quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

NOTURNO ARCO-ÍRIS – VIRGEM SARA, de Helder Menor















Vendas Novas é terra de militares, ferroviários e moças pobres a fazer pela vida. Assim conta a tradição das estradas do Alentejo. O caso que vos venho contar, aconteceu em Vendas Novas, mas quase que não mete fardas da tropa, nem fardas dos caminhos de ferro, nem saias curtas, nem ambiente de bordel.

É uma história triste e verdadeira entre o milagre e o nada.

Há cerca de 50 anos nasceu na Beira, Moçambique, uma bebé pequena e saudável, filha de um sargento de artilharia e da senhora sua esposa dona Efigénia, mulher beirã, dura e devota. Segunda filha, irmã mais nova de um rapazinho de três anos. À menina chamaram Sara, ao irmão tinham chamado Sérgio.

Acabada a comissão do sargento, em 1972 regressou com a familia para Vendas Novas, onde ficou colocado. O militar, com as economias da segunda comissão em Moçambique, comprou um terreno na estrada que segue para Bombel. Fez uma casa de rés-do-chão e primeiro andar. Uma vivenda simples e modesta para uma vida simples.

Passou o 25 de Abril e os ventos de mudança da Revolução não afetaram a vida do Sargento Ramos. As crianças foram crescendo e o sargento, sem grandes sobressaltos foi-se mantendo na Escola Prática e marcando o passo da classe dos sargentos. Nos anos 80, com a epídemia da heroína, o rapazito Sérgio foi infetado. Os braços do moço apareciam picados e o dinheiro de casa desaparecia. O sargento Ramos tentou resolver as coisas como sabia: gritos e tareias com o cinturão da farda. A dona Efigénia, fez à sua maneira, reforçou a sua presença na igreja, fez promessas à Virgem e apoio ao marido. A Sarita, tímida e assustada, acompanhava a mãe nos percursos religiosos. Vivia uma existência entre o estudiosa e o êxtase místico, exacerbado pelas crises de sonambolismo em que, a dormir se levantava e a mãe ia com ela ajoelhada a rezar o terço à Nossa Senhora de Fátima. Teria treze anos e queria ser freira.

Por volta de 1988, o rapaz saíu de casa e veio morar para Lisboa. O pai dizia que o filho para ele tinha morrido. A mãe, chorava e fazia promessas. A irmã , entregava-se a Deus quando devia entregar-se aos amores da adolescência. Desistiu de ser freira, para ficar em casa a apoiar os pais.

Dois anos depois de ter saído de casa, o rapaz apareceu morto nuns arbustos da berma da Avenida de Ceuta. Telefonaram ao pai para ir reconhecer o corpo ao Instituto de Medicina Legal, no campo de Santana. O sargento foi sozinho para Lisboa e voltou com a morte do filho na mala do carro. Fizeram o funeral do rapaz e o luto com o apoio da família, dos viznhos e dos outros sargentos.

A Sara estudava para ser professora primária mas continuava a viver a vocação de esposa de Cristo. Em casa, disse ao pai que foi Deus que levou o mano.

O sargento, não durou muito mais... no inverno seguinte à morte do filho, apareceu-lhe o cancro que o levou. Ficou de baixa, depois passaram-no à reserva. O soldado morreu velho e mirrado no hospital de Setúbal.

À Sarita, acabado o curso, foi colocada como professora primária numa escola perto de casa. Dedicava-se aos meninos e à catequese. Nunca casou nem se lhe conheceram namorados.

A dona Efigénia, na sua fragilidade dos cinquenta quilos, manteve-se rija e continuou a gerir a casa, a pensão de viúvez do marido e o salário da filha, com a mão de ferro que herdou do sargento de artilharia. A filha professora que tinha sido uma rapariguinha apagada, foi-se transformando numa senhora apagada. Dos vinte saltou para os trinta. Dos trinta saltou para os quarenta. Sem amores a não ser o amor a Deus, à Nossa Senhora de Fátima e à Familia, este último amor condensado na pessoa da mãe que envelhecia seca.

