“Mãe, e aquele chocolate?! Humm, tão bom, era como
se estivéssemos a comer um pedaço de céu!” Recordava a minha filha com prazer
estampado no rosto.
Podemos banquetear-nos com uma faustosa refeição
digna de agradar aos mais exigentes deuses, no entanto, pequenos e simples prazeres
fortuitos, são por vezes aqueles que mais se entranham na nossa memória
gastronómica. É a especificidade e a pureza de um determinado sabor ou conjunto
de sabores que nos elevam a um estado de prazer e felicidade incomparável e que
recordaremos para sempre.
Nunca mais esqueci o prazer que senti há cerca de
30 anos, quando numas férias de verão fui passar uns dias a casa dos avós de
uma grande amiga, numa aldeia entre Mafra e o Oceano Atlântico. Como
praticamente tudo nas aldeias, ali a comida é mais genuína… e saborosa. Fruto
da terra e das mãos que a trabalham os alimentos ganham intensidade e pureza de
paladar. Ainda hoje fico com água na boca só de recordar aquele pão, amassado
pelas mãos da avó, acabado de cozer no forno a lenha da cozinha rústica, ainda
a fumegar, a ser barrado com manteiga caseira, branquinha, também ela feita
pela avó. A manteiga derretendo ao contacto com o pão quente e antes que
arrefecesse, antes que o liquido leitoso gotejasse, o naco era tragado para
puro deleite nosso. Bocado a bocado, envolvidas pelo aroma único de pão acabado
de cozer, deixámo-nos levar num êxtase crescente de puro prazer.
Recordo umas amêijoas à Bulhão Pato que comi numa
esplanada da Avenida Luísa Todi, em Setúbal. Por muitas amêijoas que volte a
comer, estas recordo-as com brilho nos olhos e saliva na boca, pela sua
frescura e pela maneira deliciosa como foram confecionadas, sem que os vários
ingredientes e condimentos se sobrepusessem ao sabor intenso, fresco e carnudo
do próprio bivalve. Também o robalo grelhado no carvão que saboreei ao
pôr-do-sol na praia do Portinho da Arrábida ter-me-ia sabido a céu se não me
tivesse sabido tão bem a mar. Tínhamos nadado, nós e o peixe, uma hora antes,
no mesmo mar, naquele mar límpido e gelado, tão rico de vida.
Uma experiência gastronómica que me ficou irreversivelmente
marcada, não só na memória, mas também nas papilas gustativas, foi o sacrifício
que tive a comer uma sopa tunisina de tomate e harissa. A dita sopa foi
confecionada em casa, por um tunisino, sem adaptações ao nosso paladar. Na
altura não estava muito familiarizada com os sabores apimentados, nunca foi um
ingrediente que se fizesse sentir nos cozinhados da minha mãe. Aquela sopa
soube-me a fogo puro… o pouco que consegui sentir de sabor. A cada colherada
que me esforçava por engolir a temperatura subia 10ºC. Deixei de sentir os
lábios, a língua, o esófago, o estomago. Tudo era fogo, fiquei literalmente e
completamente em combustão. No fim triunfei e fiquei apta e com direito a
certificado de apreciadora de sabores picantes. Nunca mais deixei de utilizar
piri-piri, pimentas, malaguetas e afins na confeção de refeições. Também da
Tunísia recordo um delicioso, aromático e temperado vinho tinto bebido ao
anoitecer, junto ao deserto, num quente dia de agosto.
Na minha memória gastronómica sucedem-se sabores numa
riqueza de momentos gustativos: o sabor e o cheiro das batatas fritas que se
comiam na praia na minha infância; as tostas barradas com manteiga em casa da
minha avó; em setembro, no Alentejo, acordar com os raios de sol entre as
folhas de uma figueira, após uma noite ao relento, e os beijos da manhã
prolongarem-se nos lábios unidos pelo açúcar dos figos; o suco das amoras
colhidas ao longo dos caminhos; as maçãs mornas apanhadas numa tarde de verão e
trincadas à sombra da macieira; o pudim de ovos da minha mãe ao almoço de
domingo; o bacalhau espiritual em casa de uma amiga; o café único, cremoso,
feito pelo papá Speciale em Fabriano; o caril de gambas do meu marido…
Margarida Veríssimo
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