quarta-feira, 7 de outubro de 2020

ELEVAÇÃO E PROSÁPIA, de Paulo Landeck

 


Capítulos indiciavam malmequeres ou margaridas, sempre que trilhava caminho ladeado por crisântemos na ascensão ao Amor-perfeito.
A jovialidade norteava vezes sem conta ao nº 6 - 1º dtº, do mais ornado topónimo. – Era lá que encontrava invejável baixa pressão dos maravilhosos catálogos de montanha. Há-que procurar estar sempre resoluto a enfrentar qualquer possível mar revolto, em altitude.
Perante complicada ousadia, não basta sonhar!
Tags no cimento contrariavam apetecido cenário, como prado sem música, num maciço alpino despido de edelweiss, e quase exclusivamente entregue ao Boieiro capaz de resgatar primitivos fantasmas de guerra, disfarçados de vira-latas.
No bairro, os latidos eram constantes. Chegavam mesmo a ser facilmente percetíveis, sob hitchcockiana insonorização de almofada, num qualquer 5º andar. Talvez apenas disputassem agitação: gatos esquartejados à hora de frenética orgia sincronizados com choro incessante de bebé; a chiadeira na estrada (da borracha a queimar) após ronco de motor; a hora do conta-pé na bola, com direito a coroas de louro e porrada; o explosivo pirotécnico, confundido por vezes, com elevados decibéis cuspidos pelo cano da puta; o desgraçado do Nelinho em plenos pulmões, sem castrati, nem gengibre no mundo, que rivalizassem com as cordas vocais de sua mãe; ou a perene meia-dúzia de indivíduos que fala como quem grita (à porta da casa dos outros), a qualquer hora do dia, contrariando toda e qualquer noção de liberdade.
A vontade de esfolar sola aos calcantes era tanta, que durante muito tempo, escapei até, ao mais ordinário verbalizar – apesar de rendido à deslumbrante mestiçagem!
A miscigenação é provavelmente a mais intimidatória ameaça para quem destila ódio encapotado na mais transtornada teoria - provável falta de arranque na hora de ir a jogo, como diria Futre, numa qualquer profunda análise televisiva a roçar o barrasco tragicómico. Quem tiver dúvidas quanto à maravilhosa salada humana, experimente os transportes de e para Lisboa em hora de ponta (afiada). Logo saberão do que falo. Como é possível repudiar tal beleza?!
Só por isso, as minhas primeiras razões, não eram de todo planos de fuga, mas pressurosa descoberta.
O rapaz intranquilo sonhava percorrer dos Apeninos aos Andes, procurava a mãe de todas as maternidades. Ainda hoje troca alhos por bugalhos, mas cuida das sábias lições que aprendeu com o velho da montanha, nos Alpes televisivos. Era o tempo em que sua avó tricotava no sofá, ou as tias mais velhas…já nem me lembro bem.
Memória certa, é a que vagueia pelas veredas da minha infância: o espírito comunitário da floresta verde.
Das pegadas no gesso, resultou mais selvagem apelo. Aceno esse, reforçado por: radiografias a lápis de cera reveladoras das mais fantásticas nervuras das folhas; coaxar da rã-verde ou do rhôau-rhôau-rhôau-rhôau do macho da rã-de-focinho-pontiagudo; brincadeira nos canteiros de espinhosas sebes, cujas bagas ocasionavam, ora mantimento, ora insubordinadas munições adequadas ao tiro de canudo; irrequietas descobertas no mundo rural; ou pela simples existência da mata, à porta de casa – basta querer alcançar o alto do cabeço, para vislumbrar mundo ao redor: brejos, charnecas, seixos e cascalho, barro, poços, charcos, lagoas, montados, pinhais, marinhas, sapais…mar que vem e que vai…importa bater terreno, importa averiguar.
Enquanto sulcos do arado ofereciam valas, da pedra, escapava a vinha, não muito longe dos terrenos temperados a salitre - o mesmo que aduba a vida, e pode levar à morte, em violentas explosões.
Tudo é susceptível de virar lavoura quando as mãos e a alma assim o entendem, tudo é descoberta e invenção. – Para ser rico, basta entender isso.
Ao outro papel das coisas em sincronia (como quem fala de protecção ecológica), até o mais pequeno charco é de tremenda importância, pois tal como o campo cultivado, só se cuida bem, do que melhor se conhece - de semeadas paixões podem brotar urgentes amores, se queremos agir com eficácia em nome de um futuro melhor, é preciso arrotear todo o espírito comunitário, desde tenra idade! - O adulto sabe da diversidade que pode albergar um único pinheiro, mas é a criança que descobre, como o carvalho estende infindáveis braços ao universo, ou como pode alcançar dimensão de montado, um único sobreiro.
Do betão armado lei, herdara também novas palavras e ritmo. Toda uma multifacetada sub-cutura com insurgente forma de esta crescera por via da aculturação, tal como a minha desconhecida África colonial (bem mais sentida, até pelo próprio sangue) de revelaria bem mais familiar, com o passar dos anos.
Se amava o punk, jazz, ou rock'n'roll, não poderia ficar indiferente: ao insolente e cool scratch; às musicadas batalhas de improviso; ao explodir de arte mural nas ruas – Enquanto os “filhos de Bambaataa” mostravam suas exóticas penas cortejando público com breakdance desejoso de apartar sistema, fãs e activistas como Keith Haring ou Jean-Michel Basquiat, promoviam poderoso reconhecimento artístico, por via da luta visual influenciada por graffitis, conquistando batalhas nas ruas e galerias.