Quando estava quase a fazer trinta, umas vizinhas e amigas lá da igreja, tentaram arranjar um namoro à Sarita com um moço que era sobrinho de alguém... mas o namoro não foi para a frente, porque a Sara não gostou dos avanços do moço a pegar-lhe nas mãos e a propor levá-la no carro para o cinema em Lisboa. Passaram os anos e a Sara foi ficando sozinha.

Há coisa de cinco, seis anos, uma família chinesa que tem um restaurante e uma loja lá em Vendas Novas, alugou a casa ao lado da casa onde viviam a Sarita e a dona Efigénia.

Os chineses e as suas chinesises culturais foram assunto de conversa entre a mãe e a filha. Os dois quintais pegados e a falta de assunto, faziam com que a vida dos chineses fosse a telenovela favorita das senhoras.

Os chineses arranjaram o anexo do quintal onde era a cozinha com o lume de chão e fizeram desse espaço uma outra casa, com um quarto pequenino, uma cozinha minúscula e uma microcasa de banho. Passados uns meses, alugaram o anexo a uns moços do Bangladesh, que vieram trabalhar na agricultura. Eram quatro rapazes à volta dos vinte anos que ali viviam.

A Sarita e a dona Efigénia sempre atentas às entradas e saídas dos rapazes do Bangladesh, aos seus hábitos de higiene, à frequência dos banhos, à lavagem das roupas, loiças e horários das refeições.

A mãe, na casa dos setenta, rija. A filha, nos quarenta e picos cheia de doenças que os médicos não conseguiam curar. Eram formigueiros nas pernas, dores nas costas, ventre inchado, tonturas... A médica fez-lhe os exames todos. Inconclusivos. Mandou-a ir a um psiquiatra.

Médico dos nervos, dizia ela às beatas com quem se relacionava e às duas colegas na escola.
O psiquiatra disse-lhe que ela tinha uma depressão e receitou-lhe comprimidos que a faziam dormir.

A Sara tomava os comprimidos religiosamente depois do terço e deitava-se para dormir sem sonos na sua cama de solteira, naquele quarto de freira decorado com imagens de cristo e dos santinhos. De manhã, levantava-se, rezava e ia trabalhar carregando a cruz da sua doença e dos sofrimentos do mundo. A dona Efigénia, queixava-se da vida e mantinha as portas e as janelas fechadas para não entrar nem o frio nem o calor. A casa, foi-se transformando num convento, cuja única janela que se abria era a do quintal e que dava diretamente para a novela dos bengalis a viver ao lado.

Entre o bem e o mal, às vezes vai a distância de um suspiro. E o bem ou o mal entrou precisamente por essa janela que era a única que se abria. Naquele inverno rigoroso, nas noites de sono químico da Sarita, as crises de sonambulismo voltaram e em força. Mas desta vez, não ia rezar o terço, nem a mãe acordava para vê-la.

Adormecida e de olhos fechados, na sua camisa de dormir de flanela e descalça, saía do quarto silenciosa, de luzes apagadas e descia pela escada do quintal até ao muro baixo que saltava com deselvoltura. Depois batia devagar na porta do anexo onde viviam os bengalis e entrava. Entrava para amar o amor que nunca tinha conhecido mas que o seu corpo sabia fazer sem que lhe tivessem ensinado.

Na primeira vez que aconteceu, o rapaz veio abrir a porta e não percebeu o que é que a vizinha do lado queria. Abriu a porta e deixou-a entrar. Ela passou por ele sem abrir os olhos e foi direta ao quartinho onde estavam os dois beliches. Depois despiu a camisa de dormir e as cuecas de gola alta com que dormia sempre e meteu-se na cama do outro mocinho que no espanto dos seus vinte e dois anos nunca lhe tinha acontecido tal coisa.

O outro rapaz, no mesmo beliche em cima, saltou da cama espantado. Ainda tentou falar, mas o que estava na cama de baixo e debaixo da Sarita, mandou-o calar. Ele calou-se. Quando o rapaz acabou, a Sara quis continuar. Pegou na mão do espantado que lhe tinha aberto a porta e que estava de olhos arregalados e abraçou-o antes de o levar para a cama. Acabado o segundo, a dormir mas de sentidos despertos, o seu corpo pediu mais. Foi ao terceiro. E depois o quarto. Sempre a dormir, sempre em silêncio, sempre de olhos fechados. A cerimónia do amor durou duas horas, quando o seu corpo decidiu, vestiu as cuecas, a camisa de dormir e saiu sem dizer palavra.

