sábado, 11 de julho de 2020

A HORTA, de Fernando Teixeira















Tinha as mãos calejadas como qualquer homem do campo, a pele endurecida por anos a manejar enxadas, sachos e forquilhas numa faixa de terra exígua que, por esse motivo, não pedia arado mecânico ou de tracção animal.
Aquela porção de terreno era, então, o seu sustento e a sua razão de viver. Havia-a comprado após se reformar do modesto mas honrado trabalho na cidade, a fim de cultivar o que a terra pudesse dar e, fértil como era, ela dava um pouco de tudo, o suficiente para quem pouco é o bastante para sobreviver. Ficava a cerca de um quilómetro de distância da humilde casa onde vivia com a esposa de sempre, numa aldeia da Beira Baixa.
De início, deslocava-se a pé, sozinho ou na companhia da mulher, carregando o produto do seu trabalho em sacas, às costas. Avançando na idade, tinha resolvido adquirir um triciclo motorizado da Famel, cuja cabina o protegia das intempéries e do cansaço do caminho, permitindo-lhe ao mesmo tempo transportar fruta e legumes para casa, na caixa aberta do veículo. O triciclo era lento, porém, com a idade que tinha, também não precisava de se deslocar depressa, tempo era aquilo de que ele mais dispunha.
Nos meses frios, os pesados cobertores apelavam a que se deixasse ficar mais algum tempo na cama, mas no Verão o dia começava sempre bem cedo. Dirigia-se à horta de manhãzinha, ainda o sol mal ameaçava despontar, para poder dar os trabalhos por concluídos antes da canícula raiana. Ainda era noite, quando se levantava e ia colocar a cafeteira de café ao lume ou preparar uma caneca de leite com um pedaço de pão migado, que os dentes já lhe iam faltando.
Estacionado o triciclo à sombra de uma oliveira, a primeira árvore que encontrava no estreito caminho de terra batida ao sair da estrada municipal, a primeira coisa que fazia era abrir a porta de um velho barracão isolado onde guardava os utensílios da lavoura. A primeira coisa, não. A segunda! Antes, não falhava no gesto de acender um cigarro que retirava do maço meio amachucado de Português Suave, que nunca dispensava ter no bolso das calças. Puxava duas fumaças e, depois de entalar o cigarro por cima da orelha e colocar a boina, lá ia então aos seus afazeres.
Depois da construção da barragem e da implementação do sistema de regadio na região, o trabalho de rega tinha ficado simplificado. Com a enxada, ia movendo pequenos montículos de terra, aqui e ali, desviando o curso de água por diversos canais cavados no terreno, possibilitando que o precioso líquido chegasse às diferentes parcelas da horta. Enquanto esperava, novas passas eram dadas no cigarro. De vez em quando, urgia tirar a boina e voltar a ajeitá-la depois de um breve coçar da nuca.
Verificava com olhar sereno o estado das árvores de fruto, certificava-se de que nenhuma moléstia as tinha atingido, e dava um jeito nas plantas hortícolas como só ele sabia. O ar perfumava-se de aromas a fruta madura, principalmente junto das duas figueiras, cujos figos “Pingo de Mel” faziam a delícia dos sobrinhos que ele adorava, quais filhos que nunca tivera.
Cavava aqui, arrancava ervas daninhas ali, semeava acolá, colhia algumas peças de fruta, escolhia uma alface, dois ou três tomates, ou umas folhas de couve e umas vagens de feijão que a mulher houvesse pedido para a sopa… Quem o visse, andava sempre numa azáfama tranquila, sem pressas, ao ritmo das vezes que levava o cigarro à boca, deixado depois em cima de um torrão de terra até à próxima passa, até aquele não ser mais do que uma beata com a qual acendia o cigarro seguinte.
Maldito tabaco que o haveria de consumir mais do que o trabalho do campo, vício do qual se veria obrigado a largar definitivamente, alguns anos mais tarde, numa manifestação da sua força de vontade e tenacidade, embora os danos já se reflectissem no catarro, cansaço e na falta de ar que o acometia.
Já não está entre nós. Dele, ficou a saudade de muitas tardes passadas a ouvi-lo contar histórias sobre a terra e os locais, seguindo com admiração o seu raciocínio esclarecido, escutando conselhos sábios forjados pela dureza da vida, enquanto bebíamos um café ou uma cerveja, ao entardecer e à volta de uma mesa da esplanada do café da aldeia, depois de ele ter dormido a merecida sesta. Ficar-me-á, para sempre, a imagem de serenidade daquele homem de pele tisnada e mãos calejadas, ajeitando a boina depois de um breve coçar de nuca, hábito que nunca perdeu.  

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

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