quarta-feira, 20 de maio de 2020

CRÓNICA | MONTALBAN, de Maria Cecília


Texto: Maria Cecília Garcia
Foto da Autora: D.R.

Montalban era uma pequena vila encaixada entre montanhas, onde às onze horas da noite o gerador da luz eléctrica era desligado e um nevoeiro fantasmagórico rodeava a população. Apesar de estar entre montanhas, não era fria, antes pelo contrário, o clima era húmido e abafado.
Era uma localidade antiga, as casas eram baixas, quase todas com pátio interior e paredes de cana e barro, o edifício que se destacava era a igreja e depois a alcaldía.
Curiosamente, nesta povoação isolada nas montanhas, existiam três igrejas, cada uma dedicada a um padroeiro diferente. A minha mãe achou bem, significava que as pessoas eram devotas.
Não sei como fomos parar a este lugar, assim como não sei qual era o critério para a escolha dos diferentes lugares onde fomos morar, mas penso que seria uma certa proximidade do sítio onde meu pai estava a trabalhar, de modo a permitir que ele viesse a casa durante alguns fins-de-semana. Quando lá chegámos ainda não tínhamos casa para morar, foi preciso procurar alguma que estivesse vaga. Não foi difícil, rapidamente nos deram a indicação de uma, a única que estava para alugar.
 Fomos conhecer a casa e ficámos surpreendidos, era uma habitação diferente, bastante nova e mais elegante do que as demais. E estava situada numa rua bastante sossegada, embora próxima do centro.
Era uma das poucas que tinha telhado de telhas e, apesar de ter só um piso, era grande e tinha um terreno nas traseiras.
 Mas o seu interior parecia estar inacabado e tinha muitas cicatrizes no chão e nalgumas paredes. Os seis quartos distribuíam-se lateralmente, formando dois corredores, no meio dos quais se encontrava a sala com uma grande janela e a cozinha.
 Os quartos eram contíguos e comunicavam entre si por uma abertura onde devia haver portas, mas estas não existiam, e cada um dos cubículos tinha também uma porta para o corredor.
Era uma distribuição algo bizarra. Dos quartos do lado esquerdo, apenas aquele que dava para a rua, tinha janela, o que tornava os demais algo escuros; nos quartos da direita apenas um deles tinha uma janela que dava para o terreno e em todas as janelas havia grades de ferro. A sala tinha uma janela maior, também protegida por grades de ferro e portadas de madeira.
A única divisão que parecia estar completamente acabada era a sala de banho, que era também muito estranha. As paredes estavam recobertas por azulejos grandes, pretos e brilhantes, os vizinhos asseguravam que eram de mármore de Carrara, mas não tinha janela, estava sempre muito escuro e, mesmo com a luz acesa, tinha um ar algo sinistro.
As louças eram pretas, incluindo a banheira, o que também era uma raridade, pois o usual naquele país era as casas de banho terem apenas um duche. Tinha um grande espelho que ocupava quase toda a parede junto ao lavatório, cujas torneiras eram douradas.
O terreno das traseiras estava descuidado, como votado ao abandono, há muito tempo, coberto de ervas altas e alguns arbustos.
Nas traseiras, encostado à casa havia um grande barracão, que a minha mãe pensou que podia ter alguma utilidade para a criação de galinhas, e ainda outro, mais pequeno, cheio de coisas inúteis, algumas ferramentas, sacos de cimento endurecido. Parecia que alguém tinha atirado para lá tudo isso e saído a toda pressa.
Habituados como estávamos a viver em todo o tipo de casas, achámos que aquela estava bem e, quando a minha mãe soube o preço do aluguer, não pensou duas vezes, até porque nem foi pedida uma caução, como era uso.
Mas tinha um senão, a pessoa que a alugou fez questão de informar que aquela casa tinha fama de estar assombrada e que os inquilinos não paravam lá.
