quinta-feira, 21 de novembro de 2019

DE ONDE NUNCA SAÍ - GANAS DE TI, de Helder Menor















Quando te vi pela primeira vez, estava com frio e febre. A desejar chão firme para pisar, um banho quente, roupa confortável e uma manta. Foi no inverno e chovia. Olhei-te de relance através do vidro embaciado da janela fechada do táxi onde seguia. Confesso que mal reparei em ti. Vi-te escura e mal iluminada debaixo dos candeeiros escassos e gostei. Mas só isso. Nessa noite estava demasiado focado no meu mal-estar para te olhar. Tinha vintes e tais e achava que estava definitivamente imunizado às crises de paixões súbitas e ainda mais ao amor crónico. Estava enganado, claro.

No dia seguinte fiquei de cama. Febre alta em clima tropical que me fez delirar. De ti senti apenas o perfume que entrava pela porta do quarto e vislumbrei-te na luz coada pela janela. Comi o que tinha na mochila e bebi chá. Voltou a chover à noite.

Não esperei pelo terceiro dia para me levantar e caminhar. Na manhã seguinte, tomei o duche possível com uma caneca e água aquecida num fogão cheio de fugas. Mudei de roupa, saí e encontrámo-nos definitivamente. Nunca mais nos separámos.

Nunca mais saíste de mim. E eu ficarei em ti enquanto viver.

Naquela manhã, combalido, fui aos meus compromissos, ainda febril. Alguém me disse que tinha de me tratar e ser visto por um médico. Fui ao teu hospital e fizeram-me uma bateria de exames. Diagnosticaram-me escarlatina. Tinha trazido a doença do meu filho que entre abraços e beijos de despedida me contagiou, o rapaz teria uns dois anos.

O médico, espantado perguntou:
– Mas a escarlatina não está erradicada na Europa?
– Pelos vistos não! Respondi insolente.

Para se vingar deu-me ele mesmo uma injeção que doeu horrores, mas que me curou. Fui à farmácia e, com a receita manuscrita, deram-me precisamente seis comprimidos, contados com uma pinça para dentro de um frasco de vidro. Aqueles que precisava para me tratar, nem mais um. Estamos em período especial, desperdício zero, disse-me o farmacêutico. Depois pediu-me para voltar a devolver o frasco, coisa que não fiz e por isso ainda hoje o devo ter para aí metido nalguma caixa com recordações avulsas, entre recordações de ti.

Viste-me a coxear agarrado ao rabo dorido e riste-te de mim, para mim. Disfarcei a dor e mantive a dignidade num caminhar mais lento. Depois seguimos juntos pelas tuas ruas. Lentamente e gingando, ao meu ritmo convalescente, que é o teu ritmo de sempre, sem pressa.

O amor aconteceu-me inevitável. Claro que me apaixonei por ti. A cor morena, o riso fácil e todas essas tuas curvas. O efeito luminoso que fazes deitada recostada no mar. O teu riso de portas escancaradas, a música com que falas e todas as cores que usas. A tua descontraída disponibilidade e esse eterno convite nos olhares. A sensualidade intensa que noutras seria decadente e vulgar, mas que em ti são absolutamente perfeitas. Apaixonei-me pela tua cultura sem pedantismos e pela tua dimensão imensa e concentrada. Pelo o teu canto, pelo teu encanto e, naturalmente, por todos os teus secretos recantos.

Ficámos desde esse remoto inverno do século passado, irremediavelmente juntos.

Eu estava alojado numa casa afastada do centro, já depois da Mariana De Hemingway, porque amigos de amigos conheciam a dona e facilitaram o aluguer. Em frente à porta de entrada, uma estrada de terra batida. Do outro lado da estrada uma casa mortuária onde os familiares e amigos se despediam e velavam os falecidos. Como os mortos em Cuba não são velados nas igrejas, chegavam os corpos dos hospitais ou das casas onde foram vivos diretamente para a casa mortuária. Nos fios elétricos por cima, às vezes multidões de pássaros pretos com a cabeça e o pescoço vermelho, outras vezes os fios vazios de pássaros. Eram abutres. Auras, esclareceste na tua voz cantada e rindo para mim. Percebi que vinham em bando sempre que havia corpos para velar.

