domingo, 15 de março de 2020

NA CABANA, JUNTO À PRAIA..., de Maria Cecília Garcia















Quando o conheci pareceu-me interessante, tinha acabado de chegar de Caracas, era culto e conversador, mas havia na sua expressão qualquer coisa pungente, uma tristeza escondida que lhe escurecia o semblante.

Engraçámos um com o outro. Ele achava graça à costureirinha da aldeia que também era bibliotecária e encarregada da cooperativa de consumo do lugar. As suas visitas não se fizeram esperar e passaram a ser frequentes, como quem não quer a coisa, aparecia lá em casa apenas para dizer olá, mas acabávamos por ficar horas esquecidas na conversa.

-Gosto muito do teu irmão… - dizia eu à minha amiga, com a esperança de que ela pudesse fazer de Cupido. Pouco a pouco comecei a desejar que ele viesse, olhava ansiosa para a estrada para ver se via aparecer o seu Volkswagen preto.

Delirei quando ele, se não me encontrasse em casa, começou a meter debaixo da porta uma folha com um poema, ou parte de um poema. Cada dia me sentia mais atraída por ele, era tão romântico, tão delicado, tão respeitador…. Admirava o homem que nunca fazia provocações, que nunca tentava aproveitar-se, nem um bocadinho…era tão diferente dos outros, sempre prestes a roubar qualquer coisa, a tentar aproveitar o momento…

À medida que o tempo passava impacientava-me, não chegava só o romantismo e o respeito extremo. Algo mais devia acontecer! Numa noite, durante uma das nossas intermináveis conversas, eu só pensava que ele devia dar-me um beijo. Desejava tanto que isso acontecesse! Mas ele não se decidiu e então fui eu, fui eu que lhe roubei um beijo. Mais valia que não o ter feito. Ele ficou tão ofendido, tão consternado, que eu quase morri de vergonha. Senti-me uma descarada, e na verdade até fui, mas alguém tinha que romper o gelo! Desapareceu durante algum tempo, deixando-me afogada de arrependimento e vergonha.

Mais tarde, encontramo-nos num baile de garagem e depois de um gin tónico, ele dançou comigo. Abraçou-me e até me beijou à frente de toda gente.

Então eu pensei: agora sim, a coisa vai andar! Mas não andou. Algumas amigas presentes na festa aproximaram-se de mim: - com que então…quem havia de dizer! Dizem que ele é gay (nos anos 80 não se usava esse termo.) mas pelo visto isso não passa de mexericos…namoras com ele? Eu não sabia se namorava, mas lá que alguma coisa tinha acontecido, tinha!

Eu sentia-me eufórica, cada dia mais ansiosa por voltar a vê-lo cada gesto de carinho por parte dele era como uma massagem no meu coração. Depois dos beijos dados na festa, passou-se algum tempo até que eu voltasse a encontrar poemas, sempre escritos numa bela caligrafia e assinados por ele, debaixo da minha porta.

Entretanto chegou o momento em que ele devia regressar para a Venezuela e, por pura coincidência, eu tinha que voltar também, por motivos de saúde. Eu sofrera derrames pré-retinianos que me estavam causando cegueira, era um caso sério e raro para alguém da minha idade. Eu pretendia efectuar uma consulta com o Dr. Barraquer, o mais famoso oftalmologista desse tempo. Ele tinha uma clínica em Bogotá, e a minha família já tinha feito marcação. Eu tinha mesmo que ir.

Depois desses derrames nunca mais pude ver uma linha direita, as linhas estavam sempre tortas, assim como a minha vida.

Apetrechada de razões, lá fui eu, de regresso à Venezuela. Pensar que iria encontrar o meu amor quase platónico nesse país, minorou a angústia de deixar a minha ilha.

Atrevida como era, precisava vê-lo e para isso tinha que arranjar um pretexto para ir a Caracas. A melhor justificação que consegui foi uma consulta com o melhor oftalmologista da capital, antes de ir a Bogotá. Se este médico, que era uma sumidade naquele país, considerasse que o meu caso não tinha cura, nem valia a pena ir à Colômbia.

Senti-me justificada para telefonar ao meu amor platónico. Pedi-lhe que me recomendasse um hotel decente para eu passar a noite, uma vez que teria de ir de véspera. Ele aceitou com agrado, até com alegria, segundo me pareceu. Reservou um para mim um hotel relativamente próximo da clínica onde eu devia ir.

Tinha ficado combinado que ele passaria a buscar-me para irmos dar uma volta pela cidade e terminar a noite no piano-bar de um grande amigo dele.

Em realidade passeamos pouco pois ele tinha pressa de chegar ao bar. O piano-bar era excelente, requintado, com bom ambiente e o amigo dele, filho de espanhóis, muito simpático, Muito jovem e belo também. A barra do bar rodeava o pianista que tocava música pedida. O M. pediu uma música romântica, já não me lembro qual era, mas julguei fosse dedicada a mim. Tudo corria às mil maravilhas!  Boa conversa, bom ambiente, boa música…

Mas a bebida causou um efeito estranho no M. Ficou macambúzio, deprimido, começou a chorar, a dizer coisas incoerentes… Eu não entendia o que se passava, o amigo tentava acalmá-lo, mas parecia ser cada vez pior.