A minha mãe, que não acreditava nessas coisas, riu-se, e nós rimos com ela, mas, pelo sim, pelo não, foi falar com o padre, que confirmou essa informação.
A minha mãe achou que ele era tonto, mas pediu-lhe que fosse benzer a casa e, embora ele a informasse de que já tinha feito esse trabalho várias vezes, para outros inquilinos, sem resultado, ela insistiu.
Com a casa aspergida com água benta e um grande crucifixo na parede, entramos com a maior das confianças na nossa casa, talvez assombrada.
Tenho que admitir que me custa um pouco falar sobre as coisas que aconteciam ali, não porque acredite em fantasmas, espíritos ou assombrações, mas porque pode parecer invenção minha. Mas juro que tudo o que vou contar aconteceu!
Apesar dos avisos e dos prognósticos das vizinhas que apostavam que não ficaríamos lá muito tempo, fomos viver para aquela moradia.
A minha mãe lamentava que as pessoas fossem tão supersticiosas e sugestionáveis, pois para ela não havia que ter medo se estávamos com Deus porque ninguém era mais forte do que Ele.
Além das histórias que nos tinham contado, em que não acreditámos, havia uma circunstância bastante aborrecida, que era o facto da luz eléctrica que, além de ser desligada às onze horas da noite, não tinha a potência necessária para fazer funcionar a televisão em boas condições.
Recordo que eu andava todo o tempo mudando a televisão de lugar para ver se encontrava um ponto onde a recepção fosse melhor, ou rodando a antena até conseguir que aparecesse uma imagem distorcida e chuvosa, algumas vezes sem som e outras apenas com som, sem imagem!
Pelo seu lado, a minha mãe aumentou a sua criação de galinhas brancas e boas poedeiras, no barracão das traseiras transformado agora em galinheiro, e até arriscou a criar uns coelhos.
Com naturalidade habituámo-nos ao facto de encontrar todas as manhãs o chão da sala molhado e coberto com uma camada de salitre, sem nunca conseguirmos perceber de onde vinha aquela água.
Era, com certeza, alguma infiltração, no entanto, segundo a vizinhança assegurava, a casa já tinha sido esburacada à procura de algum cano roto ou uma nascente, mas nunca se encontrara nada que justificasse aquela humidade. Essa era a razão das cicatrizes nas paredes e no chão. Nada disto nos preocupava, esse fenómeno tinha com certeza uma explicação lógica. Por enquanto, bastava secar o piso pela manhã e fazer o mesmo no dia seguinte.
A casa de banho, que ao princípio parecia tão interessante, com a banheira na qual imaginara tomar grandes banhos de imersão, apavorava-me. Quando precisava de lá ir, nem me atrevia a olhar para o espelho!
Mas era utilizada pelos meus irmãos, que ainda não estavam na idade do medo, para treinarem mergulho e apostarem para ver quem passava mais tempo debaixo da água sem respirar. Aliás, um deles ficou com esse vício desde então e, nas casas onde morámos depois, na falta de banheira, metia a cabeça dentro de um balde cheio de água para ver quanto tempo aguentava sem respirar…
A falta de luz durante a noite era algo muito aborrecido e a única forma de atenuar essa falta era ter sempre em casa, uma boa quantidade de velas, porém houve uma noite em que elas não foram suficientes.
Acordámos a meio da noite com um ruído estranho, um chocalhar persistente que a minha mãe identificou como o som característico das cobras cascavel, o que não era de estranhar naquele país, ainda mais numa localidade tão rural e com o terreno das traseiras cheio de ervas. Com muito cuidado inspeccionámos tudo à nossa volta, debaixo das camas e em cima delas, nos poucos móveis e em todos os recantos da casa sem encontrar nada, mas quando ficávamos em silêncio, voltávamos a ouvir o mesmo som abafado de chocalho.
