quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Porque a boca também come: O Borsh russo | HELDER MENOR


Com o frio, os músculos contraem-se e os corpos tendem a cobrir-se de roupa. Desesperados por calor, trememos o queixo e esfregamos as mãozinhas enquanto procuramos aconchego. Roupa de lã, fogos acesos, amor e amizade ajudam, mas não resolvem completamente.

A sugestão de hoje vai de acordo com a temperatura dos dias: jantar russo a celebrar a amizade e a vencer definitivamente o frio. Que se convidem amigos!

Pensamos num jantar para quatro, mas o número de participantes fica ao vosso critério.
Tudo começa com duas garrafas de vodka. A melhor vodka que conseguirem comprar. Russo. Naturalmente. Se querem ir por versões islandesas ou polacas, fiquemos por aqui e podem mudar de artigo!!!

Estando neste ponto essencial garantidos, sendo o vodka russo, vamos ao resto:

Pão de centeio, o mais escuro que encontrarem, e uma latinha (ou duas) de caviar. Isto para abrir as hostilidades e acariciar o palato. Para comer, hoje temos Borsh (poupemos os trocadilhos brejeiros e limitativos da imaginação). O Borsh é uma sopa com carne e beterraba que aquece fundo até à alma e dá força ao corpo.

Precisam de umas trezentas gramas de carne de vaca - pode ser uma costeleta - ou se preferirem e quiserem baixar o orçamento, ganso ou aba. Umas quatro beterrabas do tamanho de uma mão fechada. Duas cenouras grandes, para ralar fininho. Três cebolas médias daquelas de intenso cheiro que fazem chorar mal se tira a primeira casca. Uns três tomates maduros, que pelamos e tiramos as sementes. E meio repolho - ou um repolho pequenino - que cortamos em fatias fininhas. Como gordura, três colheres de banha de porco. Precisamos também de um ramo de salsa bem fresca. Se tiverem sorte, conseguem comprar smitana, que é uma espécie de natas azedas que se comem no leste da europa... qualquer coisa entre as natas e o iogurte natural. Se não encontrarem smitana, terão de se contentar com um pacote de natas a que vamos acrescentar meio limão.

Agora com os ingredientes em casa, o vodka, deve ir imediatamente para o congelador. O ideal seria ter ido para o congelador na véspera... Na realidade uma casa só se considera devidamente abastecida, com uma garrafa de vodka no congelador!!! Mas umas quatro horas com a garrafa deitada no cantinho entre o peixe congelado e o gelo que se acumula, já dará ao vodka a consistência necessária.

Agora a manufatura do Borsh:

Primeiro, vamos cozer a carne. Inteira numa só peça. Tempera-se com pouco sal e vai ao banho num tacho com bastante água, onde deve ferver uma boa hora até soltar o osso. Numa outra panela pomos as beterrabas a cozer... demoram. Deixem ferver, há tempo, o inverno na estepe demora meses... Os tachos ao lume vão aquecendo o ambiente.

Aconselha-se ouvir o Tchaikovsky que vai evocando a alma russa para a vossa mesa.

Quando as beterrabas estiverem cozidas - e estão cozidas quando não oferecerem resistência ao garfo quando se espeta - escorrem-se e reserva-se o caldo. Esperamos que fiquem suficientemente mornas para se poder mexer e é aí que as esmagamos com uma colher de pau, numa espécie de puré cor-de-rosa escuro.

Voltemos ao lume, que tem estado a aquecer-nos e a cozinhar para nós. Chegou a hora de escolhermos a panela que queremos levar à mesa. Com carinho, pomos as três colheres de banha a derreter e juntamos as cebolas cortadas aos cubos. O lume já está bem alto para as cenouras chiarem na fritura. Assim que começarem a ficar transparentes, pomos o tomate pelado e sem sementes. Baixamos o lume e deixamos refugar, sem pressa que o refogado é daquelas coisas na vida que se deve fazer devagar. A carne já está cozida e cortada em cubos... latente na tábua, à espera de mergulhar na cama do refogado. Quando as formas dos tomates se dissipam no que resta da cebola, a carne entra na panela. Com o cuidado dos amantes, mexemos suavemente para envolver a carne no refugado. Agora cuidado... é o momento em que provamos e acrescentamos o sal. Fica a carne a conhecer o refogado e entra o tosco puré de beterraba. Uma volta com a colher de pau, e vai o repolho cortado fininho. Para lubrificar pomos o caldo da carne com cuidado sem afogar... Mal levante fervura, entra o caldo da beterraba. Não precisa de ir todo...sem exageros, mas não esquecendo que afinal de contas é uma sopa que estamos a fazer. Tapa-se a panela e baixa-se o lume para o mínimo. Que ferva um bocadinho... quando se deixar de poder trincar as tiras de repolho, apaga-se o lume.

No provável caso de não haver smitana, vamos bater as natas com o sumo de meio limão e deixar repousar meia hora com as garrafas de vodka dentro do congelador... havendo smitana, ultrapassa-se este passo e basta acrescentar a salsa picada à tijela de smitana que levamos para a mesa.

Chegaram os convidados. Ouvem-se os soldados do exército vermelho a entoar cantigas de amor e clássicos russos.

Torra-se o pão sem deixar queimar. Abre-se o caviar. Montamos uma colher de café de caviar em cima de uma torrada do tamanho de uma bolacha. Em cada montinho de caviar, um pingo (não dois nem três nem zero) repito, um pingo de sumo de limão. Solene e religiosamente vem a primeira garrafa de vodka para a mesa com as entradas de pão e caviar.

Já sentados, serve-se a vodka. Quatro dédalos de vodka, quer dizer, quatro copos minúsculos de vodka. Todos vão beber e todos têm de beber. Se alguém se recusar, está dispensado do jantar e pode ir comer um hambúrguer e batatas fritas!

O dono da casa, ou a dona, levanta o seu copo e fará o primeiro brinde:

- À amizade.

Todos bebem a totalidade contida no copo. Obrigatoriamente. De um golo só como impõe a espartana moral das estepes, porque a perestroika ainda não chegou ao vodka! Cada um come a sua torrada de caviar. O convidado, porque é educado, vai retribuir o brinde.

–  Ao carinho com que nos convidaram.

Mais uma vez todos bebem. Cada vez que alguém levantar o copo para beber, esse alguém fará um brinde e restantes acompanham. Assim como foi no início, agora e sempre. Até ao último trago da última garrafa.

Alguém que traga a panela do Borsh e a tijela de smitana (as natas, depois do primeiro brinde já estão definitivamente consagradas em legitima e eslava smitana).

Serve-se a sopa em pratos fundos e acrescenta-se uma ou mais colheres de sopa de smitana.
Alguém que faça o próximo brinde.

A vossa criatividade e afeto não têm limites.

Haja vodka para celebrar!

Uma última questão muito importante e séria: Num jantar russo, é normal os convidados ficarem a dormir no sofá da sala... se isso não acontecer, e no caso de terem de sair e conseguirem andar... por favor, não conduzam...

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