terça-feira, 10 de agosto de 2021

CRÍTICA LITERÁRIA | Escrito na Água, de Paula Hawkins | Topseller - Grupo 20|20


Texto: Isabel de Almeida | Jornalista | Crítica Literária

Foto: D.R.


Escrito na Água é o segundo romance da aclamada autora Paula Hawkins e chegou às livrarias em 2 de Maio de 2017, Em 31 de3 Agosto de 2021 chegará a oportunidade para desvendar o terceiro Thriller da autora - Um fogo Lento - até lá podemos descobrir ou revisitar  Escrito na Água o segundo  thriller psicológico de Paula Hawkins, sendo o resultado de um delicado e moroso trabalho de escrita ao longo de três anos, começamos por dizer que o investimento relativamente longo no trabalho de construção da narrativa fica patente na riqueza e no cuidado estilo literário imprimido à obra, a qual, além de narrar uma história carregada de simbolismo, suspense e, não um mas vários mistérios (como a própria autora destacou em missiva dirigida aos leitores iniciais) incita à reflexão acerca de temas bastante caros a Paula Hawkins, designadamente: o lugar das mulheres no mundo, a relação das mulheres entre o seu género, a pouca fiabilidade da memória e o poder da narrativa.


O ponto de partida para a trama é o regresso de Jules (Julia) Abott à localidade onde nasceu - Beckford - na Inglaterra, para se defrontar com a morte da irmã mais velha Nel Abbot, com a qual tinha uma relação conturbada e mal resolvida que nos vai sendo apresentada no decurso da narrativa, a par do mistério principal que se prende com a causa ou as motivações das mortes que ocorrem no rio local, em especial, numa zona conhecida como "O poço das Afogadas". Uma das grandes questões que se levanta é: será a morte de Nel suicídio ou homicídio?


Será o rio um local de rituais simbólicos, o sítio onde Nel e outras mulheres ao longo dos séculos, procuraram a morte como libertação de uma vida que não lhes era satisfatória? Ou é o rio um instrumento ideal para punir mulheres consideradas problemáticas (no sentido em que não se conformam às normas instituídas socialmente?).


Como protagonistas encontramos Jules (irmã da falecida Nell, Lena, a rebelde e inconformada filha adolescente da falecida Nel, Louise Wittaker  (mãe do jovem Josh) que vive a dor inexplicável de ter perdido recentemente a filha Katie (melhor amiga de Lena), a equipa de investigação local que é chamada a averiguar as circunstâncias em que decorreu a morte de Nel ( uma mulher sedutora, um espírito livre, escritora que sempre nutriu uma obsessão pelo rio e pelas mortes por afogamento de várias mulheres que ali foram ocorrendo, e que se encontrava a escrever um livro acerca deste tema que poderia ser incómodo até para si mesma). Existem diversas personagens, e cada uma delas apresenta a sua perspectiva enquanto participante na história, numa narrativa na primeira pessoa que bastante prende o leitor e o transporta para a essência psicológica e densidade das mesmas.


Dividido em quatro partes, o livro vai envolvendo o leitor na história, num clima de suspense permanente até ao climax final, pese embora seja viciante, os temas abordados são tão pertinentes e reais que aconselhamos vivamente uma leitura que diríamos de degustação, sendo difícil resistir à tentação de saborear algumas passagens e de ir fazendo anotações ao longo da leitura. 


Estamos aqui perante mais do que uma simples história de mistério, ou um simples thriller psicológico, estamos sim perante uma obra literária na sua verdadeira essência, com um olhar maduro e ponderado acerca de questões psicológicas, filosóficas e sociológicas, e mais do que a própria história, é este o aspecto que mais nos fascinou nesta leitura.


Em termos psicológicos, somos brindados com a particular dinâmica relacional entre Jules e a sua falecida irmã Nel, a rivalidade entre irmãs, a competição, a luta pelo exercício do poder torna-se evidente aos nossos olhos: "Sempre tive um pouco de medo de ti. Tu Sabias disso, divertias-te com o poder que te dava sobre mim. (...)"


Encontramos momentos de reflexão sociológica e filosófica bastante profundos e actuais: "(...) as histórias dos adultos estavam cheias de crueldades estúpidas: criancinhas recusadas à entrada das escolas porque a sua pele era de uma cor errada; pessoas espancadas ou mortas por adorarem o deus errado.(...)"


Há um aspecto que gostaríamos de destacar, por ter sido esta a nossa leitura da história, o rio assume aqui um papel deveras relevante na economia da narrativa, na medida em que todas as personagens estão directamente ligadas ao mesmo, ou porque este as fascina, ou porque nele perderam pessoas que lhe eram próximas e queridas. O rio transporta na obra um simbolismo marcadamente dialéctico que evoca uma perspectiva filosófica heraclitiana, recordando Heráclito de Efeso:"Não é possível descer duas vezes no mesmo rio; nós próprios somos e não somos." (Fragmento 49, In, No Reino dos Porquês, Filosofia, 10º ano). Ou seja, nada permanece estanque, nem o rio, nem as pessoas à sua volta, e o mundo avança através de uma eterna luta entre contrários, vejamos este excerto de escrito na Água que evidencia esta ideia: "Tive um acesso súbito de clareza: não tinha de ser fixa, podia ser fluída, como o rio.(...)"


Os jogos de poder e de sedução como exercício de poder, a possibilidade de serem criadas falsas memórias, e também sempre muito presente em diversas personagens encontramos uma palavra chave - a culpa, a culpa associada ao passado, às perdas, à forma como são elaboradas e vividas diversas emoções, tudo isto podemos encontrar neste livro, o que revela a maturidade da autora já plenamente plasmada na sua escrita. Muito mais poderíamos dizer, mas receamos cair no risco de spoilers, e por isso, aqui deixamos algumas pistas e a recomendação sem hesitações desta leitura.


A escrita de Paula Hawkins é perfeita, e a sua perspicácia enquanto observadora do mundo que a rodeia é manifestada de forma brilhante em Escrito na Água.


O Livro será adaptado ao cinema, à semelhança da primeira obra da autora - A Rapariga no Comboio.

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