sexta-feira, 12 de setembro de 2025

PORTO - CIDADE DE NÉVOA E PEDRA, de MBARRETO CONDADO | CHIADO BOOKS

Porto – Cidade de Névoa e Pedra

Há cidades que se mostram de imediato, outras que se revelam devagar. O Porto, não — o Porto não é nenhuma delas — habita nas entranhas da pedra, dissolve-se na bruma, paira no silêncio húmido que desce do Douro e cobre os telhados rubros como um manto de memória ancestral. É uma cidade que se sente antes de se compreender, onde o granito tem voz e o vento murmura histórias que ninguém ousou escrever.

As gentes do Porto dispensam ornamentos: dizem o que pensam e cumprem o que prometem. São austeras como as fachadas da Ribeira, mas com um coração doce. Falam com voz rouca de quem viveu muito e sorriem com dignidade, sem pedir licença para existir. Nos olhos guardam ternura, nos gestos, uma franqueza que embriaga mais que o próprio vinho do Porto. Aqui, a hospitalidade não se mostra — pratica-se.

A cidade ergue-se em socalcos e vontades, resistindo a cercos, séculos e à pressa dos tempos. Por isso é Invicta — não por vaidade, mas por justiça. Em 1832, durante o Cerco do Porto, suportou bombardeamentos e privações para defender a liberdade constitucional. Foi aqui que D. Pedro IV foi aclamado, e quis repousar simbolicamente o seu coração — um raro gesto de amor político. Séculos antes, nas margens do Douro, nasceu o berço da nação. Daqui partiram navios que rasgaram mares e mapas, e chegou a modernidade com fábricas, comboios e indústria a transformar a cidade.

Nos muros e varandas cruzaram-se fidalgos, mercadores, espadas e ideias. O Palácio da Bolsa guarda essa nobreza ativa, unida ao labor tenaz dos homens livres. Nos seus salões ecoam passos de reis, palavras de diplomatas e juras de alianças. O Porto foi palco de revoltas operárias, bastião republicano e berço estudantil. Resistiu à censura e floresceu com o 25 de Abril. O passado não descansa: molda, arde e permanece.

Também nos muros se escreveram versos. Do Porto saiu Almeida Garrett, mestre do romantismo combativo. Aqui nasceu Sophia de Mello Breyner Andresen, que ouve o mar como quem escuta o destino. Camilo Castelo Branco viveu nestas ruas as suas paixões e tormentos — ora cúmplice, ora verdugo. Ainda hoje, o Porto é berço de autores: livrarias respiram entre pedras, cafés e ideias. Cada rua é um poema por escrever. O Porto transforma a dor em literatura eterna.

À mesa, outra epopeia — íntima e heroica. Há séculos, os portuenses cederam a melhor carne às naus, ficando com as tripas. Da escassez nasceu um prato símbolo: as tripas à moda do Porto. Nada descreve melhor a alma da cidade — que transforma pouco em muito, rude em belo. A gastronomia é resistência: a francesinha desafia, o caldo verde conforta, o bacalhau, eterno companheiro, renasce sempre. Em cada tasca pulsa uma alma, um aroma que fica na roupa e no coração.

E há o vinho do Porto, que desce do Douro em tonéis e repousa nas caves de Gaia, como quem adormece para sonhar. Não se bebe só — contempla-se. Doce, escuro, profundo. Como a cidade.

Os costumes nascem de festa e fé. No São João, sagrado e profano abraçam-se, e o Porto transforma-se em espanto. Balões sobem como preces, martelinhos e alhos-porros dançam entre gargalhadas, e o rio espelha as estrelas. É a noite em que a cidade se entrega, e por um instante, todos são filhos do mesmo chão.

O clima é um personagem à parte. Não se limita a estar — impõe-se. Os verões cheiram a sal e sol, os invernos colam-se à pele. Mas é no nevoeiro que o Porto encontra o seu rosto. Esse manto espesso que desce sem ruído envolve tudo, desfoca os contornos e devolve à cidade o seu mistério. No Porto, o nevoeiro não oculta — revela. Nas manhãs brancas, ouve-se melhor o tempo antigo, e cada beco parece um segredo em suspensão.

Na bruma, o Porto adormece,

com o Douro a sussurrar,

e um coração que nunca esquece

o que sempre há-de amar.

À beira-rio, os barcos rabelos contam outro tempo. Os degraus que descem à água falam de homens que lavraram o Douro com mãos calosas e coragem. Do alto da ponte D. Luís I vê-se a cidade em camadas: velha, eterna, resistente. Lá em cima, os telhados desenham uma colcha de ferrugem e sonho.

Se o passado é pedra, o futuro vibra nos corredores da Universidade, nas livrarias, nos cafés onde fermentam ideias. A vida académica é pulso, juventude, reinvenção. Chegam estudantes de todo o mundo, misturam línguas, sonhos, culturas. Enchem jardins, ocupam teatros, desafiam praças. Diz-se que é nos olhos deles que o Porto reaprende a ver o futuro — com ciência, arte e ousadia feroz.

O Porto escuta, mas também se transforma. Inova sem ruído, respeitando o que foi para erguer o que há-de vir. Cresce para o mundo, sem perder o cais da sua identidade.

E entre os heróis de outrora, também o presente se projeta. O futebol — paixão visceral — reflete a alma combativa da cidade. O azul e branco do F. C. Porto não é apenas cor — é nervo, é orgulho tatuado no peito de milhares.

Hoje, turistas chegam de todas as latitudes e perdem-se encantados entre a Ribeira e a Foz, entre travessas escondidas e o brilho dos azulejos ao entardecer. Espantam-se com a força do vinho, com a alma da comida, com a forma como o passado habita cada esquina. E os próprios portugueses, olham para o Porto com respeito e um fascínio silencioso — como se ali residisse uma verdade antiga, que todos reconhecem mas poucos conseguem nomear.

No fim, o que fica é um sentimento sem nome — um Fado quieto. O Porto não é só cidade: é forma de ser, de estar, de amar em silêncio. Quem aqui nasce, nunca parte por inteiro. E quem chega, se souber escutar, encontrará sempre um lugar onde pousar o coração.

O Porto é nevoeiro e luz, dureza e abraço. É pedra, rio, vinho e gente. Passado que pulsa, presente que arde, futuro que sonha — sempre com alma.

MBarreto Condado

 

 

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