A chuva forte fustigava os vidros das janelas,
anunciando a chegada do visitante indesejável que tentaria forçar a caixilharia
para entrar rebelde. Detestava vento forte. Fazia-a sempre lembrar-se de
tornados, nem sabia bem porquê.
A fraca luminosidade reflectida pelo céu cor de
chumbo fê-la acender o candeeiro do toucador. Emocionalmente estava tão
cinzenta quanto a pintura da natureza e transpirava impaciência e
incompreensão. Sentia-se miserável, zangada com o mundo, toldada pelo turbilhão
de emoções que barravam a entrada à razão.
O que é que iria fazer agora? Perder o emprego e o
namorado no mesmo dia não estava nos seus planos nem era fácil de digerir. A
sensação de perda, de solidão e de pena de si própria eram avassaladoras. Era
uma contradição viver tão rodeada de pessoas e tão só. Os prédios eram cada vez
mais imponentes na paisagem mas os seus ocupantes conheciam-se cada vez menos.
Falavam e interagiam cada vez menos. Preocupavam-se cada vez menos.
Lembrou-se das muitas vezes em que tinha reparado
naqueles que atravessavam as passadeiras arrastando os pés, de pescoço curvado
para o ecrã do telemóvel, indiferentes a quem os olhava por detrás do
pára-brisas, completamente alheados do que os rodeava. Também havia os que
calcorreavam as ruas sempre em passo apressado, no mesmo trajecto diário de ida
e de volta, sem se deterem um segundo que fosse para olharem para o lado para
apreciarem um qualquer pormenor dos muitos que a envolvência oferecia.
Recordou-se do espanto que tinha experimentado quando uma colega de trabalho
lhe dissera que, apesar de não morar na cidade, trabalhava ali há cerca de
vinte anos mas não conhecia mais que o café em frente e o pequeno restaurante
da esquina.
Era triste. Muito triste. A cidade era igual e
diferente todos os dias. Estava viva, pulsava em constante transformação, mas
as pessoas apenas a usavam. Não a viviam.
Não queria ser assim. Alguém que se arrastava pela
vida, vazia de sensações.
Talvez esta fosse a oportunidade para tentar a
área profissional com que sempre sonhara. Talvez esta fosse a oportunidade para
ser ela própria.
Encarou-se no espelho à sua frente e sorriu pela
primeira vez naquele dia. Alcançou o batom que tinha comprado na semana
anterior e tingiu os generosos lábios de vermelho.
Agarrou na mala e no guarda-chuva e saiu de casa,
com o espírito apaziguado e a certeza de que a forma como decidisse olhar para
as coisas faria uma enorme diferença em si e no mundo.
Era tudo uma questão de escolha.
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