sexta-feira, 8 de setembro de 2017

OPINIÃO | Prazeres Gastronómicos | MARGARIDA VERÍSSIMO

“Mãe, e aquele chocolate?! Humm, tão bom, era como se estivéssemos a comer um pedaço de céu!” Recordava a minha filha com prazer estampado no rosto.

Podemos banquetear-nos com uma faustosa refeição digna de agradar aos mais exigentes deuses, no entanto, pequenos e simples prazeres fortuitos, são por vezes aqueles que mais se entranham na nossa memória gastronómica. É a especificidade e a pureza de um determinado sabor ou conjunto de sabores que nos elevam a um estado de prazer e felicidade incomparável e que recordaremos para sempre.

Nunca mais esqueci o prazer que senti há cerca de 30 anos, quando numas férias de verão fui passar uns dias a casa dos avós de uma grande amiga, numa aldeia entre Mafra e o Oceano Atlântico. Como praticamente tudo nas aldeias, ali a comida é mais genuína… e saborosa. Fruto da terra e das mãos que a trabalham os alimentos ganham intensidade e pureza de paladar. Ainda hoje fico com água na boca só de recordar aquele pão, amassado pelas mãos da avó, acabado de cozer no forno a lenha da cozinha rústica, ainda a fumegar, a ser barrado com manteiga caseira, branquinha, também ela feita pela avó. A manteiga derretendo ao contacto com o pão quente e antes que arrefecesse, antes que o liquido leitoso gotejasse, o naco era tragado para puro deleite nosso. Bocado a bocado, envolvidas pelo aroma único de pão acabado de cozer, deixámo-nos levar num êxtase crescente de puro prazer.

Recordo umas amêijoas à Bulhão Pato que comi numa esplanada da Avenida Luísa Todi, em Setúbal. Por muitas amêijoas que volte a comer, estas recordo-as com brilho nos olhos e saliva na boca, pela sua frescura e pela maneira deliciosa como foram confecionadas, sem que os vários ingredientes e condimentos se sobrepusessem ao sabor intenso, fresco e carnudo do próprio bivalve. Também o robalo grelhado no carvão que saboreei ao pôr-do-sol na praia do Portinho da Arrábida ter-me-ia sabido a céu se não me tivesse sabido tão bem a mar. Tínhamos nadado, nós e o peixe, uma hora antes, no mesmo mar, naquele mar límpido e gelado, tão rico de vida.

Uma experiência gastronómica que me ficou irreversivelmente marcada, não só na memória, mas também nas papilas gustativas, foi o sacrifício que tive a comer uma sopa tunisina de tomate e harissa. A dita sopa foi confecionada em casa, por um tunisino, sem adaptações ao nosso paladar. Na altura não estava muito familiarizada com os sabores apimentados, nunca foi um ingrediente que se fizesse sentir nos cozinhados da minha mãe. Aquela sopa soube-me a fogo puro… o pouco que consegui sentir de sabor. A cada colherada que me esforçava por engolir a temperatura subia 10ºC. Deixei de sentir os lábios, a língua, o esófago, o estomago. Tudo era fogo, fiquei literalmente e completamente em combustão. No fim triunfei e fiquei apta e com direito a certificado de apreciadora de sabores picantes. Nunca mais deixei de utilizar piri-piri, pimentas, malaguetas e afins na confeção de refeições. Também da Tunísia recordo um delicioso, aromático e temperado vinho tinto bebido ao anoitecer, junto ao deserto, num quente dia de agosto.

Na minha memória gastronómica sucedem-se sabores numa riqueza de momentos gustativos: o sabor e o cheiro das batatas fritas que se comiam na praia na minha infância; as tostas barradas com manteiga em casa da minha avó; em setembro, no Alentejo, acordar com os raios de sol entre as folhas de uma figueira, após uma noite ao relento, e os beijos da manhã prolongarem-se nos lábios unidos pelo açúcar dos figos; o suco das amoras colhidas ao longo dos caminhos; as maçãs mornas apanhadas numa tarde de verão e trincadas à sombra da macieira; o pudim de ovos da minha mãe ao almoço de domingo; o bacalhau espiritual em casa de uma amiga; o café único, cremoso, feito pelo papá Speciale em Fabriano; o caril de gambas do meu marido…



    Margarida Veríssimo

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