domingo, 5 de janeiro de 2020

A ESCOLA, de Maria Cecília Garcia

 


Para qualquer criança, a mudança de cidade, ou país, é sempre difícil. Uma das situações mais dolorosas é ter que encontrar novos amigos e enfrentar uma nova escola, o lugar onde encontrarão novas amizades. Mas os começos são mais difíceis quando encontram apenas rostos diferentes e indiferentes e uma língua desconhecida que dificulta a comunicação. Para esta criança de temperamento destemido, foi assim:
  
“A minha entrada na escola não foi um sucesso.
Era um grande edifício, inaugurado há pouco tempo pelo General que detinha o poder; tinha o nome de um caudilho índio: Guaicamacuto, que enfrentara até à morte os invasores espanhóis. Era uma escola pública com todas as condições para os alunos que a frequentavam desde o 1.º até ao 6.º ano, o que correspondia à educação primária. Intimidou-me um pouco, habituada como estava a um meio pequeno onde todas as pessoas se conheciam e onde a escola da aldeia tinha apenas uma sala de aula na qual se misturavam os alunos de quatro classes, e cujo ensino era ministrado por uma única professora.

Recém-chegada duma terra distante, pouco conhecia da nova língua, e as poucas palavras que me atrevia a pronunciar saiam de uma forma estranha e quase sempre inapropriada que me tornou alvo fácil da troça dos meus colegas, que se divertiam gozando do meu sotaque e da minha dificuldade em exprimir-me no seu idioma. Não me davam sossego, por vezes eram cruéis como sabem sê-lo as crianças.

Também me provocavam e criavam situações comprometedoras para mim. Em certa ocasião uma das cadeiras da sala, a que estava ao meu lado, apareceu com uma pata partida e quando a professora perguntou quem tinha causado tal estrago, alguns apontaram para mim. Fiquei muito corada sem conseguir pronunciar uma palavra e, desse modo, aceitei uma culpa que não era minha, e o meu pai foi chamado à escola para pagar o prejuízo. Nos dias seguintes, recusei-me voltar lá. Mas voltei, à força, ainda que por pouco tempo

Havia ainda outra razão para eu não querer ir para esta escola. Mary, a filha dos espanhóis que moraram no hotel, aquela que foi a minha primeira amiga naquele país, tinha um irmão a quem chamavam Pituco, embora o nome dele fosse Pedro. Ligeiramente mais velho do que eu, Pituco era baixinho e atarracado. Eu achava-o horroroso e antipático. De facto, comportava-se como um patife.Chocámos desde o primeiro dia! Ele não perdia a oportunidade de me provocar, dizia palavrões e obrigava-me a repetir, aproveitando a minha ignorância naquela linguagem, mas eu também gostava de o desafiar, repetindo as palavras que ele me ensinava, mas ele não gostava, a pesar de rir desbragadamente porque os meus palavrões não soavam igual. Eu tinha muita pena de que a minha amiga Mary tivesse um irmão assim tão mau.

Como Pituco e eu andávamos na mesma escola, fazíamos o mesmo percurso a pé até casa. Nessa época eu ainda tinha umas longas tranças que me chegavam até à cintura e, sempre que tinha oportunidade, o brutamontes divertia-se dando-me fortes puxões de cabelo enquanto ria a bandeiras despregadas. Mais do que uma vez me arrastou puxando por elas, rua abaixo, qual homem das cavernas!

Quando finalmente conseguia soltar-me corria loucamente até casa, onde chegava ofegante e achincalhada, congeminando mil maneiras terríveis de vingança, tão terríveis que nunca as cheguei a concretizar.  Nunca disse nada aos meus pais, pois ele ameaçava fazer-me coisas ainda piores se eu falasse!

Decidida a acabar com aquele sofrimento, peguei na tesoura da minha mãe e cortei a trança... Ao mesmo tempo desenhei uma franja de diferentes tamanhos que a minha mãe, em pânico, tentou remediar, sem grande sucesso, diga-se de passagem…

Poucos dias depois deste meu acto de coragem, foi realizado o baptismo do meu irmão. E é assim que apareço na foto de família, ao lado da minha mãe, meu pai e os padrinhos, de braços cruzados ao peito, com um lindo vestido bordado pela minha tia da aldeia, feito especialmente para ser usado esse dia, com o cabelo muito curto, uma franja irregular e minúscula e um misterioso sorriso de Mona Lisa no rosto...

In: História em Pedacinhos- As casas da minha infância e os tempos de chá sem açúcar.
Chiado Books-2016


A autora escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.




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