quinta-feira, 12 de setembro de 2019

DE ONDE NUNCA SAÍ - PROIBIDO ESQUECER SANTIAGO, de Helder Menor














Mini comida de plástico, num mini prato de plástico, comidas com mini talheres de plástico e digeridas num mini assento de espuma plastificada. O som do motor abafado pelo zumbido do ar condicionado. Os pés apertados e inchados na ponta das pernas encolhidas.

A grande noite atlântica. Horas intermináveis de noite. Horas e horas intermináveis de atlântico. Horas depois de sucessivos adormeceres e acordares incomodados, o amanhecer lento de quem viaja com o sol por trás. Chegou um mini pequeno-almoço de plástico e lá ao fundo, pela mini janela, o vulto do continente debaixo das nuvens.

A primeira coisa que vi da América do Sul foram os cumes nevados dos Andes. E gostei.

Depois foram mais umas duas ou três horas de voo sobre montanhas amareladas com pontas brancas. Os planaltos desertos de vegetação e de casas.

Por fim, anunciaram que estávamos a chegar.

Santiago lá estava como me tinham descrito.

Catorze horas depois de Madrid. Saímos a precisar de ar e de chão na sola dos pés. Mas os deuses das viagens deram-nos mais duas horas de uma interminável fila para controlo de passaportes.

Aprovada a entrada e após sucessivas tentativas, cada vez mais desesperadas, de levantar pesos chilenos nas máquinas de levantamento automático no aeroporto, através de um esquema de legalidade duvidosa, depois de apurada negociação, foi possível “levantar dinheiro” pagando uma percentagem numa loja que tinha sistema multibanco a funcionar.

Saímos para a rua com um táxi pré-negociado e o papel da morada escrita. Estava sol e o ar seco. À volta do aeroporto, o habitual das construções que nascem à volta dos aeroportos. Seguimos até à cidade.

Avenidas largas e arborizadas. Transportes públicos e gente jovem pelas ruas. Muitos jovens. A primeira sensação que tive do Chile, é que é um país de gente jovem. Ficámos numa coisa tipo sandes mista de pensão barata com residência de estudantes. Limpinho e no centro da cidade. Seriam umas dez da manhã quando chegámos.

De banho tomado, saímos para conhecer a cidade.

Comemos uma empanada cada um e decidimos ir caminhar. Errado. Não tínhamos mais descanso do que as horas que cabeceámos no avião. Caminhar ao sol não dá saúde. Sobretudo numa cidade que não se conhece e onde as distâncias relativas são numa escala gigantesca. Demorámos duas horas a ligar dois pontos que pareciam colados no mapa. Voltámos tontos e com vertigens. Acordámos ao final da tarde. Saímos refeitos para as ruas cheias de gente. Fui comprar um canivete que não pude levar no avião e me faz muita falta para mil e uma coisas que seria fastidioso dizer-vos agora, mas que fico desamparado sempre que não trago um no bolso. Andámos pelas ruas antigas entre drogarias, funileiros e lojas de ferragens.

Depois, jantar. Passámos por várias esplanadas a comer e a beber. Vinho, empanadas, frango frito e pisco souer. O café, segundo a apreciação de quem gosta será fraquito. O vinho e o pisco, excelentes e baratos.

Foi Santiago versão alegre. Ruas movimentadas gente jovem animada. Chegámos já tarde à pensão, mas a festa também ali seguia animada. No quintal criámos uma espécie de nações unidas versão latina. Um mexicano, um peruano, uma venezuelana, uma chilena, uma colombiana, um brasileiro, um português e uma portuguesa. Vinhos e cerveja, anedotas e canções numa guitarra que apareceu. O vinho do porto fez sucesso.

A cama recebeu-nos generosa, mas o jet-leg acordou-nos por volta das seis e meia da manhã. Todos dormiam. Procurámos o pequeno almoço possível num frigorífico mais ou menos coletivo e saímos para a rua na manhã luminosa.

“Queremos ir ao Museu dos Direitos Humanos e da Memória.” - dissemos ao primeiro polícia que encontrámos. Recebemos umas indicações formais e precisas e fomos.

Animados pela primeira manhã de um novo continente, percorremos os dois ou três quarteirões em passo ligeiro. Chegámos cedo. Fizemos tempo num jardim florido a ver as pessoas passarem, seguindo para o trabalho e para a escola. Às nove horas entrámos no museu.

Então a coisa deu-se. A brutal puta da realidade a bater-nos em cheio na cara, no peito e nas tripas. E ficou aquela angústia contagiosa, aquela raiva impotente, aquela dor e aquele vazio que nunca passam.

Cinquenta Mil mortos. Estavam ali os cinquenta mil desaparecidos, torturados e assassinados pelo Pinochet de má memória. Todos à nossa espera. Alinhados para nos cumprimentarem e nos mostrarem que a terra da América é amassada com sangue e ossos. Os mortos deram-nos as suas boas-vindas e fizeram-no à sua maneira. Brancos, pretos, mestiços e índios mineiros, pastores, camponeses, jornalistas, operários, topógrafos, ferroviários, comerciantes, tipógrafos, estudantes, músicos revolucionários de barbas, adolescentes com calças à boca de sino, todos todos. Todos ali alinhados.

Pode acontecer que a culpa seja apenas do museu que está bem feito. Talvez demasiado bem-feito. Ou então somos nós que somos demasiado sensíveis. Pode ser paranoia e frescura da nossa parte. Ou então foram as emoções a caírem na fraqueza das noites pouco dormidas.

A história que eu conhecia dos livros, dos documentários e dos testemunhos sobre o golpe e sobre o terror do 11 de Setembro em Santiago, toda ali à minha frente. Tão real que se pode morder. Tudo numa visita de uma hora. Toda a angústia, toda a esperança destruída, todas as dores, todos os gritos, todos os prantos, toda a tortura está lá, documentada.

Os sons. As imagens. As cartas das crianças para os pais já assassinados na tortura a combinarem passeios nos parques. O testemunho das estudantes violadas, dos sindicalistas queimados a maçarico, dos professores assassinados.

Numa parede de três andares, milhares de fotografias com o rosto das vítimas. Gente assassinada a olhar para nós através das fotografias amareladas do passe, do casamento, da ficha policial ou do folheto para as eleições do sindicato.

Os bilhetes de identidade manchados de sangue. Os textos e manifestos fotocopiados amarrotados. As máquinas fotográficas apreendidas e partidas. Os instrumentos de tortura. As roupas rasgadas. E, a mostrar-nos tudo isto os mortos, os cinquenta mil mortos, os cinquenta mil nomes.

Gente como nós. Gente como tu e como eu.

Saímos do museu desfeitos. Arrasados. Não falámos durante uma hora. Não conseguimos olhar um para o outro. Menos ainda para as pessoas com que nos cruzávamos. Em cada rosto de um mais velho que víamos, a incógnita do posicionamento: e tu? Terás sido carrasco ou terás sido vítima?

As paredes do La Moneda não respondem, por isso pegámos nas mochilas e fugimos.

Fugimos literalmente de Santiago.

Uma pena.

Uma cidade que me caiu tão bem. Uma terra tão bonita, aberta, jovem e luminosa...

Mas não foi possível fazer de maneira diferente.

Só passado mais de um mês conseguimos falar um com o outro sobre o que sentimos em Santiago.

Mas um destes dias voltaremos.

Voltarei a Santiago do Chile, para cumprimentar os vivos, beber pelos mortos e resgatar a parte de mim que lá ficou.



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