terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O PLÁSTICO EM NÓS, de Vanessa Lourenço















Pensei que nada seria mais relaxante do que um passeio de barco, naquele dia. O sol reinava, forte, num imenso céu azul, e nem uma nuvem mais atrevida se fazia notar no horizonte. Munida de protector solar e de um imenso chapéu de palha - que dificilmente teria usado noutras circunstâncias – apreciava o brilho da superfície calma das águas, e as pequenas ondulações causadas pela embarcação que embalava o meu passeio.

De repente, algo chamou a minha atenção e me fez endireitar na proa: umas poucas dezenas de metros adiante, na superfície da água, algo parecia mover-se ao sabor da corrente. O que seria? Curiosa, esperei que o barco se aproximasse. O que quer que fosse que estivesse ali, parecia tão depressa deslocado naquele cenário, como dissolver-se nele. Como se de repente, um intruso tivesse decidido munir-se de todas as suas capacidades de camuflagem, para se infiltrar num ambiente ao qual não pertencia.

Assim que fiquei próxima o suficiente, porém, mal tive tempo para inspeccionar o estranho corpo. Assim que me inclinei na borda do barco, ele submergiu. Como se algo vindo de baixo o tivesse subitamente agarrado e puxado para as profundezas.

Não tive tempo para pensar sequer no que estava a fazer: subitamente, estendi o braço para dentro de água, no último segundo em que me teria sido possível agarrar o que quer que fosse que aquilo era, e precisei de todos os meus reflexos para que a superfície lisa e escorregadia não se me escapasse por entre os dedos. Havia realmente algo a puxar do outro lado, mas eu sentia que não podia deixar isso acontecer. Por fim, com o auxílio da outra mão, consegui erguer no ar o que agora conseguia ver que era um saco de plástico. E na outra extremidade do saco, pendurada pelo bico, uma pequena tartaruga marinha debatia-se vigorosamente, com as patas traseiras quase tocando a água. Sem largar o seu prémio, gritou por entre as mandíbulas cerradas:

- “Arga ixo!”

Quase larguei o saco quando a ouvi gritar comigo, mas consegui evitá-lo. Ela ainda não entendia o que tinha acabado de acontecer? Irritada, puxei-a para dentro do pequeno convés, onde se ficou a debater sem largar o saco. Respirei fundo, e disse-lhe:

- O que achas que é isso?

Ela olhou-me de lado, visivelmente zangada e desconfortável. Por fim, largou o saco e colocou sobre ele a carapaça, para ter a certeza que não lhe roubava o almoço. Respondeu:

- Eu vi esta água-viva primeiro, é minha!

Surpreendida, percebi finalmente o que se estava a passar. Disse-lhe:

- É isso que pensas que isto é? Uma água-viva?

A tartaruga pareceu ficar confusa, mas não se deu logo por vencida:

- Claro que é uma água-viva, que outra coisa poderia ser?

Subitamente, senti pena dela. Na ânsia de se alimentar, poderia perfeitamente ter assinado a sua sentença de morte, se não nos tivéssemos cruzado. Respirei fundo e aproximei-me dela, o que fez com que se arrastasse ainda mais para cima do saco. Disse-lhe:

- Isso não é uma água-viva. Não vês que em vez de gelatinosa, é dura e escorregadia? Que é da mesma cor dentro de água, mas não possui tentáculos?

Ainda desconfiada, a pequena tartaruga olhou o saco que guardava debaixo de si. Uns momentos mais tarde, procurou os meus olhos e vi nos dela o terror de quem acaba de se aperceber que podia ter perdido a vida. Afastou-se desajeitadamente do saco pousado no convés, e disse:

- O-o que é isto?

Sorri com ternura, infelizmente sabia demasiado bem que por todo o mundo, todos os dias, milhões de animais perdiam a vida por ingerirem plástico, darem-no a comer às suas crias ou por ficarem irremediavelmente presos ao terrível desperdício humano, que estava já um pouco por toda a parte. Respondi:

- Plástico. Um desperdício humano que a minha espécie tarda em perceber que não deve simplesmente largar por aí.

Ela olhou de mim para o saco, e do saco para mim de novo:

- Se não fosses tu... eu poderia ter morrido sufocada com isso!

Eu olhei-a, e senti a tristeza transbordar dos meus olhos directamente para o convés entre nós, sob a forma de gotas salgadas. Suspirei, e disse:

- Não. Se não fosse a negligência consentida da minha espécie para com a tua, nunca terias encontrado este saco.

Subitamente, ela pareceu crescer. Já não era uma jovem tartaruga assustada, mas um ser marinho majestoso, munido de um olhar profundo e solene. Apoiada nas barbatanas dianteiras, endireitou a cabeça e disse:

- Enquanto um de vós se importar, um de nós será salvo; enquanto um de vós não entregar o seu lixo ao mar, haverá esperança; enquanto um de vós partilhar com o mundo a importância de respeitar o ambiente, nós teremos voz.

Abri a boca para falar, mas ela não tinha terminado:

- Diz-lhes. A todos aqueles que lutam por nós, e por este planeta que é a nossa casa:
“A ti, que recolhes o plástico do chão mesmo quando não te pertence, evitando que alcance os esgotos, estamos gratos; a ti, que caminhas pela praia com um saco na mão, e evitas que as garrafas de plástico entrem no mar mesmo que para isso tenhas que as carregar durante quilómetros, estamos gratos; a ti, que procuras educar os outros a respeitar-nos, mesmo quando escolhem não te ouvir, estamos gratos; a ti, que procuras resumir o uso do plástico ao essencial, estamos gratos; em ti, que respeitas as outras espécies como a ti mesmo, sentimos orgulho. A ti, que te desviaste do teu caminho para ajudar um animal em apuros, damos vivas.”

Interrompeu-se, apenas para suspirar e acrescentar:

- “A ti, que te importas... para ti, que nenhum gesto de boa vontade é pequeno demais... nós estamos a ver. Caminhamos contigo. Nós sabemos quem tu és. E contamos contigo.”


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