sábado, 27 de junho de 2020

O SÓTÃO, de Fernando Teixeira















Entrou, accionou o interruptor de uma lâmpada mortiça e, inexplicavelmente, porque vivia sozinho, fechou a porta à chave pelo interior. Talvez esse gesto, mecânico ou pensado, só ele o poderia dizer, fosse indicativo daquilo que se propunha fazer naquele espaço da casa que fora o seu local de trabalho, mas também de lazer, durante décadas. Como se o rodar da chave, na fechadura da porta, criasse uma barreira de que necessitava para se sentir protegido de olhares invisíveis, isolando-o de censuras ocultas.
À medida que os anos lhe atravessavam a velhice e lhe pesavam nas pernas, cada vez mais evitava subir as escadas de acesso ao sótão, tanto assim que, providencialmente, mudara alguns livros para a salinha térrea, literatura que o ajudava a consumir o tempo quando a meteorologia não lhe permitia dar pequenos passeios pelas ruas empedradas da aldeia, sempre com o propósito de encontrar alguns conterrâneos para dois dedos de conversa.
Abriu as portadas de uma janela, depois as de outra oposta, permitindo que o espaço se inundasse de luz diurna e revelasse melhor duas paredes revestidas de estantes corridas, com tudo o que permanecia ali: obras literárias, revistas antigas, livros técnicos, sebentas, dossiers cheios de legislação e regulamentos, esboços, apontamentos, projectos e trabalhos realizados ao longo de uma vida profissional. Memórias…
Apagou a lâmpada incandescente e, por alguns momentos, deixou-se ficar estático no meio do sótão, olhando uma e outra estante, submergido pela visão de dezenas e dezenas de volumes, uma enorme quantidade de papel, parte dele amarelecido pelo tempo e pelo pó, sem saber muito bem por onde começar. Como se o seu corpo franzino ganhasse outro peso sobre o chão de tábuas corridas, dificultando-lhe o primeiro passo.
Desviou o olhar para uma secretária de madeira escura, num canto junto a uma das janelas, ainda com algumas canetas e utensílios de escritório, ali esquecidos. Com um leve sorriso, apenas um esgar de recordação, lembrou-se de uma vez em que uma das suas namoradas, por sinal uma das mais bonitas e meigas, também algo atrevidota, e como ele gostava disso, se sentara de saia plissada no bordo do tampo e o puxara para si. O que se seguira, não o esquecera nunca, emergia quando ali ia, embora o tempo se tivesse encarregado de tornar esse momento de êxtase numa aguarela esbatida.
A recordação teve o condão de o incentivar. Tinha dedicado essa manhã para iniciar a tarefa a que se propunha, continuá-la-ia durante a tarde e, sabia-o bem, iria necessitar de outras manhãs e tardes para a concluir. Mas a idade ensinara-o a fazer as coisas sem pressa.
Decidiu deixar o que lhe parecia mais fácil para o fim. Reservaria alguns livros de literatura para oferecer à Biblioteca da Junta de Freguesia, inaugurada dois anos antes. Conservaria consigo aqueles que mais estimava, alguns romances “clássicos” e outros que lera mais do que uma vez, ou que tinham algum significado especial para si.
A parte complicada da arrumação era seleccionar o que descartar nesta fase da sua vida. O que já não interessava, aquilo em que nunca mais iria mexer, tudo o que só estava ali para ganhar pó e poder ser atacado pelo bicho do papel, o chamado “peixinho prata”, como é que alguém poderia apelidar simpaticamente aquilo de peixinho?
Hesitante, foi tirando um ou outro livro técnico, um ou outro dossier, abrindo e folheando, pondo de lado, separando em montes na secretária, aqui e ali pelo chão, rasgando folhas então inúteis para o lixo. Em cada gesto, porém, a sensação de que era um pedaço de si que se separava, uma parcela do seu passado, uma parte da sua história a ser rasgada ao ritmo das folhas, a ser posta de lado, apagada da sua vida.
Contudo, alguns dossiers e vários livros irão voltar do chão e da secretária para as estantes, pois desfazer-se disso, mesmo sabendo que deles nunca mais irá precisar, e por muita coragem que possa ter, cortar esse cordão umbilical com a vida passada seria morrer antes do tempo.

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

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