quinta-feira, 17 de outubro de 2019

NOCTURNO ARCO-ÍRIS: A IMPORTÂNCIA DE TEMPERAR AS ISCAS, de Helder Menor















Estava calor e humidade. O ar cheirava a gasóleo, a mar ao longe, a estufa, a lixo e ao doce de fruta podre. As baratas do tamanho de pardais, voavam em curvas descendentes à volta do candeeiro da rua que com luz amarela iluminava e o grelhador improvisado.

Na cozinha que dava directamente para a rua, preparava-se o funge e a salada de tomate picado com cebola e gindungo. Cá fora, na rua, velávamos uma galinha a churrascar nas brasas e bebíamos minis tiradas de um bidon com água e icebergues do tamanho de melões.

A dona da casa era uma mulata bonita e gorda, cunhada do meu amigo, irmã mais velha da sua companheira. Uma mulher grande, resistente e dura que não perdeu a ternura, desde os treze anos que tomava conta dos irmãos. Aos vinte já tinha o peso e a postura das grandes matriarcas africanas. Falava calma e severa e toda a gente à sua volta, naturalmente e espontaneamente lhe obedecia.

Arranjava-se para sair. Tomou banho e o cheiro do seu gel de banho perfumado, que se sobrepôs-se ao fumo do fogareiro e da gordura da galinha, chegou-nos antes de a ouvirmos. Falou de longe para o fumo do fogareiro não contaminar o vestido:

-- Vou no aeroporto buscar o Elias. Não deixem chegar o fogo na galinha nem fiquem bêbados antes de chegarmos.

Especialista diplomado em churrascos, o que estava comigo respondeu:

--- Vai na boa que eu mantenho afastados os dois inimigos presentes: não deixo o fogo chegar à galinha nem o branco chegar às cervejas...

Partiu com uma gargalhada inesperada na sua expressão sempre severa e nós abrimos mais duas celebrando as gargalhadas das mulheres e a amizade. Ela foi e eu perguntei:

Mas quem é esse Elias que ela vai buscar?

É o namorado! Namoraram na infância lá no mato, daqueles namoros de putos e não se viram durante uns 12 anos. Quando foi da guerra ela deixou de receber as cartas dele. Depois veio a Internet e reencontraram-se. No ano passado ela foi ter com ele lá à Lunda. E agora, não estão mais de seis meses sem se ver...

Da cozinha veio a irmã, abriu uma cerveja, acendeu um cigarro e acrescentou pormenores românticos à novela do reencontro. Fomos bebendo e falando.

O Elias ainda em rapaz foi raptado pela UNITA que atacou a aldeia onde morava na Lunda. Teria uns quatorze anos quando fizeram dele soldado. Passou um mau bocado, viu morrer de morte matada, familiares e amigos. Ficou com eles muitos anos na mata, terá assistido e sido obrigado a participar em massacres. Depois fugiu e juntou-se às Fapla onde chegou a sargento, posto com que passou à disponibilidade.

Metemos um terceiro cadáver de galinha na grelha e abrimos mais umas para evitar a desidratação.

Não esperamos muito mais.

Ao contrário do Rambo que eu esperava ver chegar, o Elias era um homem muito pequeno. Negro retinto e magrinho, enfezado mesmo, com o peito para dentro. Uns cinquenta e cinco quilos, no máximo dos máximos e pesando calçado com botas de biqueira de aço, mais as duas copias das chaves de um portão grande no bolso. Usava um sorriso meio triste de menino e uma gargalhada escancarada num olhar vagamente sombrio. Saiu do carro e caminhou na nossa direcção um pouco dobrado para a frente e com os braços a abanar. Trazia com um bigodinho ralo, uns ténis Nike brancos e calças de ganga. Vinha a dançar dentro de uma camisola do Futebol Clube do Porto tamanho M que lhe ficava três números acima.

A dona da casa comandou as operações:

-- Fica aí com esses dois a beber uma cerveja. U-M-A! O preto é cabo-verdiano e está com a minha irmã, o pula é amigo da família e está de passagem. São fixes, mas abusados.... Vê se não começas já a ganhar maus hábitos, tá?

Rimo-nos os três uns para os outros.

Abrimos mais cervejas passamos-lhe uma gelada.

-- Xii dói o dente do frio da cerveja... não tem menos fria aí? Desabituei de beber cerveja gelada... Quando tava no mato não tinha água quase nunca e não tinha cerveja quase sempre...

Fui à cozinha e tirei uma mini da última grade que metemos no frigorífico.

Estava praticamente morna. Voltei à rua com a garrafa na mão. Dei-lha.

