quarta-feira, 2 de outubro de 2019

MILAGRES DO AMOR, de Cristina Das Neves Aleixo















Na semana em que se comemora o amor não podia deixar de falar nele. No entanto, como gosto de ser diferente, não dissertarei sobre o amor romântico - já há muitas pessoas a fazê-lo nesta data. Fá-lo-ei sob outra forma: o amor entre irmãos; aquele que sentimos, por puro apelo dos genes, pelas pessoas mais diferentes de nós, que, inclusivamente, nos magoam em diversas fases das nossas vidas e que, inexplicavelmente, continuamos a amar e a proteger. Esse amor que, às vezes, em momentos cruciais das nossas vidas, opera grandes e maravilhosas mudanças, verdadeiros milagres.

Em vez da habitual crónica de opinião, apresento-lhes um pequeno conto de minha autoria que, à semelhança de tantas coisas que escrevo, tenta alertar as consciências e convido-os, desde já, a opinarem sobre o mesmo.

Os dois irmãos.

Rogério tinha o hábito de a todos reificar. Era algo a que não conseguia resistir.

O seu irmão Alberto, por outro lado, era completamente o oposto: homem caridoso e humilde, não se furtava ao ajudouro de quem dele necessitasse.

Nem se diria que estes dois eram irmãos: eram completamente diferentes. Até nas feições eram dessemelhantes. Nunca se imaginaria que eram fruto do mesmo pai e da mesma mãe. Mas eram, nenhum era adoptado, tinham, portanto, sido ambos incitados aos mesmos valores morais e culturais. Então porque seriam tão reversos? Ninguém sabia. Era coisa que já tinha desabrolhado com cada um, aquela que já vem connosco e que nada nem ninguém muda, era o que era, diziam as gentes da aldeia. E os factos estavam à vista de todos para quem quisesse ver.

Os feitos opostos eram tantos, que os dois se tornaram lendas vivas e os contos chegaram a todos os cantos de Portugal. Por todo o lado, ao longo das suas vidas, se aduziam as muitas estórias destes dois irmãos. De tal maneira que começaram a tomar a forma de fábulas. Até nas escolas já serviam de formação às criancinhas; começou a acreditar-se que eram grandes exemplos do bem e do mal.

Assim foram passando os anos: feitos daqui contos dali. Mas um dia algo aconteceu; algo que iria testar todas as bases das suas estórias.

Rogério adoeceu. Foi minguando, perdendo as forças e um dia caiu à cama. Chamaram o Senhor Doutor; não era caso para menos: aquele homem bem fornido e "vaso ruim" cair a uma cama?! Estranho, muito estranho! O Senhor Doutor disse que ali não o podia tratar, que tinha que o encaminhar para o hospital distrital. Ora lá foi Rogério transportado de ambulância, com luzinhas azuis a apagar e a acender e tudo, a caminho do hospital. O seu humor estava ainda pior: não aceitava aquilo; era um homem saudável, caramba! Não havia de ser nada ruim, com certeza, ruim era ele - ia pensando mal convencido.

Depois de uma carrada de exames lá veio o Senhor Doutor com o ditame: um rim tinha parado - falecido, era o que era - e o outro para lá caminhava e Rogério já se via com um pé para a cova. Um transplante era o que o salvaria, dissera o Senhor Doutor.

Ora, sim, um transplante... e quem lhe daria um rim?!, ninguém gostava ou se preocupava o suficiente com ele para tal sacrifício.

Pela primeira vez em toda a sua vida sentiu-se pequenino, o mais minúsculo dos seres. Queria, talvez, ter sido de outra forma; podia ter sido de outra forma. Lembrou-se da sua mãe, quando ainda párvulo, lhe dizia tantas vezes que a ruindade não traz felicidade à vida de ninguém, que se colhe os frutos daquilo que se semeia; e o que tinha ele colhido com tanta malvadez e coração empedernido? Estar sozinho numa cama de hospital com um rim falecido e outro a falecer, era isso... nada mais.

Estava nestas cogitações com cheiro a morte, quando a porta do quarto se abriu para deixar passar Alberto. Entreolharam-se em silêncio e foi o segundo a quebrar aquela ligação quando estendeu a sua mão para agarrar na do irmão moribundo. Os olhos deste suavizaram-se, já não aguentando mais tanta dureza interior, e uma lágrima obstinada correu-lhe pela face pálida. Alberto apertou mais a mão do irmão e disse-lhe que tinha feito exames e que o ia ajudar: dar-lhe-ia um dos seus rins.

Afinal eram compatíveis, aqueles dois, tão diferentes e tão iguais como só dois irmãos podem ser.

Rogério disse que não compreendia; porque abdicaria o irmão de um dos seus rins saudáveis e, ainda por cima, para o ajudar a ele, que sempre tinha sido mau e indiferente para com a sua pessoa? Alberto sorriu e respondeu que era, simplesmente, porque eram irmãos; eram família e era para isso que a família servia também: para os elementos desta se ajudarem uns aos outros quando assim era necessário; e, além disso, gostava muito do irmão e não queria que ele morresse.

Rogério sentiu, pela primeira vez, a alegria aquecer-lhe o coração gelado e permitiu-se saborear a paz e a tranquilidade que isso lhe trazia. Encarou o irmão de frente e percebeu, finalmente, o significado da palavra amor. Entendeu que tinha desperdiçado uma vida inteira a comportar-se como uma besta.

Um dia depois entraram os dois no bloco operatório ao mesmo tempo: um para dar vida e amor, o outro para os receber. Correu tudo muito bem e ambos viveram muitos anos. Alberto com a sua habitual bondade e mimo e Rogério bem encaminhado numa nova vida de coração quente.

As estórias dos dois continuaram a ser contadas por este país fora, mas aquela que mais gente sabia e contava, por ser tão inspiradora, era precisamente a que demonstrava a maior prova de amor fraterno que pode existir, e a mudança que isso tinha operado em alguém que, se dizia, tinha sido, em tempos, um monstro intratável.

Moral da estória:
se todos nos dispuséssemos a adoptar a atitude de amor mais frequentemente, o mundo seria muito mais aprazível.

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