quarta-feira, 14 de outubro de 2020

HANG LOOSE, ONDAS E TEMPESTADES, de Paulo Landeck

 

Depois de uma semana, no mundo do surf, marcada pela proeza de Maya Gabeira ao conquistar o Red Bull Big Wave Awards XXL 2020, com uma onda de 22,4 metros, segundo anúncio oficial da Liga Mundial de Surf (WSL)…só posso dizer, que o surf feminino volta a estar em destaque pela positiva, fazendo por merecer a boa e justificada onda, que terá colocado o "prize money" feminino igual ao da competição masculina, além de condições mais justas na calendarização, e de outros diferenciadores detalhes conquistados!
Se nos anos 70 a tenista Billie Jean King travou a sua luta pela igualdade de género, ao mostrar que também no desporto essa injustiça deveria ser intensamente debatida…décadas passadas, há ainda muita assimetria para se esbater, até pela desejável evolução, nas mais variadas modalidades.
Neste sentido, o surf mundial, persegue o estatuto de case study, pois seguramente as condições estão criadas para uma base sólida. Poderemos vir a elevar a competição feminina a outro patamar, também em termos exibicionais, uma vez que as condições (e apoios) têm hoje um perfil muito diferente do que tinham há pouco mais de 2 anos atrás. E porque não promover eventos mistos que possam forçar outras batidas no lip? – Afinal de todas as contas, o surf além do poderoso marketing, e da economia, continua a ser uma filosofia de vida, um desporto com uma energia positiva muito peculiar, que honra ascendentes e descendentes de Duke Kahanamoku, julgo que ainda sem necessidade de ver cultura resgatada pelo eterno Edward Ryan Makua Hanai Aikau, e restantes tripulantes do Hokule'a. Para mim, o surf é pura vida, adrenalina, meditação, cultura, filosofia, e arte…mas eu, sou suspeito, freesurfer até morrer!
A dimensão política, cultural, e social do desporto enche-me noutra medida, além do olho que quase tudo ou nada vê. Há um ser humano em cada atleta que poderá brilhar para público desigual (Qual terá sido a influência de Francisco Geraldes no que respeita a hábitos de leitura, sobretudo junto dos jovens amantes do futebol, aquando da sua recente passagem pelo Sporting?). A Fundação José Saramago esteve atenta. Julgo que se poderia ir mais longe, poderia alguém do Governo ter-se lembrado de associar o atleta à promoção do Plano Nacional de Leitura...por exemplo (o seu exemplo, foi realçado em diferentes meios de comunicação social repetidamente, e até por rivais...o que diz bem, dos bons hábitos que se criam).
Sabe-se que o acesso a conteúdos, é hoje global (até mesmo à distância de um click), apesar de condicionalismos de variada ordem afectarem regiões e seus principais intervenientes, incluindo aspectos organizativos, além dos jogos de interesses alheios ao próprio espírito desportivo.
De modalidade para modalidade, podem certos actos ser mais ou menos impactantes, mas nunca causar indiferença. – Aos satélites não escapam (juntemo-nos, a eles!)
Algumas histórias são simplesmente arrebatadoras à escala planetária, como a do Olympische Sommerspiele de 1936.
Hoje, gosto de imaginar como seria, se Jesse Owens e as suas quatro medalhas de ouro mandassem calar Adolf Hitler no Estádio Olímpico de Berlim…com um dancehall To Di World, à Usain Bolt - para Sports Illustrated registar: one love, one heart, one soul!
Outros históricos episódios, conquistaram títulos de autêntica mancha negra na política nacional (final da Taça de Portugal de 1969, no Jamor, em plena crise estudantil), de incómodo resultado (e poderia ter sido pior!), como poderoso reflexo do desconforto social, e verdadeira ameaça ao estado das coisas. – Quando mexemos com o âmago do ser, nada parece acontecer por acaso, todo o grito pode ser inesgotável fonte de vida, independentemente do resultado final.
Poderíamos folhear páginas e páginas, por esse louco mundo fora, daqui e dali, ao longo da História…mas tiremos ilações do momento que teimamos viver.
Recentemente, apanhei no ecrã um pequeno grande gesto de revolta enquanto seguia o Tweed Coast Pro feminino, "madrugada" afora: uma surfista profissional australiana, ser humano acima de tudo, resolvera shapear seu statement sem se ficar pela resina da prancha; de punho erguido e cerrado, ajoelhada em respeito ao inaceitável número de vítimas de aberração que não reconhece fronteiras, prescindiu de não tão preciosos minutos da sua bateria competitiva, quanto a eternidade do sofrimento humano: “Black Lives Matter!”
Se eu já estava muito impressionado, apesar da expectável qualidade, com a solidez do surf apresentado anteriormente por Stephanie Gilmore (e que me manteve acordado), melhor fiquei, ao assistir ao silencioso grito de revolta por parte de Tyler Wright. – O meu enorme shaka para ela!
Não pude deixar de mergulhar na grande barreira, a do mais contemporâneo racismo da Austrália. Embora controverso, penso no entanto que a raiz histórica, não pode desaprender anteriores contextos, até mesmo pré-coloniais (se pensarmos noutros pontos do globo). Preocupa-me sobretudo o passado recente, chagas contínuas.
A humilhação e crimes violentos a que têm sido sujeitos, sobretudo os aborígenes, originaram graves problemas de alcoolismo, além de elevadas taxas de suicídio. Não devemos esquecer também os imigrantes, pois emprestam uma variedade multicultural a um debate que deve ser visto por outro prisma.
Mais uma vez, volto a frisar, as desigualdades sociais, as más políticas, estão na origem do cancro. Dividir para reinar, continua a ser a forma mais fácil de exercer poder, livre da maior das ameaças: a união de todos os lesados.
Foi apenas em 1999, que o parlamento australiano aprovou, uma proposta do senador aborígene Aden Ridgeway e do então primeiro-ministro John Howard, para uma Moção de Reconciliação, devido à mais terrível nódoa, o que me parece ter sido um passo sobretudo digno, uma vez que não sabíamos, e continuamos sem saber, o que foi, ou é, civilizado…podemos no entanto, evoluir…
Como é possível sequer entender, qualquer atentado contra a (provavelmente) mais antiga civilização ainda na Terra (que se conheça)?! – A educação e cultura, só podem estar em falha.
A taxa de suicídio, sobretudo de jovens meninas na casa dos 20 e qualquer coisa, na Austrália, é de uma melancolia assustadora. Quantas dessas meninas, jamais puderam sequer sonhar, apanhar a onda mais justa, em paz?
Infelizmente, não conheço lugar no Planeta Azul, onde o Homem possa surfar despido de preconceitos, em sintonia com o verdadeiro espírito Aloha!
Na Comunidade da Austrália, em que o surf consta como a 17ª actividade física e desportiva mais importante do país (segundo dados governamentais de 2019), a cultura do surf inerente à sua filosofia, pode com toda a certeza, representar mais uma poderosa voz a pugnar pela diferença.
Esta é uma maré, contra a qual todos podemos e devemos remar onde quer que nos encontremos, por pior que seja a tempestade. Nada nem ninguém, conseguirá apagar pontuado registo dos que surfam a maior onda de todas, pelo bem-estar da humanidade!

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