Já não sabia o que fazer da minha vida. Ele tinha um balão de whiskey que apertava cada vez com mais força, com intenção de o estilhaçar nas mãos, eu tentei de todos os modos tirar-lhe o copo, mas senti que ele começava a ceder, o copo, e tive medo de ferir-me. Então dei-lhe um estalo, surpreendido ele largou o copo. Olhou para mim horrorizado e saiu porta fora…
E agora, que faço eu nesta cidade que mal conheço, a esta hora da noite? – interrogava-me.-
O jovem espanhol tranquilizou-me: - Deixa lá, não te preocupes, eu levo-te ao hotel - E assim o fez.

Quando cheguei ao hotel, lá estava o M. Pediu desculpa… e eu, ok, tudo bem. Esqueçamos. Pensei que seria uma noite decisiva, e na verdade foi.

Poucos minutos depois ele estendeu-se na cama e, acto seguido, começou a roncar como um motor. Eu, bem à beirinha da cama, tentei dormir, mas não consegui.

Pela manhã, bem cedinho ele acordou, olhou para mim como um zombie, viu que eu parecia feliz, satisfeita, como se tivesse passado a melhor noite da minha vida.

- O que é que aconteceu? - Perguntou.

Decidi ser má. Sorri beatificamente e não respondi imediatamente.

- Mas diz-me – Parecia aterrorizado - aconteceu alguma coisa? Diz-me!

Mas eu continuei com o meu ar feliz…

- Não te lembras? Não me digas que não te lembras de nada… - respondi maldosamente.
Ele desesperou

- És igual a todas! Pensei que eras diferente! Aproveitaste-te de mim!  Não tinhas esse direito! -E saiu porta fora, com a roupa amarrotada e os óculos tortos encavalitados no nariz, e quase posso assegurar que tinha remelas e restos de baba nos cantos da boca. E eu nem me tinha aproveitado de nada, mas ele parecia uma virgem ofendida!

Fui à consulta, tive que fazer dilatação em ambos os olhos, e isso resultou numa tortura quando saí à rua sob o sol incandescente do meio-dia. Estava como cega e a luz fazia doer imenso. Senti medo, não conseguia orientar-me.

A minha intenção era, logo depois da consulta, dirigir-me ao terminal rodoviário e regressar a casa, mas em vez disso, apanhei um táxi e dirigi-me ao hotel. Eu sabia que estava reservado por dois dias, embora eu só precisasse de uma noite. Estendi-me na cama e decidi esperar até que o efeito do dilatador passasse a minha visão voltasse ao normal.

Ainda estava no meu descanso quando senti a porta do quarto abrir-se, levantei-me logo, pronta a dar explicações, só podia ser M. E era. Mas não vinha só, acompanhava-o um jovem moreno com ar de morador de rua. Olharam para mim, olharam um para o outro e, desorientados, escapuliram-se corredor fora.

Eu agora já via melhor, e não era só dos olhos…

Saí daquele lugar e corri pelas ruas até chegar ao piano-bar. Por sorte estava lá o espanholito. Quando me viu chegar aproximou-se de mim e sentámo-nos os dois a conversar.

- Já percebeste o que aconteceu com o M, estou a ver… olha, aquela cena de ontem foi por minha causa. Nós tivemos um caso, eu era muito jovem, tinha catorze anos e muita curiosidade, ele não me deixava em paz. Enfim… coisas da adolescência, ao menos para mim. Mas para ele foi um caso sério: apaixonou-se. Não havia maneira de o afastar, e eu não queria que a minha família e amigos percebessem, sabes como é… Depois encontrei uma miúda por quem me apaixonei e ele não suportou.

Foi embora para Portugal, julgo que na tentativa de me esquecer. Agora que regressou tem-me rondado outra vez, todas as noites aparece cá, com ar de cão abandonado. Suplica… Ontem não te deste conta, mas eu disse-lhe algumas palavras, disse-lhe que me esquecesse porque vou casar em breve com a mulher que amo. Daí a figura que ele fez …

Admirei aquele rapaz que se abriu comigo com confiança, que falou de coisas tão íntimas que eram tabus para a época. Nos anos 80 pouco se falava de homossexualidade, nem se aceitava com a mesma naturalidade de hoje.

Foi tão querido que me levou até a estação das camionetas e me fez companhia até sair no autocarro. Durante a viajem muito pensei no assunto. Afinal, que parvoíce tinha sido a minha?

Como me apaixonei assim? Vendo bem, ele nem era tão interessante… era escuro esverdeado, magro como um pau de virar tripas, usava uns óculos que mais pareciam o fundo de uma garrafa, o nariz parecia o bico de uma águia… sou mesmo palerma!

Mas o que não lhe perdoo foi ter-me enganado, descobri que os poemas dele não eram dele, eram apenas alguns versos da canção de José Cid, na Cabana Junto à Praia…eu devia ter percebido, pois na minha praia há canaviais, mas não há dunas, apenas calhaus.

Que idiota que eu fui!  Esse dia jurei nunca mais me apaixonar por um gay!


Maria Cecília

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