segunda-feira, 21 de outubro de 2019

A VOZ DA VIDA, de Vanessa Lourenço















Perdi-o naquela noite. O meu amigo, o meu companheiro, o meu gato. O único que sempre soube preencher os meus silêncios e a minha incapacidade de lidar com o mundo lá fora, sem me julgar. O único que compreendeu que eu me afastei dos ruídos do mundo, apenas para encontrar os meus silêncios, porque ele sabia que eram os únicos que me podiam salvar.

Perdi-o, e os meus silêncios transbordaram para o mundo lá fora. Uma corrente que não consegui conter, e que me arrastou. Submersa na torrente de emoções descontroladas, fechei os olhos durante muito tempo, e não vi o mundo passar. Ignorei todos os sinais de esperança, todos os gritos de alerta, todas as portas abertas e palavras fáceis, ocas.

Perdi-o. E porque o perdi, recusei encontrar-me. No olho da minha mente, eu via apenas a ausência escura e definitiva da morte. Mal sabia eu... e que ridículo me parece agora, recordar.

Um dia, senti uma brisa leve no rosto, e olhei em volta. Era Outono, e o chão estava coberto por um extenso tapete de folhas secas. As folhas estavam mortas, e, no entanto, as árvores a que pertenciam, estavam vivas. Pensei então na mudança de pêlo dos animais: eles perdem o pêlo morto, e, no entanto, permanecem vivos. A vida insistia em se renovar a todo o instante à minha volta, e isso fez-me pensar.

Porque cremos que a vida se renova apenas até onde conseguimos ver? Porque cremos que tudo o que existe, cabe dentro dos nossos olhos? Porque cremos que algo que faz parte de nós, pode alguma vez ser perdido?

Foi então que ouvi a voz:

- Entendes agora? Nós não somos as folhas secas que caem da árvore, somos a árvore; não somos o pêlo morto que se liberta dos animais, somos o próprio animal. Não somos a lagarta, somos a essência que se liberta da gravidade, e decide voar. Evoluindo sempre, mudando sempre. Mas sobretudo, libertando-nos a cada passo do caminho do que já não nos ajuda a crescer.

Recordando por um momento o imenso gato amarelo que tanto amava, arrisquei:

- Quer dizer que não te perdi?

Uma brisa fresca percorreu o meu cabelo comprido, e senti como se algo se encostasse à minha perna. Ouvi então a voz dizer:

- Quer dizer que neste mundo, nos habituamos a usar corpos que nos definem. Apegamo-nos a eles para criar laços. Mas se olhares para lá do que um corpo te pode oferecer, tudo o que resta é para sempre.


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