Quando as velas se acabaram o medo aumentou, só nos ocorreu ir para um quarto interior sem janelas, que estava completamente vazio. A minha mãe rasgou um lençol e pegou-lhe fogo para iluminar o espaço e verificou que nada havia ali nem havia a possibilidade de que um qualquer bicho rastejante pudesse entrar; depois foi rapidamente procurar mais lençóis e cobertores, enquanto nós esperávamos com o coração na boca. Depois de os sacudir – os lençóis – e verificar que não tinham qualquer bicharoco, entrámos todos para aquele cubículo fechando a porta rapidamente.
Apenas os meus irmãos pequenos conseguiram dormir um pouco, a minha mãe e eu não pregámos olho até ao amanhecer. Eu estava paralisada pelo medo e o frio.
Quando surgiram os primeiros raios de sol abrimos cuidadosamente a porta e vasculhámos toda casa sem encontrar nada, só então respirámos de alívio embora continuássemos convencidas de que uma cascavel atrevida tinha passado por ali.
Também já nos tínhamos acostumado a ver as luzes se acenderem numa luz muito débil e apagar-se pouco depois, isto várias vezes durante a noite. Atribuíamos sempre o facto ao mau funcionamento do gerador, apesar das vizinhas assegurarem que isso não lhes acontecia. Também nos acostumámos ao barulho irritante de vidros que se partiam nas madrugadas de domingo. Era com se alguém se divertisse a partir garrafas durante horas; algumas vezes parecia que se ouviam vozes misturadas com o som de quebrar vidros, que parecia ser mesmo nas traseiras da casa, acontecimento que atribuíamos a alguma briga de um bar, embora o bar mais próximo ficasse a algumas ruas de distância e, mais uma vez, ninguém da vizinhança ouvisse estes barulhos.
Também passamos um sustou ma noite, quando as galinhas que deviam estar a dormir no barracão fizeram uma grade confusão, piando , batendo as asas, saltando de um lado para outro, de tal modo que , acendemos as velas que tínhamos e fomos espreitar, em fila indiana, cada um com a sua vela acesa, mas logo que nos aproximamos da porta, as galinhas sossegaram, e sentimos, todos, um sopro muito próximo, que apagou todas as velas! Atropelamo-nos na escuridão e corremos, outra vez, para o quarto mais seguro da casa, onde nos tínhamos refugiado quando pensamos que uma cascavel, que nunca vimos, andava por casa...
É verdade que eram tempos de muitas preocupações e a minha mãe andava naturalmente angustiada, tinha medo de estar sozinha com três crianças, um cão, algumas galinhas e até um coelho, sem contar com o arbusto de abacateiro numa lata de leite em pó.
Mesmo estando convencida de que não acreditava em almas do outro mundo vagueando pela casa nem nas histórias que a vizinhança contava sobre aquele lugar, era natural que no subconsciente existisse um espaço de dúvida, um “se” que a fazia sentir-se inquieta e lhe causava noites de insónia.
 Por isso mesmo, com o passar do tempo e a repetição de situações estranhas e de difícil explicação, era natural que estes fizessem estragos no sistema nervoso e é certo que nada é mais assustador do que o desconhecido.
Um dia, logo pela manhã, encontrei a minha mãe com uma expressão aterrorizada metendo rapidamente os nossos pertences em caixas e sacos e, quando eu quis saber o que acontecia, ela só me respondeu que nos íamos embora daquela casa.
 Nunca me explicou o que a levou a tomar essa decisão tão repentina e eu não voltei a perguntar, mas senti que era urgente sair dali.
Nesse mesmo dia saímos à procura de outro lugar onde ficar, a vizinhança toda nos ajudou nessa procura, mas só conseguimos descobrir outra casa disponível numa povoação próxima chamada Bejuma. A casa era de barro e canas com chão de terra batida, uma autêntica cabana, mas isso não tinha importância: o importante era ficar longe daquela casa, assombrada ou não…
Alguns dias depois o meu pai chegou e ficou combinado que nos mudaríamos para a cidade onde ele trabalhava, tão depressa quanto ele conseguisse encontrar uma casa para nós.

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