domingo, 14 de outubro de 2018

REFLEXÕES OCASIONAIS - Especial | A Desumanização da Justiça | ISABEL DE ALMEIDA e CARMEN COUTINHO MATOS

   
Em pleno sec XXI, seria de esperar que a sociedade em que vivemos fosse mais plena de humanização de todos os seres que nela habitam e que por ela deambulam.

   Estamos na era da tecnologia, dos acontecimentos relatados ao minuto, tudo é feito à velocidade da luz e os seres humanos, supostamente, estão mais evoluídos que nunca. E diga-se “ supostamente”, pois seria este o resultado expectável de uma evolução tão significativa como a que se tem vindo a constatar.

   Mas, como se vocifera por aí, “não há bela sem senão” e tudo tem o reverso da medalha.
Vivemos tempos em que a “evolução” é inversamente proporcional à humanização em todos os segmentos da sociedade.

   Porquanto, a Justiça que, por inerência e de forma inata, deveria ser sensível ao cidadão, às suas necessidades, à situação que o levou até ao caminho dos tribunais, e certamente não será este um caminho escolhido porque lhe apetece, mostra-se ineficaz para com este.

   O Sistema judicial está hoje mais propenso não para atender aquele direito em questão, mas apenas e só para uma aparente prossecução de Justiça…muitas vezes a aparência de justiça substitui o que deveria ser a verdadeira essência desta mesma Justiça!

   A despersonalização avança em crescendo neste quadrante da sociedade que se quer atento, sensível e preocupado com a violação de direitos do cidadão, até porque, muitas vezes, o cidadão recorre aos tribunais porque um direito, de entre todos os que tem (o presume em fé ser do mesmo detentor legítimo) foi violado, afectado, restringido ou até negado.

   Destarte, o cidadão é encarado no sistema judicial e nos seus diversos agentes de justiça como, apenas e só, um número… na verdade mais um a acrescer a tantos outros. “Não se perde tempo” a ouvir o cidadão, a perceber que aquele caso é “o caso dele” e não apenas mais um caso com que a justiça tem de lidar.

   Com efeito, em cada “caso dele”, há um panóplia de emoções, de incertezas, de dúvidas, de fragilidades que devem e têm de ser atendidas. Ainda que a situação que levou aquele cidadão aos terrenos da justiça seja de diminuta gravidade face a bens jurídicos revestidos de maior protecção legal, para aquele cidadão, esse mesma situação é importante, é lesiva, é de apreciação e valoração fulcral, para que este sinta que ele próprio é importante para a sociedade e que esta cumpre o seu papel de protecção.

   A despersonalização que avança a passos galopantes, fere de forma fatal a confiança que era suposto o cidadão ter na sua justiça e afasta, por medo, insuficiência económica e diminuição de importância do estado emocional do titular desse direito, levando a que se tema esse grande “monstro” que é a justiça.

   Há, por assim dizer, uma aparente perfeição imperfeita na sociedade no que concerne à justiça.

   O Sistema Judicial Português, talvez reflectindo a crise de valores que percorre a nossa sociedade da era da globalização e do uso massivo de novas tecnologias, vem denotando uma crescente desumanização. Cada vez mais, um sistema que se pretende humano, que foi feito “por homens e para os homens” encara, por norma, os seres humanos como meros números que irão constar de  frios relatórios de dados estatísticos.

   Qualquer operador judiciário mais atento, ou dotado de uma maior sensibilidade, se apercebe facilmente desta nova tendência. Pela leitura de muitas peças processuais, despachos, sentenças e acórdãos recentes é possível encontrar, salvo honrosas excepções, uma crescente banalização, uma formatação quase uniforme na forma de abordar certas questões jurídicas, uma quase total cegueira perante o caso concreto e as questões de cariz social ou até mesmo humanitário que este possa conter. 

   Estamos na era da “justiça do copy paste”, e esta é a filha dileta da “justiça dos formulários”, vamos reduzindo ao mínimo o espaço para expor por escrito as questões (aqui se perde logo uma oportunidade para um olhar atento e uma explanação das minudências do caso concreto), simplificam-se (mais no conteúdo do que na forma) as fases processuais, limitam-se as oportunidades de expressão e de exercício completo de defesa das partes. 

   Cuida-se mais da forma do que do conteúdo, uma justiça de Toga, de Beca e de Capa, cheia de temores reverenciais, de devidas vénias, de posturas teatrais sobrepõe-se, infelizmente, aos legítimos direitos dos cidadãos a que se aplica, todo o formalismo cinzento, vazio e antiquado é colocado acima do valor da vida humana, dos meios de subsistência, da qualidade de vida, do futuro e, em última análise, das hipóteses de sustento e subsistência de adultos ou menores que caiam nas malhas do sistema judicial Português (sejam eles autores ou réus, ofendidos ou arguidos, requerentes ou requeridos, aqui pouco importa a qualidade processual, pois que tendemos a esquecer que há um traço transversal a todos eles, e até mesmo a julgadores, magistrados, advogados e funcionários judiciais – todos são, e deveriam ser um primeiro lugar e antes de mais SERES HUMANOS).

   Perdeu-se quase por completo o hábito de “fazer o trabalho de casa”, de estudar os processos e de lhes desvendar o âmago. Recorre-se à pressa, com leveza e por vezes despudor, apenas à internet para enquadrar as questões controvertidas a expor e a decidir. 

   A Doutrina vai ficando esquecida por entre a poeira dos livros dos grandes mestres jurisconsultos de todas as academias do país que são abandonados nas estantes, em troca do clique eficaz, imediato e rápido e moderno (logo, evoluído?!) nas teclas do computador. 

  Ironicamente, a menor qualidade do Sistema Judicial Português é inversamente proporcional aos elevadíssimos custos que o seu uso acarreta para os Cidadãos! E até aqui encontramos mais uma perversão que, mais ainda, afasta a dita Justiça daquela que deveria ser também a sua essência - o acesso livre e facilitado a todos os que dela necessitam!

   É de extrema importância que se proceda a um KINTSUGI ( recuperação dourada) nesta área. Ou seja, aplicando a sabedoria ancestral do Japão, torna se necessário que analogamente se aplique esta técnica, nesta área da justiça; Em vez de deitarmos fora aquilo que está quebrado, devemos, pois, e todos, realçar as fissuras e quebras da justiça utilizando “esmalte com pó de ouro, cuidadosamente aplicado nestas para tornar a peça danificada completa outra vez”, que o mesmo será dizer que devemos atender mais ao cidadão, às suas emoções, as suas necessidades e torna-lo uma pessoa, porque o é, em vez de um número. Assim, realçar-se-ia a imperfeição do sistema mas torná-lo-íamos algo de original e que satisfizesse o fim a que se propõe.

   É urgente ver alterar mentalidades, formas de estar e actuar para que se alcance o propósito último desta área, tão indispensável a uma sociedade que se diga justa, equitativa e equilibrada, que é a Justiça!

   "Eu tenho de estar disposto a dar aquilo que sou, para me tornar naquilo que quero ser."

Albert Einstein



“(…) A decisão do tribunal 
É como a sombra do punhal 
Vamos matar o justo que ali jaz 
Para quem julga tanto faz 
Já que o punhal não mata bem 
A lei matemos também. (…)”

In, O Coro dos Tribunais – José Afonso

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