segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Entrelinhas | VANESSA LOURENÇO


O cão velho atravessou-se no meu caminho e informou-me educadamente que seria da sua autoria a minha primeira crónica neste jornal. Não que tenha dito muito para me convencer, era de poucas palavras. Trancou nos meus os seus olhos parcialmente vidrados e ramelosos, e disse apenas:
- Tens alguma ideia melhor?
Durante alguns segundos quis contrariá-lo e apresentar-lhe uma alternativa digna de um filme de cinema ou de uma história daquelas que alimenta a fogueira uma noite inteira, mas não me surgiu nada. Frustrada e irritada com a impertinência, devolvi-lhe:
- Aposto que tens pulgas.
Inclinou ligeiramente a cabeça e estreitou os olhos, e a infantilidade da minha resposta atingiu-me como uma paulada nas costas. Envergonhada, mas sem querer dar parte fraca, revirei os olhos e acrescentei:
- Se tiveres pulgas, posso ajudar-te com isso.
Ergueu um sobrolho grisalho e escancarou os olhos, antes de rebentar numa gargalhada. Eu nem sabia que os cães se podiam rir e senti-me corar. Rodou sobre si mesmo várias vezes e por fim lançou as patas dianteiras às minhas pernas, de uma forma surpreendentemente ágil para um cão velho. Ainda envergonhada, acariciei-lhe a cabeça por trás das orelhas e sentei-me no chão arenoso à frente dele. Pousou nas minhas pernas as patas encardidas, munidas de unhas compridas, e disse-me:
- Aqui tens a tua primeira crónica. A primeira de muitas.
Surpreendida, ergui o sobrolho e cruzei os braços sobre as pernas, inclinando-me para a frente para o ouvir melhor. Perguntei-lhe:
- O que queres dizer? Não me contaste história nenhuma!
Estreitou os olhos, mas desta feita não havia uma gota de sarcasmo neles. Apenas sabedoria, e uma secreta satisfação. Disse-me:
- Existem outros como tu, não duvides. Seres humanos cujas vidas são salvas e inspiradas todos os dias pelos animais que amam e se cruzam no seu caminho. Pessoas que páram na rua para falar com animais desconhecidos, e que partilham os seus sonhos e anseios com os animais que partilham as suas vidas. Essas pessoas precisam de saber que fazem parte de um grupo imenso de seres humanos que não só respeita os animais com quem partilha a vida todos os dias, como lhes reconhece uma complexidade que a sociedade tarda em lhes atribuir.
Abri a boca para falar, mas não saiu nenhum som. Ele colocou de novo uma das patas na minha perna e estreitou os olhos num sorriso. Acrescentou:
- Existem pessoas que falam connosco e esperam para nos ouvir. É com essas pessoas que vais partilhar estas crónicas e partilhar sorrisos de reconhecimento, com essas pessoas que acreditam que por vezes, os maiores tesouros da vida são deixados nas entrelinhas... e nos são desvendadas por aqueles que caminham em quatro patas ou nasceram para cruzar os céus com as suas próprias asas.




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