segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | O Homem Sapo (e como ele se transformou) | VANESSA LOURENÇO


Deambulava sozinho por entre becos de ruas salobras, cardumes de ilustres desconhecidos e a escuridão das noites frias. Dir-se-ia que andava perdido, mas conhecia os recantos do charco citadino como ninguém. A vida não lhe era farta, mas dela insistia em se saciar, um dia de cada vez, cantarolando. “É louco”, murmuravam uns, “canta para fugir da vida”, diziam outros. E o velho, que muitas vezes os ouvia, não queria saber.

Chamou-lhe Libelinha, e não foi por acaso: apesar de viver nas ruas, era um homem culto, e sabia que estes pequenos animais, antes de se tornarem adultos nos céus, nasciam nas águas turvas dos charcos emoldurados por juncos e ervas altas. Ora ele tinha encontrado a Libelinha dentro de um contentor de lixo que as chuvas impiedosas dos últimos dias tinham inundado, e por pouco lhe tinha salvo a vida. Ela tinha renascido e por gratidão, nunca mais lhe largara os passos.

Habituado à sua solidão, o velho viu-se pela Libelinha obrigado a renascer, pois que o diacho da cadela adorava pessoas e depois de escapar da morte quase certa, parecia determinada em exigir da vida tudo aquilo a que tinha direito: “que simpática, a cadelinha é sua?”, “tome lá esta ração e não agradeça, ela precisa de crescer forte!”, “que bonita, onde a encontrou?”. E a todos o velho se via forçado a responder, notando ao final de uns dias que todas as manhãs ansiava por este mundo novo que a Libelinha teimava em lhe fazer ver: a cadela parecia acreditar que ninguém era intrinsecamente mau e que por todos devia distribuir amor, e esse amor pela vida era tão grande que transbordava do pequeno corpo e inundava o velho, que de antigo só tinha a casca grossa que lhe cobria os ossos, afinal.

Começaram a ser conhecidos na vizinhança, e o velho depressa compreendeu que não tinha salvo a vida da cadela mais do que ela tinha salvo a dele: o barbeiro da avenida ofereceu-se para lhe fazer barba e cabelo, pois que “onde já se viu, uma cadelinha tão bonita andar ao lado de um homem descabelado?”; o dono da pastelaria oferecia-lhe pela manhã um café e um pastel, pois que “tem que andar bem acordado, não vá a Libelinha perder-se!”; a veterinária municipal insistia em oferecer vacinas e desparasitantes, pois que “a Libelinha tem que andar saudável para tomar conta de si!”.

O velho decidiu então que tinha que estar à altura de todo aquele amor e começou com a Libelinha a percorrer as ruas em busca de desperdício que pudesse vender: latas vazias, metal e objectos deitados fora que pudessem ser vendidos em segunda mão. À tardinha, regressava à pastelaria e ajudava nas limpezas, o que lhe garantia sempre meia dúzia de tostões e uma refeição quente para si, e para a Libelinha.

Uns meses mais tarde, sentado num banquinho de madeira ao lado da porta de um pequeno anexo cedido gentilmente por um vizinho, e com a cabeça pequenina da Libelinha entre os joelhos enquanto lhe acariciava o focinho farrusco, pensou de si para si que ela devia ter planeado tudo aquilo muito antes de se terem encontrado. Afinal de contas, não podia acreditar que tivessem salvo a vida um do outro por acaso.




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