quarta-feira, 27 de novembro de 2019

HA MOCE MARAFADE!, de MBarreto Condado















Esperava calmamente na estação dos caminhos de ferro em Entrecampos pelo Alfa Pendular que me levaria até à cidade de Faro. Avançava para o sul com o intuito de conquistar corações em terras de temperaturas inóspitas e gentes corajosas.

Foi uma viagem como sempre muito agradável, ar condicionado, serviço a bordo tudo o que necessitava antes de enfrentar o calor seco a sul.

“Próxima paragem Faro”

Acordava com uma calorosa voz a dar-me as boas-vindas a uma cidade que conheço tão bem. Contudo, quando o comboio parou e a porta se abriu fui recebida por um bafo que instantaneamente me fez lembrar Dante e o seu “vestíbulo do inferno”, também eu me encontrava como aquelas pobres almas, indecisa, porém ficar dentro da carruagem com o ar condicionado naquele momento deixara de ser uma opção.

“Atão moce, na t’espachas?”

A voz impaciente do senhor atrás de mim que queria ir à sua vida vez, fez com que me virasse para o encarar. Será que não conseguia perceber o meu dilema naquele momento?

“Está muito calor, estou a tentar ganhar coragem” – sorri-lhe

“Meceia tén calor? Iste né nada miga”

“Óme, pra quê tamanh’ademora”

Lá fora esperava-o uma mulher a olhar-nos curiosa, afastei-me para que o senhor passasse, sempre ganhava uns preciosos segundos.

O senhor ainda se virou para se despedir de mim.

“Adés moça, pr’ond’é que vás?”

“Vou para a ilha”

“A caminéte é já além” – apontou na direcção da minha já tão conhecida paragem da Eva, onde deixei e fui buscar muitos amigos que durante anos passaram férias comigo na casa da ilha.

A maneira como aquele homem falara relembrou-me do diversificado léxico algarvio.

“Obrigada!”- sorri e ganhei a coragem que não tinha para sair daquele pedaço de paraíso onde me encontrara nas últimas horas.

Sentia o sol queimar-me.

Caminhei até à doca procurando as sombras, o mesmo local onde tantas vezes atracámos os nossos barcos todos eles com nomes inesquecíveis: o “Hupylas”, o “Hukarassas”, o “Kesselyxe” e o último e mais potente “Kesselyxethudo”. Tinha muitas boas lembranças de toda a minha infância e adolescência e continuava a criar novas memórias sempre que o tempo me permitia usufruir da casa da ilha.

Tirara a primeira selfie para aborrecer os amigos que sabiam estar a trabalhar àquelas horas, ainda dentro do comboio enquanto usufruía de um chá de camomila e lia a última crónica de António Lobo Antunes na revista Visão, também ela um regresso às suas origens onde dividia o quarto com o seu irmão João.

A minha segunda foto já mostrava um pouco do meu ar e de como me começava a sentir debaixo daquele calor abrasador, não corria uma única aragem. Mostrava-me através das redes sociais em todo o meu esplendor, despenteada, sequiosa, encalorada e esfomeada ou como se diz cá e baixo: “o mé cabele tava cá d’um jête, sentia-me descabide com us olhes desbugalhades, estava cum muta fome tava na hora da bucha. já só queria quemer, e naquele momente até podiam ser alcagoitas, minduins, pitaxios, sarvejas geladinhas ou até mesme auga. Sentia-me marafade”. Infelizmente não podemos ser todas a Sara Sampaio (para grande infelicidade minha).

Não me vou alongar mais, antes que me gritem desse lado “Ah moça maldeçoade, tira-te já daqui pra qu’é na te veja na minha frente!” posso somente dizer-vos que o ponto alto da minha manhã seguinte foi tomar o pequeno-almoço (ou como se diz aqui em baixo o “quebra-jejum”) na pastelaria Gardy, desde sempre local de eleição do meu pai e ainda consegui arranjar uns minutinhos para me despedir da sereia da doca (que me confirmou nesse dia ser prima da sereia de Copenhaga e da sereia de Varsóvia).

Qualquer coisa me chama a atenção e me faz sonhar, o facto de gostar de viajar nos transportes públicos dá-me muito material de escrita, inúmeras ideias, por exemplo, o facto de na minha carruagem não existir o lugar número 13, de um jovem casal apaixonado à beira mar com a particularidade dele ter uns óculos espelhados vermelhos e ela uns iguais mas verdes (mal comparado futebolisticamente uma relação promissora entre os grandes de Lisboa), dois idosos a passear com as suas bengalas com a singularidade de terem a borracha do fundo das bengalas mais gasta do que a própria sola dos sapatos, os autocarros de giro do Algarve terem escrito “otokar”, a maneira despreocupada como as pessoas se vestem ignorando a idade, corpos estendidos na areia tentando ganhar um pouco mais de cor apesar de alguns já se encontrarem cinzentos, os baloiços a mexerem-se sozinhos sem se sentir nenhuma aragem, os viveiros com alguns vultos mergulhando no seu lodo, os diversos pássaros que voam para local incerto no imenso e protegido estuário da bela ria Formosa, as desertas pelejadas de gaivotas (tenho quase a certeza que Hitchcock se inspirou nelas) até mesmo os “camones” semi-nús sempre de cerveja nas mãos . Na realidade sou influenciada por tudo o que me rodeia, todos com quem me cruzo venham da cidade, da praia ou até mesmo do monte serão certamente um dia motivo alvo da minha atenção. Pelo que fica aqui ainda tanto por dizer.

Regresso sempre com a nostalgia dos momentos que ficaram por viver.

E como se diz aqui em baixo ”Amódes q’iste é assim, é acardito, tenhe aportelência, arreata, na stou a baldear, tou-m’a barimbar, na tenhe caguifa, n’inveja, na gosto de mogas, de patochadas, na falejo, odeio bichaninhas, na consigo patiar. Prontes, adés tipe, táza ver? Cagande e andande”.



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