quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

UM DIA SENTEI-ME COM ELE, COM A CRIA NEGRA DOS MEUS LIVROS, de Vanessa Lourenço















Um dia sentei-me com ele, com a cria negra dos meus livros. Agora que já não possui um corpo neste mundo, tornou-se mais simples para mim ultrapassar o facto de pertencermos a espécies diferentes, tornou-se mais simples olhá-lo como igual e aceitá-lo como guia. Claro que ele sempre o foi, mas agora os laços entre nós já não se sujeitam às leis da matéria e aos 5 sentidos que nos animam enquanto seres vivos. Mas esse não foi o tema da nossa conversa. Eu precisava de ajuda para lidar com o medo.

Ele sentou-se ao meu lado, na periferia dos meus olhos ansiosos, e semicerrou os dele (chega a ser engraçado como os olhos bem abertos nos ajudam a ver melhor o mundo lá fora, e como os olhos semicerrados nos ajudam a ver melhor o mundo cá dentro). Por fim, disse:

- Sabes porque gostam os gatos tanto de saltar? E porque gostam tanto de estar em lugares elevados?

Eu tinha meia dúzia de respostas na ponta da língua, começando pela vontade de explorar e passando por aquela irritante mania de nos fazerem procurá-los durante horas. Mas sabia que não era essa a resposta que ele buscava. A resposta dele iria abrir-me o caminho para lidar com o medo. Por isso esperei, até que continuou:

- Quando caminhamos na Terra, a nossa perspectiva altera-se. E enquanto caminhamos nela, tudo o que tocamos com os 5 sentidos é filtrado pelo que nos rodeia. Só existe o que conseguimos ver, o que conseguimos cheirar, o que conseguimos ouvir, o que conseguimos tocar.

Interrompeu-se e abanou a cabeça ao de leve, sorrindo como se soubesse um segredo que tornaria todas as minhas preocupações obsoletas. De seguida encolheu os ombros, como se dissesse "mas é assim que deve ser", e continuou:

- Vou simplificar a metáfora para que não te canses de me ouvir: nós saltamos para sacudir o que nos limita, para agitar o pó que se cola ao nosso espírito enquanto caminhamos na Terra e o deixa baço e sem brilho. Esse pó ofusca o nosso potencial e se ficar colado a nós muito tempo, deixamos de acreditar que conseguimos brilhar. Por isso temos que saltar.

Ao ouvir as palavras dele, uma dose considerável de reconhecimento atingiu-me em cheio no peito. Mas não tive tempo de pensar no assunto, porque ele ainda não tinha terminado:

- E é aí que nasce o medo: "e se não existir nada para além do que posso ver?", "e se eu não conseguir brilhar?", "e se eu perder tudo aquilo aquilo que tenho, e nunca o puder recuperar?"... "E se eu não for bom o suficiente para ser feliz neste mundo?"

Esbugalhei os olhos ao ouvi-lo, e durante uns segundos perdi-o de vista. Mas apesar da angústia que me assaltou o peito, depressa me recompus e voltei a semicerrar os olhos, e lá estava ele de volta. Continuou:

-... E é por isso que gostamos de lugares altos. Quando o medo se instala, já não chega sacudir o pó do mundo do nosso corpo. Porque agora o pó apanhou o nosso ponto fraco, e vai agarrar-se com força.

Engoli em seco, e ele sorriu antes de continuar:

- Porque caminhas na Terra e porque o medo se alimenta dos teus 5 sentidos, é com os 5 sentidos que tens que trabalhar: lembras-te da perspectiva que mencionei há pouco? Para devolver o medo ao lugar que lhe pertence, ela tem que mudar.

Franzi o sobrolho, adivinhando que vinha pela frente o conselho que eu procurava. Ouvi-o dizer:

- E é por isso que procuramos lugares altos: porque aqui em baixo, qualquer degrau se pode transformar numa montanha. Mas lá de cima, qualquer montanha se pode transformar num degrau. E quando olhares a tua montanha de cima, tu vais recordar que os degraus existem para nos elevar acima do ruído do mundo. E acima do ruído do mundo, o teu medo perde o poder que tem sobre ti.

Dei por mim a respirar fundo instintivamente, o que o fez aproximar e esfregar a cabeça no meu braço. Acrescentou, piscando o olho em jeito de despedida:

- Claro que por muito que as minhas palavras façam sentido para ti, és tu que tens que decidir saltar. E é claro que por muito que o medo te limite, tu é que tens que decidir ir ver a vista lá de cima. Não basta conhecer o caminho que nos pode libertar, é preciso percorrê-lo.


Vanessa Lourenço,
*conversas com o Félix

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