Demasiado tétrico para mim. E para ti também, tu sempre tão alegre, a morte e os abutres não condiziam com o teu sorriso de luz e com as cores com que te vestes e despes.

Mudei-me para mais perto. Um apartamento no centro, perto da Plaza de La Revolución. Debruçado da varanda via-se o icónico mural do Ché. Era um apartamento pequeno: um quarto, uma sala, uma varanda imensa, uma cozinha minúscula e uma casa de banho igualmente pequena. Dava e sobrava para nós. Também era de um amigo de um amigo. Médico e celibatário prestes a partir naqueles dias em missão para o Congo. Subalugou-me a casa na condição de não usar o quarto nem a cama que eram dele e só dele. Devia dormir no sofá da sala, não estragar nada, dar de comida ao papagaio que se chamava Lukumi, cumprimentar as vizinhas, não fazer festas ruidosas, nem tocar na coleção de máscaras africanas nem nas garrafas de rum.

Cumpri quase na totalidade o acordado.

Ao fim da tarde voltava, tomava banho e ia para a minha casa que era aquela sala forrada de livros e máscaras africanas. Em vez de me sentar na cadeira de baloiço a desfrutar da biblioteca aberta só para mim, era para ti que eu corria. Tomava banho no chuveiro elétrico, ouvia a tua voz pela varanda aberta, dava de comer ao Lukumi e voava ao teu encontro.

Não cumpri o que me propus quando entrei no apartamento do médico: não desfrutei dos livros nem consegui ensinar o papagaio a dizer "Barreirense". Li transversalmente uma coletânea de poesia latino-americana. O Lukumi, quando me vim embora, de vez em quando dizia "foda-se", expressão que não me lembro de lhe ter ensinado.

Tu ficavas à minha espera na porta da rua, depois vinhas e mostravas-me a natureza de todas as tuas coisas. Prosseguimos nas tuas noites mornas e longas, contigo a contares-me segredos e a plantares em mim todos os afetos. O teu cheiro, a tua música, o teu hálito doce perfumado de rum ficarão sempre comigo. A tua temperatura e toda essa disponibilidade para ser feliz nas coisas simples que me habituaram mal. Aprendi a nomear o universo, no teu sotaque nasalado e melado.

Comi e dormi em ti por semanas consecutivas sem me fartar nem um bocadinho.

Quando tinha de me afastar, apanhava os transportes possíveis naquele período especial e regressava depressa. Voltava sempre todas as noites para o doce de ti nas tuas ruas.

Nesse período de intensa paixão, pela primeira vez, senti vontade de largar tudo e de me juntar a ti. De vir a Portugal buscar meia dúzia de coisas e ficar contigo. Ou nem sequer vir. Por magia teletransportar os meus e ficarmos todos juntos.

Os grandes amores são assim, insensatos e loucos.

O tempo voou enquanto estivemos juntos, depois tive de voltar e estranhei-te.

Passaram muitas luas sobre o Atlântico que nos separa até eu poder regressar a ti.

E quando voltei, lá estavas à minha espera à porta do avião, a sorrir disponível no teu doce perfume de fruta, rum e tabaco.

Depois foi sempre assim de todas as vezes que voltei.

E cada vez que tenho de sair de ti, sempre que tenho de vir embora, dói-me. Dói sempre sair de ti.

Não posso nunca dizer que sou teu, porque não sou. Nasci e cresci noutras latitudes Não posso por isso dizer que sou teu. Mas a verdade é que não minto se disser sobre ti ao mundo que tu és minha. 
Que continuarás a ser minha sempre.

Porque um caso destes de amor, não acontece duas vezes numa mesma vida.

Se pudesse voltava agora mesmo, porque de ti nunca saí.

Parabéns meu amor. Parabéns Havana, estás a fazer quinhentos anos e nas fotografias que me vão chegando, a cada maré que te sobe pelo Malecon, estás cada vez mais e mais bonita. Mais linda que nunca. Ganas de ti mi amol!

TQMLH.

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