Como sou descarado, perguntei-lhe à queima roupa:

-- Olha lá Elias, ouvi dizer que estiveste na mata com a UNITA e depois voltaste para as Fapla. Como é que convenceste os cambas do MPLA que não eras um provocador nem um espião infiltrado?

Olhou para mim e sorriu a mostrar os dentes brancos regulares:

-- Não foi fácil maninho. Mas eu fiquei firme. Fiquei sete anos até ter a confiança dos chefes, só faltava conhecer o Savimbi. E quando eles já confiavam tudo em mim, eu trouxe uma patrulha de doze para perto de um quartel dos nossos e capturei eles.

  Capturaste doze homens armados sozinho?

Sozinho não! Foi com a ajuda do feiticeiro que eles tinham a quem eu disse a Fapla pagava mais aos feiticeiros que a UNITA. Ele acreditou. Então o bruxo fez um pó com raízes para por na comida, todos comeram menos eu e o feiticeiro... e todos os que comeram ficaram a dormir. Depois foi só amarrar eles. O bruxo ficou a tomar conta dos inimigo e eu fui chamar as Fapla. Quando as Fapla chegou mandou eu mais o bruxo matar todos para mostrar que não éramos traidor. Então mandei os bandidos cavar um buraco assim de grande (os braços abertos envolvendo a enormidade do buraco) e disse para sentarem lá dentro para esperar na sombra o transporte que os levava para a Luanda para serem trocados por outros prisioneiros... Eles burro, sentaram só. Eu com duas granadas juntas matei e enterrei ao mesmo tempo!!!

Ficamos os três em silencio com o pragmatismo e a simplicidade da solução. Só se ouvia galinha a chiar nas brasas. Para desanuviar, e porque não gostava de silêncios pesados, o meu amigo cabo-verdiano perguntou:

-- E esse feiticeiro que estava contigo? Agora também está em Luanda?

-- Não. Esse eu matei também. Tinha de matar só. Era um feiticeiro ruim. Mau! Invejoso, mentiroso e ruim! Vi fazer muita coisa má, tinha de matar só! Era quimbanda do Zaire. Dei um tiro na nele. E com o facão cortei o pescoço para separar cabeça do corpo e deixei enterrado em sítios diferentes.

Com os dedos compridos fazia gestos de decapitação. Gesticulando, prosseguiu.

Abri o bruxo daqui-aqui, para tirar o coração e deixar para as hienas e tirei o fígado para comer eu. Coisas antigas do mato, mas eu sei que são mesmo assim. E eu tinha que comer-lhe o fígado para tirar-lhe a força! E te digo maninho, este era um bruxo mau mesmo! Tinha o fígado muito amargo, muito amargo, muito amargo. Tché! Amargo, amargo mesmo! Teve que levar bué da sal e bué de gindungo para conseguir comer.... Vocês aqui não sabe, mas eu explica. Nós do mato sabemos dessas coisas. Quando é uma pessoa boa o fígado não sabe amargo, sabe bem, como o fígado de gazela que não tem maldade... Quando é uma pessoa má o fígado é muito amargo, amargo. Porque a maldade e a força do espírito da pessoa estão no fígado. Por isso eu tinha que comer o fígado dele se não o espírito dele ia me empatar a vida toda!

Voltamos a ficar em silencio. A beber e olhar para as brasas a crescer em chama.

A dona da casa, chegou sem avisar. Descompôs-nos aos três por estarmos a deixar queimar a galinha que já estava assada. Levou-nos em coluna para mesa. Na sua autoridade de metro e meio, avisou logo que ao jantar não queria conversas nem de guerra, nem de futebol, nem de política.

O Elias, rebelde e desobediente, ainda antes de se sentar perguntou entusiasmado:

E o Engenheiro Pinta da Costa continua presidente do Porto, verdade?

Porque não lhe respondemos, olhando para as galinhas assadas na travessa, sem pausas e com o mesmo sorriso tímido prosseguiu com um verso:

Carne de galinha é boa,
carne de vaca também,
mas a melhor das carnes
é a carne que agente chama e ela vem!!!!

Rimos todos.

E a sua gargalhada escancarada e sincera afastou definitivamente todos os espíritos malignos e todas as memorias de guerras passadas e futuras.

As mulheres riram da piada que interpretaram como brejeirice de quem tem fome de amor de fêmea.

O jantar continuou animado e não voltamos a falar de guerra, nem de política e nem de futebol.

No dia seguinte, segui viagem. Parece que o Elias e a dona da casa, casaram e estão a viver em Luanda. 

Não voltei a ver o Elias.

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