Os quatro jovens, não dormiram mais naquela noite. Quando os telemóveis tocaram para a alvorada, já tinham decidido não contar a ninguém o que tinha acontecido. No dia seguinte foram trabalhar com um sorriso nos lábios e pronto. É a Europa, diziam entre si, aqui as coisas são diferentes... as mulheres são diferentes.

Na noite seguinte a Sara não voltou ao anexo dos rapazes.

Mas nessa semana aconteceram mais duas vezes as crises de sonambulismo que passavam pela cama dos bengalis.

A coisa foi assim durante meses. Três ou quatro vezes por semana, a vizinha adormecida, descia as escadas e amava com um, dois, três ou os quatro. Dependia da vontade da mulher e da disponibilidade dos moços. Depois, voltava a pôr a camisa de dormir e seguia calada e silenciosa para a sua casa escura e para a sua cama de convento.

Sem que soubesse explicar porquê, a Sarita começou a sentir-se melhor da sua saúde. Passaram as tremuras nas pernas, as dores nas costas e as tonturas. Também se sentia menos triste e com mais energia.

Pensou que fosse ajuda da nossa senhora a quem rezava todos os dias. Pensou em milagre, de facto era um milagre noturno que às vezes acontecia mas que só os bengalis sabiam. Os chineses que tinham alugado a casa ao lado, transformaram-na num armazém onde não morava ninguém, por isso o segredo do quintal era apenas testemunhado pelas duas laranjeiras e pelo limoeiro por cima do poço.

A coisa durou assim uns meses. Do inverno passou-se à primavera e da primavera entrou-se no verão.

A menstruação deixou de aparecer à Sara. Ela estranhou, era mulher regular... depois pensou, que seria a menopausa... tinha quarenta e cinco anos, se calhar ainda era cedo para a menopausa... mas não podia ser outra coisa, por isso não se preocupou.

Os rapazes do Bangladesh, perceberam antes pelas mudanças no corpo da viznha. Quando ela aparecia à noite, tinham o cuidado de não pressionar o ventre.

A barriga começou a inchar... e as mamas que não eram grandes, começaram a crescer-lhe.
Quando decidiu ir ao médico estava grávida de sete meses.
Impossível! disse ao médico.

- Sou solteira e nunca conheci homem.

O médico, mostrou-lhe a ecografia com o bebé a branco a nadar num aquário preto dentro da barriga dela.

Sem saber o que fazer ou dizer, levou os papéis do médico e a ecografia e foi direta ao padre 
Silvino. O Padre que era padrinho dela e tinha sido capelão no quartel, muito amigo do pai e amigo da família.

Contou-lhe tudo. Tudo o que sabia. Tudo menos das crises de sonambulismo das quais nunca teve conhecimento.

O Padre, abriu muito os olhos miúpes e perguntou-lhe:

- Sarita, minha filha, queres que te oiça em confissão?

- Mas padrinho, eu nunca tive com homem nenhum! Juro por tudo o que é mais 
sagrado!

- Está bem minha filha... mas para estares grávida....

A Sara, chorou por incompreendida.

Voltou para casa e não falou com a mãe naquele dia. Queria esperar por uma altura melhor.
As crises de sonambulismo não voltaram.

Ficou em casa calada com a barriga a crescer. A dona Efigénia percebeu antes da filha ter ido ao médico. De raiva, de dor e de vergonha, deixou de falar à filha.

Uma noite de outono, chegaram as dores à Sara. Fez força, mordeu uma toalha turca sem gritar e pariu sozinha na cama um bebé que nasceu morto. Cortou o cordão com uma tesoura de costura e depois, também ela morreu esvaída em sangue. Os bombeiros de Vendas Novas vieram buscar os corpos na manhã seguinte, já próximo do meio-dia, quando a dona Efgénia abriu a porta do quarto da filha para arejar.


Está enterrada no cemitério de Vendas Novas. A mãe fez-lhe um funeral simples, com a urna fechada e o bebé foi com ela no mesmo caixão. Foi assunto falado em Vendas Novas.

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