quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

DE ONDE NUNCA SAÍ - VERDE BRASIL, de Helder Menor















Uma vez conheci a Vénus, estava ela de empregada de mesa. Foi numa tasca sujita em Salvador da Bahia. Um boteco que fica numa transversal à ladeira do Taboão. Sítio humilde de gente humilde, onde se come o que houver e se paga o possível. Boa comida em ambiente familiar.

Conheci a moça em contexto profissional. Ela em trabalho, eu na vadiagem mas com fome. Mas não se ponham a imaginar estórias de amor e romances canalhas. Nada disso. Nem tal me passou pela cabeça... até porque eu seguia absolutamente bem acompanhado com a mais bela de todas as belas filhas de Oxum que alguma vez pisaram o chão quente da terra brasileira.

Eu conto como foi:

Entrámos no tasco com vontade de comer, pés cansados, olhos deslumbrados e crónico défice de reais no bolso. Sabíamos ao que íamos, fomos indicados por quem sabia onde comer bem e barato. Procurámos por “pêéfi”. Para quem não sabe, PF são as iniciais de Prato Feito, que consiste numa refeição empratada para gosto e carteiras populares.

A empregada estava de trombas. Aquele ar carrancudo que algumas raparigas bonitas usam em permanência, proteção possível contra as doces cantadas de quem enfrenta o público com uma porta aberta. E se há cantadas doces a transbordar de melaço de cana de açúcar são os coros dos malandros da Bahia... por isso, não estranhámos o ar carrancudo da beldade.

Chegámos já tarde para almoçar e ainda cedo para lanchar. Mas como a fome não tem hora, entrámos.

Ela estava a limpar copos com um pano em cima do balcão. Quando lhe perguntei por “pêéfi” mal respondeu. Ou se respondeu, respondeu para dentro de si mesma.

Desapareceu por trás da cortina javarda que separava o balcão de madeira das sombras cheirosas da cozinha.

Tinha “pêéfi” sim. Sem mais palavras, voltou com dois pratos a transbordar. O “pêéfi” era carne seca de alguidar com arroz e feijão tropeiro. O feijão e o arroz servidos com generosidade, a carne cortada em pedaços pequeninos para render mais. A bebida era cerveja ou cola. Pedi Brama. Estava calor e o copo onde me serviram a geladinha devia estar roto.

Depressa tive de pedir outra.

Como não gosto de gritar “ópssete”, perguntei lhe o nome.

Ela esclareceu:

– É Vénus.

E era. Sorrimos para ela, eu e a minha companheira de viagem e de vida concordámos que o nome coincidia com a pessoa. A Vénus, para provar que o era, e vendo que eu só queria mesmo comer o “pêéfi”, desarmada de dureza, sorriu para nós um lindo sorriso de baiana.
A Vénus que conhecemos era, negra e grande. De ancas largas, peito relativamente pequeno e pose de deusa para não dar cunfia aos espertos. O amor é coisa bonita, mas não se serve ao balcão para acompanhar bejecas.

Conhecemos a Vénus em Salvador da Bahia muitos e muitos quilómetros depois de chegar ao Brasil, mas foi como se aquele sorriso tivesse qualquer coisa de boas-vindas.

Entrámos no Brasil num domingo ao amanhecer.

Vínhamos de Assunción e era ainda noite cerrada quando atravessámos o Rio Paraná.

Atrás, a mítica Ciudad de Leste, capital do contrabando e de todos os tráficos, à frente todo o Brasilão a começar ali na Foz de Iguaçu. Mais de metade de um continente e toda esta imensidão à nossa frente antes de chegar ao Atlântico.

Na fronteira falaram-nos em português pela primeira vez depois de semanas em castelhano de muitos e variados sotaques. Mesmo com aquela tensão de fronteira e os guardas armados, foi quase como se nos sentissemos em casa.

Uma hora depois da fronteira entre o verde da estrada, finalmente a chegada à central das camionetas. Na estação dos "ônibus" não havia nem “ônibus” nem autocarros. Nem bilheteiras, nem um quiosque aberto. Não estava niguém. Era domingo. Ninguém.

Para ajudar, começou a chover.

Entrámos no único táxi que ali estava parado. Acordámos o preço e seguimos viagem.

Em conversa de circunstância e porque continuava a chover perguntei:

- Tem chovido muito?

- Pensi em chuva!!! Pensi em chuva bem forti! Pois olhi qui aqui tem chovido mais ainda!

Rimos-nos os três. Estávamos apresentados e seguimos continente adentro.

Do lado de fora do carro, o verde. O imenso verde que veste o continente. Aquele verde que se espalha e cresce em cima de tudo e de todos.

Foram mais dois ou três dias de chuva e o verde a beber a água que caía.

Depois veio o sol. E que sol. E o verde a absorver a luz que fazia.

Entre todo aquele verde seguimos viagem. Para norte e para leste.

Passámos por estados rurais, cidades grandes, cidades pequenas de província. Vales cultivados e selvas virgens, aldeias de boiadeiros e de pescadores. E o verde sempre lá.

Vimos cataratas, que no Brasil são cachoeiras, e dormimos em cabanas de madeira que deixavam passar o ensurdecedor som da selva densa e verde à nossa volta. Nadámos no mar quente e comemos na praia peixe frito, caranguejos, espetadas de queijo, sempre abrigados na sombra do verde que vai até à praia.

O Brasil será tudo aquilo que dizem dele. É tudo isso e muito mais. E, sobretudo, é verde em todos os tons de verde e em todos os sentidos da palavra.

É um imenso e lindo continente verde com duzentos milhões de pessoas a falar português.

Três coisas me impressionaram no Brasil:

Primeiro foi o verde. Aquele verde, verde verde. Verde que atá para mim que sou daltónico, nos entra pelos olhos adentro. Verde como não há outro igual. Verde feito de água e sol em quantidades brutais que permite aquela beleza gritante.

Depois foram as pessoas. Duzentos milhões de pessoas a fazerem pela vida como podem e como sabem. São motoristas, empregadas de limpeza, pedreiros, mecânicos, rececionistas, padeiros, canalizadores, bancários, serralheiros, assalariados agrícolas, polícias, talhantes, funcionários, cabeleireiras, ladrões, costureiras, cozinheiras e prostitutas... Uma imensa massa de gente humilde e trabalhadora, que tem essa secreta e preciosa qualidade de nas piores circustâncias encontrar a alegria necessária para sorrir e ir levando.

Também me impressionou bastante o sorriso da Vénus no boteco esconso de Salvador. Aquele sorriso luminoso e aberto no rosto negro da empregada é o sorriso da própria América Latina que espera ainda a sua vez.

Brasil sou gamado em você!

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