quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

NOTURNO ARCO-ÍRIS – MULHER DE BIGODE, de Helder Menor















Já aconteceu há uns anitos... Estava um daqueles dias cinzentos dos primeiros dias do ano.
A Sandra entrou no carro de manhã cedo porque tinha uma reunião em Castelo Branco às onze horas.
Não tinha vontade nenhuma de fazer aquela viagem. Devia ter arranjado uma desculpa para não ir...
A Sandra é advogada e trabalha num escritório em Lisboa. Foi contratada para ajudar a resolver uma questão de heranças entre uns primos. Já tinha sido feita a habilitação de herdeiros e já tinham chegado a um acordo de partilhas para dividir o património. Tinha de ser naquele dia.  Nos primeiros dias do ano, no frio de janeiro para aproveitar a presença de todos, uma vez que alguns dos primos estavam emigrados na França e na Alemanha. Tinha mesmo que ser naquele dia, não havia volta a dar, para aproveitar as férias de natal que alguns gozavam.
Muita gente de férias.  Outros que não ela... que tinha de ir trabalhar.
Seguiu sozinha cantando os sucessos dos roupa-nova que descarregou da net.
Saiu da autoestrada no Entroncamento seriam umas nove da manhã. Direção Abrantes. Ao lado direito, o Tejo que não se via... à frente, à volta e em cima um nevoeiro denso.
Reduziu a velocidade e seguiu viagem trauteando. Quando abria o vidro para fumar, o frio entrava misturado com a micro chuvinha do nevoeiro que parecia de algodão.
A via mais ou menos rápida onde seguiu estava em obras e foi obrigada a sair para a estrada nacional por alturas do Fratelo. Uma estrada estreita, velha e perigosa. Agora ainda mais perigosa pelo nevoeiro.
Reduziu a velocidade para uns estonteantes cinquenta quilómetros por hora. Visibilidade muito reduzida e pouco trânsito.
Na berma, entre o nevoeiro, uma velhota. Gesticulou enérgica para ela e fez-lhe sinais para parar. A Sandra parou. Não costuma parar nunca e nunca deu boleia a ninguém, por isso nem ela sabe porque abriu o pisca à direita e saiu para a berma ao sinal da velha. A senhora tinha uns brincos de ouro antigos a balançar nas orelhas, um buço cerrado com mais pelos que muitos bigodes e uma expressão forte no rosto de quem está habituada a decidir sobre tudo.
Já fora da estrada, abriu o vidro para perguntar à senhora o que queria.
A velha não disse nada, mas nesse momento aconteceu o ruído estridente de uma travagem e estrondo que pareceu anunciar o fim do mundo. Cinco metros à frente, dois pesados batiam de frente. Depois do som metálico do impacto, o ruído de uma derrocada e todo o chão a tremer. A sensação foi tão forte que a Sandra sentiu o som na barriga. Desligou o motor e saiu do carro a tremer. Só fora do carro percebeu o perfil das traseiras do camião. A menos de um metro do seu carro parado na berma estreita uma montanha de toros de eucalipto. Na cabina, o motorista desacordado com um fio de sangue na testa. Pegado à cabina do motorista do eucaliptal decepado, estava outra cabina de outro camião. A galera meio fora da estrada e carregava manilhas de betão. O motorista, ainda novo, muito pálido a sair pela porta do pendura...
Não consegui travar... não consegui travar... O piso marcado e o cheiro a borracha queimada provavam que tentou.
Ligou para o 112 e com o condutor do camião de manilhas, tentaram reanimar o motorista do camião de troncos. O homem não parecia estar muito magoado nem ter nada partido. Apenas uns arranhões na cara. Tinha desmaiado com o impacto.
Esperaram pela ambulância a eternidade de uns doze minutos. Quando chegaram os bombeiros e a GNR, voltou ao carro dela. Com jeitinho, manobrou à volta dos destroços e seguiu viagem na direção do seu destino.
Não se lembrou mais da velhota do bigode que a mandou parar. Só à chegada a Castelo Branco pensou na velha e perguntou-se a si mesma o que é que queria a senhora que fez parar em tão boa hora...
Chegou ao notário passavam já vinte minutos das onze da manhã. Eram seis primos com as respetivas mulheres e maridos e alguns filhos. Todos assinaram os documentos das partilhas, uma vez que o acordo já estava feito e era só uma questão de formalizar. Estavam a dividir duas dúzias de pequenas parcelas de terreno, umas casas velhas de aldeia e uns palheiros dispersos. Havia um dos herdeiros que pretendia ficar com a casa que tinha pertencido aos avós para que a filha fizesse um turismo de habitação.
Demorou mais tempo a cumprimentar e a ser apresentada às pessoas todas do que a formalizarem as partilhas. Era meio dia e meia e já estava acabado o seu trabalho de advogada.
Convidaram-na para almoçar.
A Sandra recusou educada. Que não, que era uma reunião de família. Que ela tinha de voltar para Lisboa...
