quinta-feira, 14 de novembro de 2019

NOCTURNO ARCO-ÍRIS: A CAMA DA BÁRBARA, de Helder Menor















Foi nesta cama Alfredo. Foi nesta cama.

Assim falou a Bárbara na hora da sua morte. Não se confessou ao padre. Confessou-se ao marido, também ele octogenário, mas mais rijo e saudável que a mulher, de quem em breve ficaria viúvo.

A Bárbara, que antes de ser a Dona Bárbara que a vizinha conhecia de ver arrastar os pés a caminho da padaria e do lugar da fruta, foi a Bárbara boazona que nos anos cinquenta fazia virar a cabeça dos rapazes e homens hipnotizados com o seu abanar de ancas...

Pois a Bárbara, antes de morrer, disse ao marido que o tinha traído. Disse que tinha sido só uma vez. Uma coisa sem importância, que tinha sido com o cunhado Dinis, marido da irmã, ex-jogador da CUF e falecido há muito, no início dos anos oitenta num acidente de automóvel em Águas de Moura. Disse que tinha sido naquela mesma cama onde agonizava e esperava a morte. Depois não disse mais nada. Adormeceu de cansaço e emoção e morreu.

O velho Alfredo ficou sem saber o que sentir: se raiva da mulher morta, se raiva do cunhado morto. Indeciso, ficou com pena dele próprio e chorou uns cornos de mais de quarenta anos. A neta ao vê-lo chorar assim, comentou com o marido que amores daqueles já não se viam e deu ao avô um calmante.

Depois veio o resto da família, mais o agente funerário e um médico com papéis. O Alfredo completamente pedrado do comprimido. A filha preparou-lhe o banho e arranjou-lhe um fato para vestir, pôs a gravata preta dos funerais e recebeu os pêsames de familiares e vizinhos com a alma encortiçada e a raiva dos cornos recentes com mais de quarenta anos a roer-lhe. A raiva misturada com o remorso de sentir raiva à morta e ao cunhado igualmente morto.

O velório e o funeral passaram como um sonho. Nos três dias seguintes ficou em casa da filha. Depois, ao terceiro dia, voltou para casa. Não queria ser um peso para a filha. A cozinha ainda tinha os caixotes de medicamentos da Bárbara. Nos armários a roupa dele, toda a imensa área ocupada pela roupa da Bárbara era um buraco vazio. A filha e a neta, a neta que por acaso também se chamava Bárbara, decidiram tirar a roupa da mãe e avó do armário, para lhe evitarem mais sofrimento. Não lhe evitaram o choque do armário vazio.

Sentou-se na cama de viúvo a chorar.

Mas a memória foi um alfinete que o fez saltar.

Foi nesta cama Alfredo, disse a mulher morta na sua cabeça.

Com raiva, desfez a cama. Arrancou os lençóis e os cobertores carinhosamente montados pelas mãos da neta e da filha, para lhe aconchegarem as primeiras noites de viuvez. Pegou no colchão da cama de casal com uma força surpreendente para os seus oitenta e seis anos e arrastou-o até às escadas e das escadas até à porta da rua. Sentou-se a descansar das pernas e braços e a recuperar o ar dos pulmões. Não descansou da raiva. Voltou a pegar no colchão e arrastou-o até à parede ao lado do contentor do lixo onde ficou. Devagar voltou para casa e com persistência, um martelo velho e uma chave de parafusos torna, desmontou as tábuas da cama. Uma a uma levou tudo para junto do colchão, e deixou a cama desfeita empilhada entre o colchão e o contentor.

Nessa noite dormiu na sala tapado com os cobertores.

Na manhã seguinte, a filha antes de entrar, viu e reconheceu a cama junto ao contentor. Achou que percebeu e concluiu que o pai não quis ficar com a cama onde morrera o amor de toda uma vida.

Entrou e não fez perguntas. Enquanto o pai tomava banho, fez a cama que estava no seu quarto de solteira com os lençóis que tinha posto lavados na véspera.

-        O paizinho agora, se calhar fica melhor neste quarto que era meu....

O Alfredo concordou e não se voltou a falar da cama.

O colchão ficou ainda dois dias a apanhar chuva miudinha encostado ao contentor, mas a cama foi recolhida por uma senhora divorciada que trabalhava nas finanças, que gostava de recuperar móveis antigos e que papava todos os programas de antiguidades nos canais temáticos.

O Alfredo viveu mais três anos. Estava a dormir e não deu por ela chegar. Morreu a três meses de fazer noventa. Morreu amargurado e de tristeza, não da viuvez, mas dos cornos daquela traição com o cunhado.

