizador e são recolhidos dados de localização geográfica, tudo para sustentar uma ou mais finalidades (??).

Todas estas permissões estão accionadas por defeito, quando clicamos no botão “ACEITO”. Se verificarmos quais são as entidades associadas, verificamos com estupefacção que essas informações relativas aos nossos perfis de utilização são transmitidas a um número gigantesco de empresas nacionais e estrangeiras, as quais os usam, sabe-se lá para quê. E ainda dizem que dão valor à nossa privacidade…!!!

Vivemos num mundo hipócrita. O que antes se fazia sem o nosso conhecimento faz-se agora de igual forma e com esse mesmo consentimento. É o que resulta desta política encapotada de protecção de dados que não nos protege de coisa alguma, antes legaliza que tais entidades espiem as nossas acções, a nossa vida, a menos que, supostamente, tenhamos o conhecimento e o cuidado de desactivar tais funcionalidades e a correspondente transmissão de dados. Devia ser assim, mas… surpresa, pura falácia: se desactivarmos as funcionalidades opcionais (porque algumas são obrigatórias), guardando as nossas opções, alguns cliques depois aparece novo pedido de consentimento, com as mesmas funcionalidades novamente activas, não adiantando quais foram as opções de consentimento que se gravaram anteriormente! Ou seja, pouco interessa a vontade do utilizador de que a sua privacidade seja respeitada. Que brincadeira…


O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

Sem comentários:

Enviar um comentário