quinta-feira, 3 de outubro de 2019

NOCTURNO ARCO-ÍRIS: A CANJA DA AVÓ, de Helder Menor
















A Bruxa da Paiva, ou “a Peidorrenta” como secretamente lhe chamavam, entrou no seu passo apertado e determinado e foi directa ao balcão, levantou a tampa de madeira castanha e investiu direita ao Ferreira. A cabeça dela estava ao nível do peito do merceeiro, um homenzarrão seco e grande como uma nogueira de Trás-os-Montes. Menos de meio metro separava as duas pessoas. Ela parou de andar e apontou o indicador mirrado, retorcido e bronzeado directamente à cara do merceeiro.

- Olhe senhor Ferreira, venho cá porque sou sua amiga e não lhe quero arranjar problemas...

Depois prosseguiu baixinho, quase em segredo: O meu Janita foi preso ontem pela guarda. Coisas de política. Só hoje é que me disseram... Eu daqui bocado vou matar uma galinha amarela que lá tenho e vou fazer uma canja pró jantar do meu neto. Se o meu João Manuel não estiver a sentar-se às sete para jantar, falava apontando o relógio na parede da mercearia, vou ficar zangada, e eu quando fico zangada, não respondo por mim! Até sou capaz de pegar nestas pernas velhas, subir lá acima ao primeiro andar e ir falar com a Dona Perpetua. O dedinho esticado apontava para cima da loja, repassava o tecto da mercearia e entrava no recatado lar do Ferreira.... Estou tão zangada, tão em fezes pelo meu menino, que nem sei o que faça. Mas sei que o Senhor Ferreira pode por pessoas na prisão, mas também pode tirá-las. Não lhe custa nada a si, como a mim também não custa, é só falar com a pessoa certa. A mim, não me custa ir ali a cima, falar com a sua esposa, e explicar-lhe que o Senhor Ferreira lhe falta na cama porque a tesão lhe vai toda para o buraco do cu! Vou dizer-lhe que deu os cinquenta escudos que disse que os comunistas lhe roubaram, e que tinha guardados debaixo da caixa do sabão, ao Silvino Fragateiro que é quem lhe dá essas dentadas e chupões nos ombros que estão todos marcados e que é por isso que você ao pé dela não despe a camisa. E já que estamos a conversar, também lhe quero dizer uma coisa, o que nos tem roubado com o bacalhau molhado e com a serradura na farinha, dá perfeitamente para pagar este bocado de manteiga que tem aí atrás escondida a me vai oferecer agora!

Serviu-se ela própria da manteiga que tirou com uma faca de madeira e embrulhou no papel próprio. Depois virou as costas ao merceeiro. Saiu de trás balcão e repôs a tampa que lhe deu passagem. No silencio da mercearia vazia soaram os três peidos que a bruxa deu: Pás, pás, pás.

A médium vidente tinha um intestino com personalidade própria e quando estava em transe ou muito nervosa, soltava sonoros traques confirmando como verdade absoluta tudo o que a boca dizia.

Era a Bruxa da Paiva, a Nina Alda prós amigos e vizinhos, a Ti Alda Parteira desde o Lavradio a Palhais, a Alda Benzedeira para os funcionários públicos e pequeno-burgueses. O “a Peidorrenta” como lhe chamavam pelas costas os miúdos e as beatas lá de baixo da Igreja Senhora do Rosário.

- Ajudo com as suas mezinhas as mulheres a parir e os homens a cobrir

Era assim que se definia a si mesma quando lhe perguntavam o que fazia. Bruxa e rezadeira. Dizia o passado, o presente o e futuro a quem chegasse e pagasse para isso.

Também o dizia a quem precisava de saber, mesmo sem pagar, mas esses ficavam simplesmente a dever-lhe um favor. Às vezes, mais raramente, era obrigada a dizer o que não queria para por os outros a fazer o que era preciso.

Foi este o caso.

O Ferreira da mercearia, ficou ainda mais branco e ainda mais calado depois daquele dia.

Depois da bruxa sair, continuou quieto e calado. Uma estátua. Congelado de medo em pleno verão e sem que se apercebesse o seu corpo inteiro suava. Era uma estátua que suava. Quando tentou reagir, as mãos tremiam-lhe. Como é que se foi deixar cair nas mãos desta puta desta bruxa, pensava. Como é que ela sabia? Logo ela. Logo ele... uma pessoa respeitável. Com um irmão, que enfim, é uma pessoa importante, quase manda-chuva na secreta…Caraças!!!

E agora?

E agora?

Que idade teria o neto da bruxa, o Janita? Quinze? Dezasseis? Para já andar nestas coisas de política se calhar tinha mais. Já estavam em 1943, ora quando ele chegou no ano 30, o neto da velha ainda era menino de colo. Parece que crescem adubados com a água do mar nos pés e o fumo das fábricas nas ventas. Tirou a bata azul escura, remendada e suja e vestiu o casaco cinzento de ir à vila. Estava calor. Mais calor ainda depois do casado vestido. O chapéu preto e as costas vagamente dobradas a receber directo o sol de Julho. Andou na direcção da azinhaga e preparou-se para descer os barrancos na direcção do Tejo e daí seguir até ao Posto da Guarda. Mas depois lembrou-se que a Guarda abrira um posto provisório dentro da fábrica para poder prender os grevistas. Quinze minutos depois, com o suor a escorrer em bica, e a deixar um rasto de cheio a suor, estava à porta da fábrica.

No portão um guarda e um legionário. Aos pares como os cornos, dizia-se.

