domingo, 2 de agosto de 2020

NÓ NA GARGANTA, de MC Garcia


Os negócios corriam mal, era impossível continuar com o bar. Já não se tratava de amealhar o dinheiro necessário para construir a casa na aldeia, esse sonho estava inevitavelmente, adiado, agora tratava-se de sobrevivência.

Tudo o que tinham estava investido no negócio, e já não havia mais. Fechar o bar foi, com toda a certeza, a decisão mais difícil que meus pais tomaram.

Ainda faltava pagar algumas das letras, acordadas aquando da compra ao sócio. Este não se encontrava no país, mas tinha nomeado um procurador que morava na capital e raramente aparecia por aquelas bandas. Meu pai precisava urgentemente de falar com ele.

Só posso dizer o que vejo ao lembrar esse dia, que nunca vou esquecer e que, ainda hoje, me ata com um nó a garganta.

Anoitecia. Os dois homens encontraram-se na pequena ponte junto ao bar. Sob a luz ténue do candeeiro da rua a figura do meu pai originava uma sombra comprida e amarelada. Sinto que nada mais existe. Não vejo a minha mãe, vejo apenas aqueles dois homens. Um gesticula agitadamente, o meu pai baixa a cabeça, fala baixinho. Não consigo descrever os sentimentos dele naquela hora, mas consegui sentir o desespero que o assaltava interiormente.

Mesmo sem entender o alcance do que estava a acontecer sentia-me apavorada, era como se o chão me fugisse debaixo dos pés! O meu pai estava dando o negócio como liquidação de uma dívida que era muito inferior ao valor do equipamento que havia no bar.

Depois de conversar durante algum tempo, o meu pai colocou nas mãos daquele homem as chaves do bar, mas ele atirou-as ao chão e exigiu, mais uma vez, o pagamento em dinheiro. Só isso lhe interessava.

Ouço o meu pai dizer “Se quiseres, a minha cabeça eu posso dar, mas o dinheiro não, não tenho!” porém, o homem virou as costas e entrou no carro. O meu pai ficou ali, imóvel, amargurado, olhando sem ver, o automóvel que partia, até este desaparecer na noite escura. Naquele momento o meu pai era o homem mais solitário do mundo.

Depois tomou a minha mão e, em silêncio, regressámos para casa. Agora vejo a minha mãe, ela vai connosco. Aperta o peito com as mãos, chora baixinho…

Sofreram toda a vida por não terem conseguido pagar aquela dívida. É em momentos como este que constatamos que o destino não está nas nossas mãos e nos fogem todas as certezas…

Já do avesso virou cada certeza

E o país que procurava não existe

Ainda não existe

Manuel Alegre, in “Um Barco Para Ítaca”

 

Como o bar ainda estava nas suas mãos, ele decidiu saldar as pequenas dívidas com peças de mobiliário. O padeiro, um português grande, daqueles que o sol não bronzeia, mas avermelha, que fazia a distribuição do pão porta a porta numa mota com sidecar, levou a máquina registadora; o fornecedor de bebidas levou a "minha" Rockola…, mas não levou a maior parte dos discos de 45 rotações, esses guardei. O senhorio ficou com tudo o que restava.

Meu pai só vendeu a licença de licores porque esta tinha algum valor comercial e era transmissível. Com essa pequena quantia devia iniciar uma nova vida e sustentar a família, sabia lá, por quanto tempo.

E numa manhã, como outras tantas, o Bar Copacabana fechou as portas para sempre, deixando-nos do lado de fora, ao sabor de um destino incerto.

Muitos anos depois, passei por aquela rua. O edifício ainda existia, mas as portas do antigo bar continuavam fechadas. As pessoas que moravam na rua não sabiam que naquele local tinha existido um bar que se chamava Copacabana. Mais recentemente soube que, durante as grandes inundações, muitos dos lugares onde passei a minha infância foram sepultadas pela pedras e a terra, ou arrastados pelas águas enfurecidas e lançados ao mar. Ficam só as memórias.

Perder o negócio foi, para os meus pais, uma vergonha. Custava-lhes enfrentar os seus conterrâneos e suportar a comiseração de uns e o escárnio de outros. Apenas tinham vontade de sair daquele lugar e começar uma nova vida onde ninguém os conhecesse.

Talvez por isso foi tão fácil aceitar a sugestão de um conterrâneo, um daqueles que tinham esquecido a aldeia e a família,  aventurando-se a ir para o país mais profundo, onde o rio Orinoco se cruza com o Caroní, junto à selva, onde se escondem os tesouros da terra.

Ele falou-lhe da grande siderurgia em construção e da cidade que se desenvolvia ao seu redor, da abundância de trabalho e dos bons ordenados.

Então, o meu pai soube que tinha que começar a trabalhar na construção civil e pôr em prática tudo o que tinha aprendido com o pai.

Com uma magra quantia de dinheiro, talvez menos do que aquela que trazia quando chegou àquele país, decidiu partir, uma vez mais, deixando atrás a mulher e quatro filhos pequenos. Mas agora o que o levava não era o sonho e a esperança, agora era o desalento e a incerteza que o levavam.


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