Mas vai ter de almoçar, certo? Então porque é que não come connosco e segue viagem? O almoço é cabrito assado no forno de lenha... é um moço amigo que é padeiro e tem um restaurante. Eu encomendei seis cabritos assados para o almoço. A doutora não vai fazer a desfeita!
O líder do grupo que estava a fazer o convite era um cavalheiro de setenta anos que tinha construído uma vivenda à saída de Benquerença, em direção a Castelo Branco.
Venha que a casa fica no caminho para Lisboa e depois do almoço segue viagem.
A Sandra, aceitou.
A casa numa colina glorificava o esforço de trinta anos a trabalhar na industria automóvel alemã. Dois pisos e uma garagem do tamanho de um campo de basquetebol. Em frente, um relvado com gnomos de loiça e  uma piscina coberta com lona azul. Atrás, capoeiras com galinhas, coelhos e faisões. Os três cães de caça vieram receber a todos.
A mesa já estava posta na garagem.
Doutora sente-se e não se acanhe, é uma casa humilde mas o cabrito dá para todos!!!
Comeram e beberam. O gelo inicial dos papéis e das formalidades estava quebrado. O primo do dona da casa, cuja filha queria fazer o turismo de habitação e que foi quem fez o contacto com a advogada estava visivelmente satisfeito. Os outros também estavam aliviados por terem resolvido um problema antigo. O dono da casa fazia brindes satisfeito de ter tanta gente em casa a poder apreciar o seu património acumulado e construído.
A Sandra limitou-se a provar o vinho e bebeu água. Tinha de voltar a Lisboa e, quando pensava no assunto, ainda ficava assustada com o acidente na estrada. Depois de almoço veio fumar um cigarro para o jardim.
Estava a falar com o herdeiro que a contratou e com o dono da casa. Aceitou a garrafa de vinho e o abafadinho que não bebeu... Explicou, que quase tinha ficado debaixo de uma pilha de troncos de eucalipto. Que a estrada era muito perigosa. Todos concordaram.
Depois pediu para ir à casa de banho.
Planeava sentar-se no carro ali e só parar à porta de casa no Cacém. O café acabado, o cigarro fumado, agora um xixizinho e direta para Lisboa. Devagarinho com cuidado, mas sem parar e sem sustos.
A mulher do dono da casa, uma senhora trabalhadora que tinha sido auxiliar hospitalar em Hamburgo e que tratava das galinhas com o mesmo carinho com que trinta anos tratou os doentes na Alemanha, levou-a pelo braço para dentro de casa.
Ensinou-lhe onde era a casa de banho e esperou à porta que a Sandra acabasse. Urinou constrangida com a presença da outra do lado de lá da porta e pela primeira vez teve consciência de que foi a velhota que a mandou parar na estrada, quem lhe salvou a viagem, o carro e talvez a vida.
Lavou as mãos e viu-se ao espelho. Continuava com cara de assustada.
Saiu da casa de banho do tamanho de uma sala de estar e a dona da casa quis mostrar-lhe as divisões todas.
- Eu sei que a doutora está atrasada, mas por favor veja a casa, que é sua, quando quiser vir passar um fim-de-semana com o seu marido já sabe, a casa é sua...fim-de-semana, uma semana, as férias, fica o tempo que quiser.
A Sandra não era casada, não tinha namorado certo e nem queria ir passar um fim de semana a Benquerenças... mas era educada e fez o que tinha a fazer.
Foi na sala grande, no salão, como a dona de casa chamou ao espaço que apanhou o choque.
Na parede, numa moldura grande, uma fotografia a preto e branco de um casal de camponeses.
A fotografia parecia tirada nos anos 40, 50 do século XX. Ele de bigode, chapéu, casaco, camisa e gravata. Ela de cabelo apanhado atrás da cabeça, brincos de ouro e uma expressão dura e maternal no rosto. O buço da senhora não era tão farfalhudo como o bigode do marido... mas mesmo assim aparecia bem marcado na fotografia antiga.
A advogada parou em frente à fotografia e fixou o olhar na mulher de bigode e de brincos.
- Eram os avós do meu marido. Os donos dos terrenos que a doutora hoje veio cá fazer as partilhas. Ou melhor a dona era a avó... era a avó do meu marido quem tratava de tudo... era uma mulher de armas, uma senhora com um querer muito forte.
A Sandra saiu da casa, acendeu um cigarro e partiu sem se despedir de ninguém.
Ia pálida e as mãos tremiam-lhe.
A mulher que a Sandra viu na fotografia foi a mesma que a tinha mandado parar na estrada.
Nunca falou deste caso a ninguém. Nem a colegas, nem a amigos.
Mas a velha que atravessou a linha entre a morte e a vida para garantir que a advogada chegava a horas à reunião de partilhas dos netos, para a Sandra tem sido uma inspiração.
Sempre que lhe dizem que alguma coisas é impossível, lembra-se da velha de bigode e brincos de ouro e diz: impossível é coisa inventada para os homens... quando as mulheres que querem, não há impossíveis.
Tem razão a doutora Sandra. 

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