O guarda ainda abriu a boca para falar, mas o legionário adiantou-se:

É pá não vês que é o Senhor Ferreira, irmão do Subinspector. Senhor Ferreira, o que faz aqui com este calor? Vénia e cumprimentos. Entre, faça favor Senhor Ferreira.... veio falar com o seu mano? Entre faça favor, abrigue-se aqui na portaria que está à sombra. Mais vénias.

O Chupista fez cara séria. Era bom que lhe mostrassem respeito. Estava cansado, encalorado e fodido no pior sentido do termo!

- Leve-me agora ao meu irmão. É urgente.

No gabinete do Subinspector Ferreira, o mano velho entrou ofegante. Sentou-se na cadeira e nem esperou que o irmão falasse:

- Temos que soltar o João Alves. E depressa. Antes que a coisa dê merda. E não me faças perguntas. Soltas o gajo e pronto!

Calma Nicolau. Senta-te. Tens sede? Queres um refresco? Que pressa é essa? Temos que soltar quem? Ó Nicolau, nem parece teu!!!Isto não funciona assim... Quem é o João Alves?

O director da brigada da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, chamava-se Arnaldo Ferreira. Foi o seu irmão Nicolau quem o ajudou a criar e lhe maneira financiou os estudos. Dizia-se na Paiva e no Alto do Seixalinho, que o trabalho de recolha de informações da PVDE era todo feito pelo Ferreira da Mercearia.

Dez minutos depois do merceeiro ter entrado no gabinete do subinspector, estava este a abrir a porta e a gritar cá para fora:

– Ó Cabo Neves, veja lá se temos algum detido de nome João Alves e traga-o à minha presença.

Como bom militar que era o Neves cumpriu sem fazer perguntas.

Senhor João Alves faça favor de me acompanhar. O Janita levantou-se do chão onde estava sentado. No armazém com telhado de zinco estavam mais de quarenta cinquenta presos à espera, quase todos em tronco nu a aguentaram o calor que assava as paredes e o chão empoeirado. No dia anterior tinham comido pão duro e deram-lhes um bidon com água suja de óleo. Hoje ainda não lhes tinham trazido o pão. O Janita pegou na camisa remendada e na caderneta da identificação e andou direito para a porta. Para o interrogatório e tortura pensou. Quando vestiu a camisa, na arrogância dos seus dezassete anos pensou: não vou falar.

Ao contrário do que estava a espera não o lhe começaram a bater no corredor.

Ao fundo, abriram uma porta e numa divisão excessivamente grande para a secretaria estava sentado o Senhor Arnaldo Ferreira, subinspector e director do Posto Provisório da Fábrica.

- Senta-te rapaz. Disse o homem.

- Não obrigado, estou bem de pé.

Como queiras, chamei-te aqui para te dizer que te podes ir embora. A PVDE analisou a tua situação e dada a tua idade e como não tens antecedentes, podes sair.

As palavras do director apanharam-no desprevenido.

Na sua cabeça as ideias andavam a mil. O sono, o medo, o calor, a sede, e mais o medo. Tudo girava.

– Senhor director, e os outros homens que tal como eu foram presos à porta da fábrica. Temos todos a mesma responsabilidade. Estávamos todos juntos, devemos sair todos junto senhor director!

Mau, estou a dizer-te que te podes ir embora e tu ainda estás armado em parvo??? Some-te da minha frente! Ó Neves, leva este gajo para longe da minha vista e mete-o na rua!!!

O agente Neves entrou e pegou no braço do Janita que enquanto era arrastado ainda ia dizendo, mas, mas, mas. Pragmático e pedagógico o agente Neves resolveu a questão com um calduço que derrubou o Janita, franzino e mal-comido.

– Mas nada, faça o que o senhor director manda caralho!!! É para a ir para a rua e vai para a rua!!!

Na rua o sol ainda doía nos olhos. O calor vinha do chão de calçada que reflectia o branco que cegava sobretudo depois de ter passado tantas horas na penumbra. Tacteando, seguiu direito a casa.

Já estava a quase a chegar a casa quando percebeu: coisas da minha avó.

A velha, não o veio receber, mas mal o ouviu entrar, começou logo a ralhar com ele.

– Então? Já chegaste da prisão? Já estás contente com a tua política? Já te achas um homem só porque fizeste greve com os teus camaradas e foste preso?? Vai-te mazé lavar que o cheiro a suor chega aqui! tens uma toalha seca aí ao pé do balde. E despacha-te a vires para a mesa que eu já estou muito velha para ter de esperar pelo jantar por causa das tuas políticas! Nem penses em dizer-me que tens de sair agora e ires a correr avisar os camaradas que eles vão pensar que ainda estas a ser vigiado! Vais depois de comer a galinha ali à Sede do Paivense e deixas o recado escrito no papelinho escondido como combinaram. E olha põe-te a pau que a moça la da costura da Miguel Paes a quem andas a arrastar a asa, pode engravidar-se e depois casas à pressa!

Acabado este discurso de rajada, também em rajada soltou três peidos.

Estava terminada a conversa. Sentou-se em frente ao neto e comeu calada, caldo da galinha e uns bagos de arroz.

O Janita comeu com a fome dos seus dezassete anos. Primeiro a canja com os miúdos e arroz e depois saboreou a galinha corada como se fosse a melhor iguaria do mundo. E era, era a melhor iguaria do mundo. Foi feita com todo aquele amor que só as avós sabem dar. No caso dele, a avó alem de dar amor, dava concelhos, dava receitas e dava peidos.


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