Inaceitável ainda hoje, é a não distinção entre vandalismo e arte urbana, seja por parte de quem executa o quê, ou do crítico de arte em cada esquina.
Num mundo opulento e convulsivo, de brilhos descartáveis, era difícil resistir a esse sentir, sobretudo quando éramos tão desenraizados.
No avançar do tempo entrincheirado no bairro, sem outro compasso além do Timex digital, poucos jovens mantinham olhar fito, à poesia cuspida do beat – o movimento, as cores, e urbanizados ritmos, andavam de mãos dadas com palavras, na acção!
- Sinto que nasci dos despojos da guerra que não vivi… - ainda hoje, um monólogo sentido por tantas silenciosas vozes.
É possível confluir (urge percorrer para, conciliar mundos), mesmo sabendo que a guerra sendo a mesma, é outra; mesmo sabendo que evoluir não é retroceder, mas em muitos aspectos poderá andar bem perto da reconstrução, pela desconstrução.
O conhecimento de técnicas científicas e artísticas, devem em última análise, apontar a um progresso bem mais abrangente do que tem sido preconizado até aqui - O maior dos upgrades encontra-se agrilhoado numa qualquer Guantámo, por inclinações meramente comerciais (alheio ao interesse da quase totalidade dos habitantes deste planeta). – Fundações e fidúcia. Trust who?! Hoje a confiança, não passa de imagem vendida nos bastidores, posteriormente disseminada em qualquer plataforma que a faça chegar às massas.
Resolvi por isso, seguir caminho, acrescentando ritmos, grunhidos, batucadas e guitarradas… - curto o meu vibe, sem farda nem lei!
Viajo na diversidade, como se fossemos uma só ária.
A única marca que conheço bem, é a da minha individualidade – a partitura da vida deve casar esforços, sobretudo contra a desigualdade social, a mais perigosa de todas as pragas, sem cor, credo, nem género.
Somos a larga maioria que encontra pedras no caminho, as mesmas pedras que apenas servem para espantar impossibilidades aos que ousam falar a El Capitan, ou musicalmente pausar no cume das neves outrora eternas do Kilimanjaro…cada um de nós, deve sentir o que busca.
A vida é preciosa, não nos esqueçamos… - mesmo na mais ruidosa paisagem, há sempre uma ilha-montanha por desbravar.
Asas de abutre acompanham o sopro de páginas ascendentes capazes de unir a vida e a morte…viajemos nessa corrente contínua.
Parece que me vejo ontem e amanhã, na rota dos pássaros - procuro ver na lonjura o que olhar próximo não alcança, almejada virtude, sem “longe nem distância”.
Passo dedo em revista, viro páginas e páginas, a catalogados sentidos.
Focada retina viaja agora ao Monte Branco, K2, Cerro Torre… - sempre que posso, resguardo sonhos na paz das altitudes, como quem possa estar a meditar em Mount Temple, ainda que sob forte ameaça de avalanche. – O alerta veio para ficar, o mundo não é cão, pois diz-se que o cão, é o melhor amigo do Homem; “o pagador de promessas” é um homem perverso, logo, o mundo é homem…e mulher.
Por vezes sinto-me Spencer Tracy, o perscrutador de destroços na montanha, à procura de sobreviventes que possa amparar, em mútuo conforto, porque hoje o altruísta é o que espelha melhor, a corrupção do mundo.
O ar da serra que resolvo por agora respirar, é-me bem mais familiar. Nas minhas incursões, reencontrei-me vezes sem conta, com ela: a Serra da Estrela. - A do calor familiar, do meu saudoso tio de cabelo apardalado e riso que inferi em miúdo ser de pintassilgo (confirmei, pela delícia que era escutar aquela música portadora de boa disposição…das tais coisas simples); a mesma Estrela do fumeiro e do amanteigado queijo da serra; das simpáticas faces rosadas de enxada na mão; ou do tiritante rabirruivo-preto…e do cair da neve, no quintal.
Regresso ao florido inicial.
A pernada entusiasmada guiava meu rosto a outras nortadas, sempre que passava pelo túnel, que atravessava o prédio de um lado ao outro. Galgava degraus aos patamares.
No topo daquela montanha, curiosamente o ar jamais seria rarefeito, e o barómetro por ali funcionava na perfeição - acusou sempre propícia atmosfera, a boa amizade.
Aquele era o tempo, em que vulcões ameaçavam disfarçados de pústulas, na chipala de um ou outro amigo. Outros, já estampavam no rosto casamentos ad aeternum, vidas bem menos agitadas, longe dos cumes de Messner. Todavia, a maior das aventuras, tocara a todos (sem excepção): adolescência de escolhas e caminhos, possíveis, impossíveis...e condicionados.
Os sherpas passam pela zona da morte, em trabalho.
Só uma privilegiada minoria de pessoas se predispõem a outros actos heróicos…dessas, uma parte ainda mais ínfima, é a que liberta a psique de amarras, e segue ao sabor do vento - abençoados sejam, pela Mãe Natureza.
Espelhado, é o mundo real, de refulgentes noites de Verão, que amenizam sempre toda e qualquer adversidade no acampamento base, como brinde pela superior vontade dos que teimam vezes sem conta em sujar as botas, antes da escalada à fenda da mais íntima montanha, já de noite…mas guiados pelo calor da luz frontal.
No limite vertical, cada precioso segundo é (in)comum, desde o dia da partida ao ponto final.
Desconsolados, os que choram no leito reticências…pela luz que se lhes escapa, mas também, pelas gotas de orvalho que não cuidaram de caçar.


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