domingo, 26 de janeiro de 2020

ALMA ERRANTE, de Vanessa Lourenço















O grande gato preto tinha nascido na rua, num beco escuro a que nunca tinha verdadeiramente chamado lar. Nos primeiros meses de vida tinha deambulado por entre caixas de cartão, contentores ora cheios ora vazios, correndo para os recantos mais escuros daquele lugar sempre que seres humanos desconhecidos entravam no beco para, bruscamente, recolher o lixo.

Por vezes, dava por si sentado, muito quieto, observando a luz do sol quando esta alcançava, timidamente, a metade do beco mais próxima da confusão da rua onde desembocava. Não se atrevia a aproximar-se e sequer permitir que pousasse sobre o pêlo negro como a noite, dissera-lhe a mãe que para lá do beco, onde aquela luz tocava, havia muitos perigos. A luz era perigosa.

Mas à medida que o seu corpo se desenvolveu, assim cresceu também a curiosidade latente em todos os gatos. O mundo do beco já não lhe chegava, e a vida começava a exigir-lhe mais do que permanecer na escuridão onde nascera. Um dia, a curiosidade foi mais forte. Percorreu o beco uma vez mais, tudo o que lhe era conhecido e que agora se assemelhava bem mais a uma prisão do que ao recanto seguro que lhe tinha garantido a sobrevivência até então. Compreendeu, não sem um arrepio de medo, que sobreviver já não lhe chegava. Queria mais. Precisava de mais. Merecia mais. A alma exigia-lhe mais.

Partiu. E assim que a luz do sol tocou o pêlo negro forte – e agora luzidio – os músculos fortes desenhados pelos meses saltando sobre contentores e tábuas podres rejubilaram com o toque quente e amistoso dos raios solares.

Durante meses percorreu ruas movimentadas e terrenos baldios, identificou os lugares onde podia sempre voltar para comer ou onde podia encontrar água, e a eles voltava de cada vez que a necessidade assim o exigia. Agora a vida entregava-lhe toda a aventura que podia desejar, e a experiência moldava-lhe os passos seguros. Correu riscos, quase perdeu a vida, conheceu a injustiça. Mas testou também os seus limites, fez escolhas, conheceu o mundo para lá do beco.

Então, um dia, a vida falou-lhe de novo. A sua alma estava inquieta. Ele ainda não conhecia o amor…. Até que a conheceu, a ela. E ela prendeu-lhe o olhar com a luz que se desprendia do corpinho franzino, o calor do sorriso, a ternura das suas mãos, da primeira vez que se deixou tocar.

Anos mais tarde, ao colo dela, ouviu-a perguntar-lhe:

- Nasceste num recanto escuro, cresceste nas ruas, e vives agora numa casa comigo. A qual destes lugares chamarias alguma vez de lar?

Ele piscou os olhos, sonolento, e voltou ligeiramente a cabeça para a encarar. Respondeu:

- Lar não é um lugar, porque não se trata de onde o teu corpo possa pertencer. Isso são apenas acessórios ou circunstâncias que podes sempre perder. Um verdadeiro lar nunca pode ser perdido porque não é onde o teu corpo repousa… é onde a tua alma descansa. O meu verdadeiro lar é no teu coração.


Vanessa Lourenço

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