quarta-feira, 16 de outubro de 2019

ADMIRAÇÃO, de Fernando Teixeira
















"Acordou meio aturdido, já o Sol ia alto, depois de uma noite mal dormida. Melhor seria dizer, após uma noite de insónia, uma vez que ainda tinha visto o relógio marcar as cinco horas da madrugada e ele ainda não tinha pregado olho. Adormecera, por certo, com o clarear da aurora, vencido por uma batalha de pensamentos sem vencedor. Regressara a casa, já noite feita, os olhos embaciados por um misto de revolta e compaixão, mal antevendo os contornos da estrada, casas e campos difusos na escuridão, a mesma que lhe enegrecia a alma. Uma luzita aqui ou acolá que não conseguia destrinçar, nem mesmo o asfalto, iluminado pelo foco dos faróis da sua mota, ficando para trás sob as rodas, metro após metro percorrido com indiferença. O único foco ali era a sua mente a reviver palavras ouvidas com estupefacção e incredulidade.

Tinha regressado a casa com vontade de ter ficado. Ficado mais um pouco, minutos que fossem, para lhe dar uma palavra de conforto, uma palavra mais que lhe aliviasse a dor, que lhe secasse as lágrimas, não aquelas palavras que se lembrava de ter dito, que agora lhe parecia terem soado mais a censura por ela não ter feito logo queixa daquele filho da puta que ele desejava esmurrar no dia seguinte, assim que pudesse, mas prometera-lhe que não o enfrentaria e não lhe iria falhar. Ela não precisava de ouvir palavras de censura, nem fora com essa intenção que ele as proferira, o que ela necessitava, então, era que ele lhe tivesse dado um abraço que sarasse a ferida, contudo viera-se embora sem o fazer e isso era uma lembrança que o tinha feito dar voltas e voltas na cama. Acordou maçado, como se tivesse sido ele a lutar meses a fio, até à exaustão, para se livrar da memória de um acontecimento que o ferira até ao âmago do seu ser, quando tinha essa memória há apenas algumas horas e o acontecimento nem fora consigo. Contudo, sentia-se igualmente ferido, violentado pelo que tinha sucedido a Sylvie. Imaginou-lhe o pânico no momento, e a dor, a raiva e o medo depois, e sentiu-se a gostar ainda mais dela. Como havia sido possível um episódio daqueles com uma pessoa tão pura, honesta, simples, dada? Por mais que tentasse, não lhe descobria um defeito e agora sabia que o mais belo pano tinha sido manchado por uma nódoa. Uma nódoa no mais íntimo daquela mulher que tinha perdido o amor da sua vida, que lutava para sobreviver, lutava para ter uma vida digna e dar dignidade à vida da mãe. Uma mulher que ele estimava. Uma mulher cujo rosto sulcado por lágrimas não abandonava a sua mente. Que se abrira em confissão consigo, partilhando a mancha indelével que ocultara dentro dela até ao dia anterior. Só lhe contara a ele! Por isso, ainda a admirava mais."

in Traços De Pont-Aven

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