sábado, 8 de agosto de 2020

O REFÚGIO, de Fernando Teixeira



Achou a distância demasiadamente longa para chegar ao terreno que o vendedor lhe ia mostrar. Seis quilómetros desde que se saía da estrada nacional, percorridos por uma outra municipal sinuosa e estreita mas asfaltada, do mal, o menos, pareceu-lhe ser motivo mais do que suficiente para se decidir por uma recusa em comprar aquela porção de terra. E só ainda ia a meio do caminho…

Porém, quando lá chegou, essa impressão negativa desvaneceu-se e nem as palavras do vendedor, a tentar convencê-lo, seriam necessárias para tomar uma decisão. O local era perfeito, aprazível, sem construções à vista, rodeado de alguma floresta variada e de vegetação mais rasteira, alguns afloramentos rochosos dispersos e ligeiro declive para um pequeno riacho, por onde corria água, mesmo em Verões mais secos, disse-lhe o vendedor a quem resolveu dar o benefício da dúvida.

Dúvidas, não tinha ele. Sim, aquele era o local perfeito, tal como imaginara que seria o lugar onde um dia construiria uma casa que seria o Refúgio, assim chamaria ao seu paraíso, longe do bulício da cidade e dos seus habitantes, onde poderia estar em contacto com a natureza, procurando a paz e a simplicidade que idealizava depois de uma vida em permanente correria e convulsão. Com a mesma tranquilidade, fechou o negócio.

Durante dois anos, tratou de conseguir um projecto aprovado pela autarquia e foi construindo, ele próprio, a casa de pedra com que sonhara, tão simples e rústica como acolhedora. Vezes sem conta, fizera então aquela estrada até se tornar familiar como as suas mãos, conhecendo-lhe cada curva, as árvores nas bermas, cada marco ou singularidade que lhe permitia distinguir onde se encontrava e quanto faltava para o destino.

Mês após mês, com a ajuda de antigos companheiros das obras, foi colocando pedra sobre pedra, amassando argamassas para colocar novas pedras, marcando os vãos, vendo as paredes erguerem-se e tornarem-se numa habitação, como fizera tantas vezes para outros proprietários para quem trabalhara. Mas agora, era a sua casa que ele erguia, de sol a sol, metodicamente, vencendo a ansiedade de a ver concluída e pronta, para nela entrar e residir.

Cada pedra de granito assente carregava em si o peso de tantos sacrifícios que fizera no passado, o suor de cada dia de trabalho significava sucessos e fracassos de outrora, cada viagem ao longo dos seis quilómetros da “sua” estrada transportava dentro de si alegrias e tristezas, sendo a viuvez prematura o maior dos infortúnios, cuja lembrança o deixava a cismar por saber que nunca teria, naquela casa, no refúgio ambicionado e concretizado, a companhia de quem tinha partilhado consigo sonhos e dificuldades da vida.

Ao fim da tarde, cansado pelo esforço físico despendido, gostava de bebericar uma cerveja com os homens, ou sozinho se eles já tivessem dispersado, admirando o céu alaranjado logo após o astro-rei se ter ocultado por detrás das serras circundantes, aguardando o anoitecer pejado dos ruídos da natureza envolvente. Só então regressava à cidade.

Depois da casa construída e de finalmente se ter mudado para lá, manteve o mesmo hábito. Quando o ocaso se aproximava nas tardes estivais, descansava o corpo numa espreguiçadeira, com uma cerveja na mão, observando os diversos matizes que metamorfoseavam o céu, desde o azul-celeste a um alaranjado crescente, cada vez mais vivo, até que o firmamento se revestia de tons violeta para depois escurecer, tornando-se breu, iluminado por milhões de estrelas que pareciam subjugá-lo. Chegava a sonhar com tais ocasos quando, adormecendo na espreguiçadeira, o sonho parecia querer substituir-se à realidade.

Um dia, regressava a casa, percorrendo uma vez mais aqueles seis quilómetros de estrada estreita e sinuosa que o separavam do Refúgio. Já era de noite e apenas os faróis da viatura iluminavam o asfalto e as árvores mais próximas, transformadas em fantasmas monocromáticos. Não se vislumbravam estrelas e o breu era total. Só pensava em chegar e deitar-se no conforto da cama, esperando o dia seguinte. Após contornar uma colina, foi surpreendido pela visão de uma espécie de ocaso onde o sol já se pusera há muito. À distância, o contorno negro da serra distinguia-se num clarão alaranjado, cada vez mais vivo à medida que se aproximava. Um clarão maldito e imenso, ameaçando envolver toda a área do seu Refúgio.

Foi então que sentiu o cheiro a madeira queimada.

 

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)


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