Foi naquela casa onde morreram os dois, que cinquenta e três anos antes a coisa descambou. O Alfredo tinha chegado de manhã, seriam uma dez horas, porque ficou a trabalhar a noite toda. A Bárbara foi a limpar o casaco do marido e encontrou no bolso esquerdo uma fatura de um jantar. Um frango, uma garrafa de vinho verde e pão, no Bonjardim. Não comeram sobremesa. Percebeu que o serão que o Alfredo disse que ficou a fazer no trabalho era uma mentira que cheirava a puta. Zangou-se, calou-se, arranjou-se, deixou a filha com o pai e saiu para ir a casa da irmã desabafar.

A irmã era três anos mais nova e igualmente bonita. Foi entrando sem bater, sabia que o cunhado não estava, que tinha tido jogo lá para o norte. A irmã tinha acabado de se levantar. Não tinham filhos. Estava a fazer café. A Bárbara cumprimentou a irmã e não teve tempo para dizer mais nada, uma cólica daquelas urgentes e motivadas pelos nervos, empurrou-a para a casa de banho.

Sentou-se na sanita e viu. A saia e a blusa nova da irmã. Roupa de sair no chão para lavar ao lado do cesto. Pegou na blusa vermelha e cheirou. Tinha agarrado o cheiro da irmã, do perfume dela, cheirava a frangos e ao seu Alfredo. Percebeu tudo. A confirmar, no bolso do casaco de sair o bilhete do barco das nove da manhã. A Bárbara defecou e chorou simultaneamente.

Depois, lavou a cara e saiu sorridente da casa de banho.

-        Então mana, o que fizeste ontem à noite?

-        Olha tive pr’aí sozinha, ouvi o folhetim da rádio e agarrei-me à costura!

-        Podias ter ido lá a casa, o Alfredo ficou a fazer serão e só chegou hoje de manhã...

A irmã, nem truz nem muz...

E assim ficaram.

Mas a Bárbara jurou vingança. Disfarçou, saiu com a desculpa que tinha de ir às compras e ficou a pensar.

Não ia deitar-se com o Dinis. Não lhe chegava pagar na mesma moeda. Teria de ficar por cima. Não se importava de esperar o tempo que fosse preciso, mas ia devolver aquela dor. Frango e pensão e Lisboa... Se calhar até foram ver uma revista ao Parque Mayer. E ela que gostava tanto daquele frango assado com batas fritas e esparregado...

Passaram-se vinte anos. A Bárbara calada. O cunhado morreu sem avisar naquele desastre de automóvel em Águas de Moura. No velório do cunhado, a Bárbara aplicou metade da vingança. Foi ter com a irmã e disse-lhe:

- Mana, tenho de te contar uma coisa, eu e o teu Dinis tivemos um caso, foi há muitos anos, mas envolvemo-nos... Por favor perdoa-me.

A irmã, abriu muito os olhos. Chorosa e abraçou-a. No choque da morte do marido aquela traição doeu-lhe ainda mais. Mas nunca tocou no assunto. Continuaram irmãs e amigas. Mas a Bárbara sabia que a farpa que espetou com vinte anos de atraso tinha batido fundo e doía no peito da irmã. Gostava que fosse assim mesmo! Doía tanto e ainda mais porque era um assunto que ficou calado entre as duas. Doía ainda mais porque foi uma pancada batida num momento de grande fragilidade.

Esta está tratada, decidiu a Bárbara.

Agora era esperar pelo momento do Alfredo.

O Alfredo que nunca mais dormiu com a cunhada. Uma pena para ambos. Aquilo foi uma vez sem exemplo, foram ver uma revista, jantaram frango e ficaram numa pensão na Baixa. Fizeram amor por desfastio e para combater o tédio dos dias. Não voltou a acontecer porque ambos se sentiam culpados.

A Bárbara continuou à espera pelo momento certo para devolver ao marido aquela noite de revista no Parque Mayer e aquele frango com batatas fritas e esparregado. Esperava pelo momento de o ver doente, a morrer... para lhe dar a novidade dos cornos na cabeça.

Mas o Alfredo, tinha uma saúde de ferro e o destino quis levá-la antes dele. E ela à espera... Sempre à espera. Esperou até à hora da morte, porque não podia esperar mais.

Mas antes de morrer, zonza da medicação e cansada da doença que a matava, a Bárbara serviu ao marido na cama, a vingança por que esperou cinquenta anos. Foi a indigesta sobremesa do frango familiar e da revista do Parque Mayer.

Ele há mulheres capazes de tudo.


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